Artigos


Santos


Santa Paula: A obra-mestra do Doutor das Escrituras
 
AUTOR: IR. MARIA BEATRIZ RIBEIRO MATOS, EP
 
Decrease Increase
Texto
Solo lectura
0
0
 
Discípula de São Jerônimo, soube manter-se fiel ao seu pai espiritual mesmo diante da perseguição e das calúnias que faziam contra ele.

Ainda que todos os membros de meu corpo se tornassem línguas e suas articulações falassem com voz humana, nem sequer assim poderia dizer nada digno das virtudes da santa e venerável Paula”.1 É desta forma que São Jerônimo inicia uma de suas cartas, introduzindo o leitor, com tão breves palavras, numa das mais belas páginas da hagiografia católica.

Quem será esta, que faz São Jerônimo julgar-se incapaz de exaltá-la o quanto merece?

Ilustre dama da antiga Roma

Corre o ano de 379. Num suave entardecer outonal, as casas alumiam-se discretamente e, aos poucos, o bulício próprio a uma cidade movimentada diminui, cedendo lugar ao silêncio da noite. Estamos em Roma, a capital do mundo.

O olhar observador de quem transita por aquelas ruas tão bem pavimentadas é atraído para um palácio, intensamente iluminado, cujos ruídos vindos do interior indicam encontrar-se lá grande quantidade de pessoas. A reunião apenas começou. Aos poucos vão chegando as matronas, revestidas de ricos tecidos, ornadas com valiosas joias e transportadas em confortáveis liteiras. Os primeiros acordes de uma música se fazem ouvir. Mais uma festa se inicia na alta sociedade romana.

Jovem ainda, dir-se-ia que Paula, a matriarca desse lar, fosse a pessoa mais feliz do mundo. As grandes glórias dos Cornélios, Cipiões, Emílios e Gracos resplandecem sobre seu berço. Possui também luzidia inteligência: além do latim, fala grego com perfeição. Ela se uniu em matrimônio a Toxócio, rebento do nobilíssimo sangue dos Júlios, família que ficou mundialmente célebre quando Júlio César assumiu o poder como cônsul e ditador. À nobreza, o casal unia uma imensa fortuna.2

Uma dama dessa classe era obrigada a vestir-se com roupas de seda bordadas a ouro, calçar sapatos ornados com brilhantes, cingir-se com um cinto recamado de pedrarias, enfeitar-se com brincos e colares cujo custo equivalia a um patrimônio. Paula seguia à risca essas regras.

Despojada da felicidade mundana

Ditosos e desanuviados se sucederam os anos para o casal, em cujo seio nasceram cinco filhos: Blesila, Paulina, Eustóquia, Rufina e Toxócio, assim chamado em honra ao
pai. A ilustre dama, porém, não podia imaginar a grande tormenta que a esperava com a morte de seu marido.

O súbito acontecimento toldou-lhe o horizonte de tristeza e a fez perder o rumo de sua existência. Sendo ainda jovem, tinha cerca de trinta e um anos, o seu futuro tornou-se-lhe incerto, sua família desprotegida e seu convívio social instável. Abalada pela dor, chorava noites inteiras sem que ninguém fosse capaz de confortá-la.

O abatimento de Paula chegou a tal auge, que muitos temiam por sua vida. Dizia-se cristã, mas não conseguia contemplar aquela tragédia com os olhos da fé. Contudo, o sofrimento acabou dando-lhe ensejo de, pela primeira vez, considerar as coisas à clara luz das realidades eternas, diante das quais a fantasia passageira do mundanismo jaz por terra.

De que lhe adiantava ser contada entre as primeiras fortunas do império? Qual a utilidade do seu nobilíssimo sangue? Mais ainda, que vantagem tirava do esforço em
parecer bem à sociedade, de empregar horas a fio em trançar os cabelos e enfeitar-se a fim de ser tida por bela?

O corpo frio e inerte de seu marido era uma resposta contundente: o reconhecimento do mundo não o livrara da morte; o dinheiro e as homenagens jamais seriam capazes de fazê-lo mover mais uma vez nem um dedo sequer.

Essa perspectiva, inteiramente nova para Paula, talvez tenha feito sangrar sua alma ainda mais do que a perda daquele a quem ela amava. Diante dela abria-se uma encruzilhada: podia mergulhar ainda mais no mundo, dando rédeas soltas ao desespero e à fruição dos prazeres, ou podia estender a mão à Providência, que a convidava à seriedade. Qual dos dois caminhos escolheria? 

Palavra e exemplo que transformam

Decerto não teria conseguido Paula superar tão crucial conjuntura se para ela não se tornasse realidade a passagem da Escritura: “Um amigo fiel é uma poderosa proteção:
quem o achou, descobriu um tesouro” (Eclo 6, 14). 

Marcela era uma patrícia de outra importante linhagem romana. Seus pais haviam-lhe arranjado um vantajoso matrimônio para garantir a continuidade da família, e ela, embora acalentasse o desejo de entregar-se a Deus por completo, atendeu aos anseios paternos. Porém, ficou viúva depois de apenas sete meses e, não tendo nunca amado o mundo, transformou seu palácio numa verdadeira comunidade religiosa.

Passaram-se alguns anos até que, em certo dia, uma jovem passou defronte àquela residência convertida em mosteiro e tomou contato com as que ali habitavam. Ainda coberta por trajes de luto e imersa na tempestade interior, a viúva de Toxócio admirou-se com o exemplo daquela que tivera, no seu breve matrimônio, uma sorte semelhante à sua.

Paula abriu sua alma à influência de Marcela e esta a ajudou a despojar-se das vaidades mundanas, introduzindo-a na intimidade divina. Foi, conforme a própria discípula reconheceria mais tarde em uma carta, “a primeira a acender a centelha em nossa lenha”, exortando “com a palavra e o exemplo a abraçar este gênero de vida”.3

Com grande discernimento e paciência, o santo varão passou a orientar e forjar o caráter da patrícia romana – São Jerônimo, Santa Paula, Santa Eustóquia e Blesila – Igreja de Santa Maria Madalena, Gênova (Itália); na página anterior, Santa Paula – Pinacoteca Vaticana

Sabedoria de Deus… loucura para o mundo, diz São Paulo (cf. I Cor 1, 23-24). Quiçá, já naquele tempo, algum “sábio” definisse a conversão da jovem patrícia como fruto de um grave transtorno psicológico, provocado pela morte de seu marido… Mas, de fato, tratava-se da graça fazendo maravilhas no coração daquela distinta dama.

Contrariando a sociedade que antes frequentara, Paula avançou a passos largos no caminho da perfeição. Distribuiu grande parte de suas riquezas aos pobres, assistiu os necessitados com extrema bondade e, quando familiares a criticavam porque tirava dos filhos para dar aos demais, respondia-lhes que lhes deixava uma herança maior e mais valiosa que o ouro: a misericórdia de Cristo. 

Reuniões com o Doutor das Escrituras

Paula estava ainda dando os primeiros passos de sua conversão quando uma presença ilustre e singular se fez sentir em Roma, despertando simpatia em alguns, e em outros antipatia.

Em meio ao luxo e aos prazeres de então, era ele um adusto varão que “parecia um retrato de Elias, do Batista ou de Antão. Na fala, na compostura, nos gestos, dava a impressão de ermitão asperíssimo, de monge cheio de perfeição e de homem verdadeiramente crucificado para o mundo e transformado em Jesus Cristo”.4

Era o Bispo Jerônimo, que chegara à Cidade Eterna para secretariar o Papa São Dâmaso e servir-lhe, também, de valioso assessor bíblico. Ocupava, segundo alguns hagiógrafos, um cargo equivalente ao de Secretário de Estado nos dias de hoje. Sua erudição e virtudes, unidas a uma figura impressionantemente austera, atraíam todos aqueles que procuravam a santificação, de modo especial aquelas matronas cristãs. Foi Santa Marcela que, movida pela admiração, tendeu a primeira ponte de comunicação entre elas e o Santo, pois este, por modéstia, apartava seus olhos das nobres damas.5

Encontrando nelas, e em outras amigas suas, um autêntico desejo de progredir nas vias da perfeição, São Jerônimo não poupou esforços em conduzi-las pelas sendas da virtude. Começou por notar que, embora tivessem consagrado a Deus sua vida e desejos, conservavam ainda numerosos caprichos e defeitos. Eram, escreve o Santo, “escravas do mundo […], incapazes de suportar o lixo vertido na rua. Faziam-se transportar por eunucos, irritavam-se com as irregularidades do caminho, tinham
por pesada carga os vestidos de seda que as revestiam e sentiam-se incomodadas pelo sol, por um pouco mais que este aquecesse”.6

A pedido daquelas damas, São Jerônimo começou a promover reuniões no palácio de Marcela, e mais tarde no de Paula, onde lhes explicava diversas passagens da Bíblia.

Verdadeiro pai espiritual de Paula

Aos poucos, tornou-se guia espiritual de todas elas, especialmente de Paula. Se Marcela fora a amiga fiel que a ajudara na escolha do bem, coube a Jerônimo gerá-la “em
Cristo Jesus pelo Evangelho” (I Cor 4, 15).

Com grande discernimento e paciência, o santo varão passou a orientar e forjar o caráter da patrícia romana, que, por sua vez, o via mais como pai do que como mestre. Estabeleceu-se assim entre eles o vínculo perene próprio às coisas do espírito.

Conta-se, por exemplo, que uma das filhas de Paula, chamada Blesila, jovem de aspecto atraente mas entregue aos encantos do século, acabou por renunciar ao mundo,
orientada por São Jerônimo. A malária, porém, levou-a em três meses à sepultura, deixando sua mãe novamente oprimida pela dor, a ponto de tomar atitudes  desarrazoadas, como a de deixar de alimentar-se.

Verdadeiro pai espiritual, São Jerônimo também se comoveu pela separação: “Eu tomo, Paula minha, por testemunha a Jesus, a quem agora Blesila segue; tomo como testemunhas os Anjos, de cuja companhia goza, que estou sofrendo os mesmos tormentos que tu padeces. Eu sou seu pai no espírito, seu preceptor pela caridade”.7

Não obstante o pesar assim manifestado, São Jerônimo lembra a Paula, com muito tato, que a mão de Deus está por detrás de tudo o que acontece. Explica-lhe por que
tal desenlace fora o melhor, inclusive para ela, sua mãe. Adverte-a com firmeza a não se deixar tomar pelo afeto puramente carnal, comparando-a a uma mulher pagã cujo
marido havia pouco morrera.

Nos quatro anos que São Jerônimo permaneceu em Roma, Santa Paula deixou-se moldar por ele, a ponto de tornar-se, mais do que todos os seus escritos bíblicos, doutrinários ou apologéticos, “a melhor carta, a obra-mestra”8 do grande Doutor da Igreja.

Altaneria e fidelidade diante das calúnias

Chegou o ano de 385. Paula, que já amadurecera na virtude, estava pronta para enfrentar varonilmente uma nova tempestade – e quão dura seria! Ela, que renunciara ao mundo para entregar-se a Deus, teria que desafiá-lo uma vez mais, para selar sua fidelidade ao caminho escolhido.

Com a morte de São Dâmaso, São Jerônimo foi destituído de suas funções pontifícias. Ao mesmo tempo, uma onda de infames calúnias levantou-se contra ele. Acusavam-no de não ser o que de fato aparentava; atribuíam a conversão de Paula, de Marcela e tantas outras matronas a dons mágicos por ele usados para atrair e manipular as pessoas; e, pior ainda, tentaram manchar com uma conotação maliciosa as reuniões no palácio de Santa Marcela.

Conspurcavam assim o vínculo santo e inteiramente espiritual entre Paula, suas filhas e São Jerônimo. Diziam que ele era um homem depravado, entregue a imoralidades, e houve, inclusive, um infeliz que forjou graves acusações, as quais depois reconheceu serem falsas…

São Jerônimo, porém, não se deixou intimidar, e contemplava com altaneria a perseguição que sobre ele se desencadeara: “Que angústia maior sofri até agora, eu, que milito sob a bandeira da cruz? Lograram acarretar a infâmia de um falso crime; mas eu sei que chegaremos no Reino dos Céus passando por boa ou má fama”.9

Conhecendo a integridade de sua filha espiritual, e vendo-a também injuriada, ressalta como suas virtudes tornaram-na digna de sofrer por Cristo: “Ó inveja, que primeiro te mordes a ti mesma! Ó astúcia de satanás, que sempre persegues o santo! Nenhuma outra mulher da cidade de Roma deu o que falar, senão Paula e Melânia, que, desprezando suas riquezas e desamparando a seus filhos, levantaram a Cruz do Senhor como um estandarte de piedade. Se estivessem morando na vila de Baias, se buscassem os perfumes, se fizessem de suas riquezas e viuvez pretexto de luxo e liberdade, seriam consideradas senhoras e ainda santas”.10

Alma de convicções profundas, nada abalou a entrega de Paula a Deus e sua confiança em São Jerônimo. Diante da perseguição e das calúnias que faziam contra ele, essa
insigne discípula soube manter-se fiel ao pai que a conduzia pelas vias do Espírito.

Que alegria para o Doutor das Sagradas Escrituras, em meio àquele mar revolto, ver brilhar nela a fidelidade e constância, frutos de seu intenso apostolado e sacrifício! De
fato, concluindo uma de suas cartas de defesa, São Jerônimo escreve: “Dê lembranças minhas a Paula e Estóquia – ainda que não seja do agrado do mundo, elas são
minhas em Cristo”.11

Regra viva a ser seguida no mosteiro

Ainda no conturbado ano de 385, Santa Paula abandona a Cidade Eterna num navio rumo ao Oriente, seguindo as pegadas de seu mestre. Nos meses subsequentes, conhecerá ela a Terra Santa, berço da Fé, e o Egito, nascedouro da vida monástica. E, ao percorrer cada um dos lugares santos, sua alma piedosa reviverá o Evangelho.

Mestre e discípulas estabelecer-se-ão, por fim, em Belém. Ali Paula erigirá um mosteiro feminino, do qual será a superiora, e São Jerônimo um cenóbio masculino. Construirão também uma casa dedicada à hospedagem dos peregrinos, em reparação da falta de acolhida sofrida pela Sagrada Família naquela cidade.

Que alegria para o Doutor das Sagradas Escrituras, em meio àquele mar revolto, ver brilhar na discípula tanta fidelidade e constância!  – São Jerônimo impõe o hábito a Santa Paula e Santa Eustóquia – Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa

No mosteiro em Belém, Santa Paula viveu cerca de vinte anos. Apesar de todas as responsabilidades na direção da casa, continuava a auxiliar São Jerônimo nos seus comentários às Sagradas Escrituras, sobretudo levantando perguntas e fazendo observações que o conduziam a novas explicações. A fim de ser mais útil para o seu mestre, aprendeu também o hebraico. Mas, seguindo o exemplo dado por ele, esforçava-se principalmente em transpor os ensinamentos bíblicos para o dia a dia, mais do que em estudá-los intelectualmente.

Superiora exemplar, era a regra viva a ser seguida. Não havia quem a vencesse em humildade ou a superasse em generosidade. Aliando a firmeza à compaixão e dotada de um alto senso psicológico, formava de maneira exímia suas discípulas e, não obstante as advertências de São Jerônimo, submetia-se a severas penitências, dizendo: “Tenho que enfear um rosto que, contra o mandato de Deus, tantas vezes pintei de vermelho, sombreado e pálido. Tenho que mortificar um corpo que se entregou a muitos deleites. […] Eu, que antes busquei agradar ao século e ao marido, agora quero agradar a Cristo”.12

De Belém ao Reino dos Céus

Tendo ela transposto o umbral dos cinquenta e seis anos, Deus encontrou Paula pronta para o Céu. Uma terrível enfermidade a acometeu, fazendo-lhe entender que o seu fim estava próximo. Convertendo em louvores a Deus os estertores da agonia, ela apenas dizia: “Quão amável, ó Senhor, é vossa casa! Quanto a amo, ó Senhor Deus dos exércitos! Minha alma desfalece de saudades e anseia pelos átrios do Senhor” (Sl 83, 2-3).

Ao serem informados de que alma tão virtuosa estava para deixar esta terra, monges e virgens apressaram-se por chegar ao mosteiro. A eles juntaram-se os Bispos de Jerusalém e de outras cidades, além de muitos sacerdotes e diáconos. E, à sua morte, todos louvaram a Deus pelas maravilhas operadas naquela nobre dama. “Não estamos tristes de tê-la perdido, mas damos graças a Deus de tê-la tido, ou melhor, de tê-la ainda”,13 expressou mais tarde São Jerônimo no elogio fúnebre de sua discípula.

Dela se despede com palavras cheias de poesia e piedade dizendo: “Adeus, Paula. Ajuda com tuas orações a última etapa da ancianidade de quem te reverencia. Tua fé e tuas obras te associaram a Cristo; junto a Ele, alcançarás mais facilmente o que peças”.14 (Revista Arautos do Evangelho, Janeiro/2020, n. 217, p. 16 a 19).

1 SÃO JERÔNIMO. Carta 108, n.1.
2 Cf. GENIER, OP, Raimundo. Santa Paula. Barcelona: La Hormiga de Oro, 1929, p.11; 19.
3 SÃO JERÔNIMO. Carta 46, n.1.
4 SIGÜENZA, José de. Vida de San Geronimo, apud MORENO, Francisco. San Jerónimo: la espiritualidad del desierto. Madrid: BAC, 2007, p.44.
5 Cf. Idem, p.45.
6 SÃO JERÔNIMO. Carta 66, n.13
7 SÃO JERÔNIMO. Carta 39, n.2.
8 RUIZ BUENO, Daniel. Introducción, versión y notas. In: SÃO JERÔNIMO. Cartas. Madrid: BAC, 1962, v.I, p.233.
9 SÃO JERÔNIMO. Carta 45, n.6
10 Idem, n.4.
11 Idem, n.7.
12 SÃO JERÔNIMO. Carta 108, n.15.
13 Idem, n.1.
14 Idem, n.33

 
Comentários