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Esperança e Juízo Final
 
AUTOR: REDAÇÃO
 
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Sim, existe a ressurreição da carne. Existe uma justiça. Existe a “revogação” do sofrimento passado, a reparação que restabelece o direito. Por isso, a fé no Juízo Final é, primariamente e sobretudo, esperança.

Já desde os primeiros tempos, a perspectiva do Juízo influenciou os cristãos até na sua própria vida cotidiana enquanto critério segundo o qual ordenar a vida presente, enquanto apelo à sua consciência e, ao mesmo tempo, enquanto esperança na justiça de Deus. A fé em Cristo nunca se limitou a olhar só para trás nem só para o alto, mas olhou sempre também para a frente, para a hora da justiça que o Senhor repetidas vezes preanunciara. Este olhar para diante conferiu ao Cristianismo a sua importância para o presente. […]

Bento XVI no Santuário
Nacional de Nossa Senhora
da Conceição Aparecida,
12/5/2007

Um mundo sem Deus é um mundo sem esperança

Sim, existe a ressurreição da carne. Existe uma justiça. Existe a “revogação” do sofrimento passado, a reparação que restabelece o direito. Por isso, a fé no Juízo Final é, primariamente e sobretudo, esperança – aquela esperança, cuja necessidade se tornou evidente justamente nas convulsões dos últimos séculos.

Estou convencido de que a questão da justiça constitui o argumento essencial – em todo o caso o argumento mais forte – a favor da fé na vida eterna. A necessidade meramente individual de uma satisfação – que nos é negada nesta vida – da imortalidade do amor que anelamos, é certamente um motivo importante para crer que o homem seja feito para a eternidade; mas só em conexão com a impossibilidade de a injustiça da História ser a última palavra, é que se torna plenamente convincente a necessidade do retorno de Cristo e da nova vida.

Protestar contra Deus em nome da justiça de nada serve. Um mundo sem Deus é um mundo sem esperança (cf. Ef 2, 12). Só Deus pode criar justiça. E a fé dá-nos a certeza: Ele fá-lo. A imagem do Juízo Final não é primariamente uma imagem aterradora, mas de esperança; a nosso ver, talvez mesmo a imagem decisiva da esperança. Mas não é porventura também uma imagem assustadora? Eu diria: é uma imagem que apela à responsabilidade. Portanto, uma imagem daquele susto acerca do qual diz Santo Hilário que todo o nosso medo tem seu lugar no amor.

Deus é justiça e cria justiça. Tal é a nossa consolação e a nossa esperança. Mas, na sua justiça, Ele é conjuntamente também graça. Isto podemos sabê-lo fixando o olhar em Cristo crucificado e ressuscitado. Ambas – justiça e graça – devem ser vistas na sua justa ligação interior. A graça não exclui a justiça. Não muda a injustiça em direito. Não é uma esponja que apaga tudo, de modo que tudo quanto se fez na terra termine por ter o mesmo valor. […]

O fogo provará o que vale a obra de cada um

São Paulo, na Primeira Carta aos Coríntios, dá-nos uma ideia da distinta repercussão do juízo de Deus sobre o homem, conforme as suas condições. Fá-lo com imagens que, de alguma forma, querem exprimir o invisível, mas sem as podermos transformar em conceitos, pelo simples motivo de que não nos é possível entrever o mundo além da morte nem possuímos qualquer experiência dele. Acerca da existência cristã, Paulo afirma antes de mais que está construída sobre um fundamento comum: Jesus Cristo.

Este fundamento resiste. Se nele permanecermos firmes e sobre ele construirmos a nossa vida, sabemos que este fundamento não nos pode ser tirado, nem mesmo na morte. E Paulo continua: “Se alguém edifica sobre este fundamento com ouro, prata, pedras preciosas, madeiras, feno ou palha, a obra de cada um ficará patente, pois o dia do Senhor a fará conhecer. Pelo fogo será revelada, e o fogo provará o que vale a obra de cada um. Se a obra construída subsistir, o construtor receberá a paga. Se a obra de alguém se queimar, sofrerá a perda. Ele, porém, será salvo, como que através do fogo” (3, 12-15). […]

Alguns teólogos recentes são de parecer que o fogo que simultaneamente queima e salva é o próprio Cristo, o Juiz e Salvador. O encontro com Ele é o ato decisivo do Juízo. Ante o seu olhar, funde-se toda a falsidade. É o encontro com Ele que, queimando-nos, nos transforma e liberta para nos tornar verdadeiramente nós mesmos.

As coisas edificadas durante a vida podem então revelar-se palha seca, pura fanfarronice e desmoronar-se. Porém, na dor deste encontro, em que o impuro e o nocivo do nosso ser se tornam evidentes, está a salvação. O seu olhar, o toque do seu coração cura-nos através de uma transformação certamente dolorosa “como pelo fogo”. Contudo, é uma dor feliz, em que o poder santo do seu amor nos penetra como chama, consentindo-nos no final sermos totalmente nós mesmos e, por isso mesmo, totalmente de Deus.

A Encarnação uniu justiça e graça

Deste modo, torna-se evidente também a compenetração entre justiça e graça: o nosso modo de viver não é irrelevante, mas a nossa sujeira não nos mancha para sempre, se ao menos continuamos inclinados para Cristo, para a verdade e para o amor. No fim de contas, esta sujeira já foi queimada na Paixão de Cristo. No momento do Juízo, experimentamos e acolhemos este prevalecer do seu amor sobre todo o mal no mundo e em nós. A dor do amor torna-se a nossa salvação e a nossa alegria. […]

Deus é justiça e cria justiça; tal é a nossa
consolação e a nossa esperança O Juízo Final
Catedral de Angoulême (França)

O Juízo de Deus é esperança quer porque é justiça, quer porque é graça. Se fosse somente graça que torna irrelevante tudo o que é terreno, Deus ficar-nos-ia devedor da resposta à pergunta acerca da justiça – pergunta que se nos apresenta decisiva diante da História e do mesmo Deus. E, se fosse pura justiça, o Juízo em definitivo poderia ser para todos nós só motivo de temor.

A encarnação de Deus em Cristo uniu de tal modo um à outra, o juízo à graça, que a justiça ficou estabelecida com firmeza: todos nós cuidamos da nossa salvação “com temor e tremor” (Fl 2, 12). Apesar de tudo, a graça permite-nos a todos nós esperar e caminhar cheios de confiança ao encontro do Juiz que conhecemos como nosso “advogado”, parakletos (cf. I Jo 2, 1).

Esperança também para os outros

Há ainda um motivo que deve ser mencionado aqui, porque é importante para a prática da esperança cristã. No antigo judaísmo, existe também a ideia de que se possa ajudar, através da oração, os defuntos no seu estado intermédio. A prática correspondente foi adotada pelos cristãos com grande naturalidade e é comum à Igreja oriental e ocidental. […]

Ninguém vive só. Ninguém peca sozinho. Ninguém se salva sozinho. Continuamente entra na minha existência a vida dos outros: naquilo que penso, digo, faço e realizo. E, vice-versa, a minha vida entra na dos outros: tanto para o mal como para o bem. Deste modo, a minha intercessão pelo outro não é de forma alguma uma coisa que lhe é estranha, uma coisa exterior, nem mesmo após a morte. […]

A nossa esperança é sempre essencialmente também esperança para os outros; só assim é verdadeiramente esperança também para mim. Como cristãos, não basta perguntarmo-nos: como posso salvar- -me a mim mesmo? Deveremos antes perguntar-nos: o que posso fazer a fim de que os outros sejam salvos e nasça também para eles a estrela da esperança? Então terei feito também o máximo pela minha salvação pessoal. (Revista Arautos do Evangelho, Novembro/2018, n. 203, p. 06-07)

Bento XVI. Excertos da Encíclica Spe salvi, 30/11/2007

 
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