Artigos


História da Igreja


Sacramentos da Antiga e da Nova Lei
 
AUTOR: PE. ANDERSON FERNANDES PEREIRA, EP
 
Decrease Increase
Texto
Solo lectura
0
0
 

Existiram sacramentos antes da vinda de Cristo? Quais eram? Que efeitos produziam? Adentremo-nos, pela mão de São Tomás de Aquino, no apaixonante tema da História da salvação.

Por um ato de misericórdia e bondade, Deus criou o universo e, como obra-prima dentre as criaturas visíveis, fez o homem à sua imagem e semelhança, destinado a participar de sua vida divina.

Mas nossos primeiros pais, pelo pecado de desobediência, quebraram tragicamente a aliança estabelecida com Deus e, a partir daquele momento, todo o gênero humano ficou privado da graça divina e condenado a não mais participar do fim para o qual Deus o havia criado.

Por sua infidelidade, o homem perdeu o maior dos tesouros confiados a ele: a graça. Foi-lhe fechada não só a porta do Paraíso Terrestre, mas também a do Céu. Entretanto, “Deus amou tanto o mundo que lhe deu seu Filho Unigênito” (Jo 3, 16) e a todos quantos cressem no seu nome, concedeu o poder de se tornarem filhos de Deus (cf. Jo 1, 12).

A Santa Igreja continua a missão de Cristo

Se duro foi o castigo infligido pela justiça divina pelo pecado cometido, doce e suave foi a solução encontrada pela misericórdia infinita do Criador, assim descrita por Santo Anselmo: “Diz-me o Pai: ‘Toma o meu Filho Unigênito e oferece-O a Mim, em teu lugar’. E o Filho diz: ‘Toma-Me, e oferece-Me, por ti, a meu Pai'”.1

Sacrifícios de Caim e Abel, por Jacob Bouttats - Museu de Navarra, Pamplona (Espanha).jpg

“Passado algum tempo, ofereceu Caim frutos da terra
em oblação ao Senhor” (Gn 4, 3)

Sacrifícios de Caim e Abel, por Jacob Bouttats Museu
de Navarra, Pamplona (Espanha)

Com a vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo à Terra, “a revelação de Deus entrou no tempo e na História”, e esta torna-se, assim, “o lugar onde podemos constatar a ação de Deus em favor da humanidade”.2 Através de seu oferecimento ao Pai Eterno em favor dos homens, Nosso Senhor Jesus Cristo reparou o pecado e restaurou a amizade entre as criaturas e o Criador. Pelos seus merecimentos, podia agora a humanidade experimentar uma nova relação com Deus, sendo novamente partícipe de sua própria vida e natureza: “De sua plenitude todos nós recebemos graça sobre graça” (Jo 1, 16).

Poderia Deus distribuir diretamente suas graças a todo o gênero humano. Quis, porém, por um misterioso e admirável desígnio, “comunicá-las por meio da Igreja visível, formada por homens, a fim de que por meio dela todos fossem, em certo modo, seus colaboradores na distribuição dos divinos frutos da Redenção”.3 A Igreja é, desta forma, a continuadora da obra começada pelo Salvador.

Graças que amparam o homem desde o berço

A vida e os ensinamentos de Cristo deitam luz sobre a existência do homem e traçam-lhe uma meta que pareceria exagero se não fosse proposta pelo próprio Filho de Deus: “Sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5, 48). Como pode o homem, tão frágil e volúvel, atingir este alto objetivo?

Certamente seria difícil imaginar pais que dissessem a um filho ainda criança: “Além de lhe dar a vida, cuidamos de você até hoje. De agora em diante, entretanto, não conte mais conosco. Arranje-se como puder, para comprar alimentos, roupas e remédios, caso adoeça. Não nos incomode mais com suas necessidades”. Se nenhum coração paterno ou materno trata desse modo o seu filho, sobretudo Deus assim não age (cf. Lc 11, 13).

Da mesma forma como o Criador dotou o corpo humano de energias especiais para manter-se, crescer e se desenvolver, “o Salvador do gênero humano providenciou admiravelmente ao seu Corpo Místico, enriquecendo-o de Sacramentos, que com uma série ininterrupta de graças amparam o homem desde o berço até ao último suspiro”.4

“São esses Sacramentos que fazem a Igreja”

Os Sacramentos estão presentes em toda a vida da Igreja, existem por meio dela e para ela, e, segundo afirmação de Santo Agostinho, “são esses Sacramentos que fazem a Igreja”.5

Cristo instituiu os Sacramentos do Batismo, Crisma, Eucaristia, Penitência e Unção dos Enfermos para o homem poder alcançar, recuperar e aumentar a graça de Deus ao longo de sua vida.

Assim, aos que nasceram para esta vida mortal, lhes é infundida a vida da graça através do Batismo, pelo qual se tornam membros da Igreja, aptos a receber todos os outros dons sagrados. Com a Crisma, o cristão passa a ser um miles Christi, soldado de Cristo, recebendo as forças necessárias para proclamar e defender sua fé. Pela Confissão, a Igreja oferece a seus filhos o perdão dos pecados e novo vigor em sua marcha rumo ao Céu. Pela Eucaristia, “fonte e ápice de toda a vida cristã”,6 os fiéis não somente são alimentados e fortificados, mas manifestam a unidade de todos entre si, constituindo um só Corpo unido a Cristo, sua Cabeça. E, pela Unção dos Enfermos, a Santa Igreja ampara e consola os doentes, concedendo às almas feridas o remédio sobrenatural que lhes abrirá a porta do Céu, onde poderão gozar da eterna bem-aventurança.7

Além do mais, a fim de prover o “aumento externo e bem ordenado da sociedade cristã”,8 instituiu Cristo o Matrimônio, constituindo a família como uma igreja doméstica, a fim de que, pela palavra e pelo bom exemplo, os pais possam ser verdadeiros e dignos reflexos de Deus para os próprios filhos.9

Por fim, pelo Sacramento da Ordem, Cristo provê a Igreja de pastores que cuidem do rebanho, sustentando-o com o Pão dos Anjos e com o alimento da doutrina, dirigindo-o com os conselhos, e fortalecendo-o de todas as formas com as graças celestes, especialmente através da distribuição dos Sacramentos.10

Moisés celebra a Páscoa - Igreja da Santíssima Trindade, Cracóvia (Polônia).jpg
A imolação do cordeiro pascal, preceituada aos judeus antes
da saída do Egito, é uma figura da Eucaristia

Moisés celebra a Páscoa – Igreja da Santíssima Trindade, Cracóvia (Polônia)

Houve sacramentos no Antigo Testamento?

Quanta misericórdia e sabedoria encerram os Sacramentos! Quanta alegria e segurança nos dá o fato de termos à nossa disposição tantos auxílios sobrenaturais!

Estas considerações, entretanto, trazem-nos à mente uma questão: como a humanidade obtinha ou readquiria a graça de Deus nos milênios anteriores à vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo? Como podiam os homens salvar-se antes da Redenção?

Houve sacramentos no período do Antigo Testamento?

São Tomás de Aquino afirma que “já antes da vinda de Cristo convinha houvesse sinais sensíveis, pelos quais o homem professasse sua fé na vinda futura do Salvador. Tais sinais se chamam sacramentos”.11

De fato, parece ser contrário à misericórdia de Deus – o qual “quer que todos os homens se salvem” (I Tim 2, 4) – que fossem deixadas sem meio algum de salvação, antes da vinda do Redentor, tanto as crianças que morressem antes do uso da razão, quanto as pessoas que precisassem obter o perdão de seus pecados atuais.

Pode-se falar, portanto, da existência de certos sacramentos no período anterior à vinda do Messias. Eles não podiam causar a graça por força própria, como acontece com os Sacramentos atuais por serem instrumentos de Cristo, mas eram sinais de seus futuros méritos.12

Vejamos quais eram esses sacramentos e, para isso, dividamos o Antigo Testamento em dois períodos: o da lei natural, anterior à entrega dos Dez Mandamentos a Moisés, e o da Lei escrita, que finaliza com a Redenção.

Período da lei natural

Segundo São Tomás de Aquino, “já antes da Lei escrita existiam certos sacramentos de necessidade, tais como o sacramento da fé, que se ordenava a apagar o pecado original, e o da penitência, em ordem a apagar o pecado atual”.13 Entre esses sacramentos da fé costuma-se enumerar em primeiro lugar o remedium naturæ (remédio da natureza). “Não se sabe em que consistia”, explica Royo Marín, “mas parece que se tratava de alguma manifestação externa de fé no Messias vindouro, realizada pelo próprio interessado ou por seus pais, que teria sido ordenada por Deus para remédio do pecado original”. 14 Em certo sentido, equivaleria ao primeiro dos nossos atuais Sacramentos, pois, como explica São Gregório, “o que a água do Batismo pode para nós, entre os antigos as crianças só o obtinham através da fé”.15

Costuma-se mencionar também entre os sacramentos da fé a circuncisão prescrita por Deus a Abraão (cf. Gn 17, 10?14), a qual purificava do pecado original os filhos varões. “Desde que foi instituída no povo de Deus, a circuncisão tornou-se sinal da justiça e da fé, e conferia aos meninos, de maneira profética, a remissão do pecado original”16 – explica Santo Agostinho.

Haveria também, conforme aponta o padre Royo Marín baseando-se em São Tomás, uma espécie de sacramento de penitência, tendo por efeito a remissão dos pecados atuais. “Tiveram tal caráter”, explica o mesmo teólogo, “os chamados sacrifícios pelo pecado ou pelo delito, promulgados posteriormente de forma mais determinada pela Lei de Moisés”. 17 Nessa categoria podemos incluir também os dízimos e oblações. Exemplos dessa forma de penitência aparecem já nas primeiras páginas da Sagrada Escritura: “Passado algum tempo, ofereceu Caim frutos da terra em oblação ao Senhor. Abel, de seu lado, ofereceu dos primogênitos do seu rebanho e das gorduras dele” (Gn 4, 3?4).

Os sacramentos da Antiga Lei

Se no período da lei natural podemos afirmar, com São Tomás, terem existido certos sacramentos de necessidade, é teologicamente certa, segundo Royo Marín,18 a existência, depois de Moisés, do que poderíamos chamar de sacramentos da Antiga
Lei.

Nesse período, a circuncisão é reafirmada por Deus: “O Senhor disse a Moisés: […] No oitavo dia far-se-á a circuncisão do menino” (Lv 12, 1.3); e permanece obrigatória para os varões israelitas como uma figura do futuro Batismo. Fostes circuncidados, ensina o Apóstolo, “com circuncisão não feita por mão de homem, mas com a circuncisão de Cristo, que consiste no despojamento do nosso ser carnal. Sepultados com Ele no Batismo, com Ele também ressuscitastes” (Col 2, 11?12).

De outro lado, a imolação do cordeiro pascal, preceituada aos judeus antes da saída do Egito (cf. Ex 12, 3?11), é uma figura da Eucaristia, ainda segundo o dizer de São Paulo: “Cristo, nossa Páscoa, foi imolado” (I Cor 5, 7). Figuras da Eucaristia eram também os pães da proposição, reservados apenas para os sacerdotes (cf. Mt 12, 4), enquanto que o cordeiro pascal era para todo o povo.

A Última Ceia - Igreja de Nossa Senhora da Consolação, Coney Island (EUA)..jpg
Os sete Sacramentos instituídos por Nosso Senhor
Jesus Cristo produzem necessariamente a
graça santificante em quem os recebe

A Última Ceia – Igreja de Nossa Senhora da
Consolação, Coney Island (EUA)

Na consagração pela qual Aarão e seus filhos receberam o sacerdócio levítico, podemos entrever uma figura do futuro Sacramento da Ordem, como está expresso na prece do rito de ordenação sacerdotal: “Já no Antigo Testamento, em sinais prefigurativos, surgiram vários ofícios por Vós instituídos […]. Do mesmo modo, derramastes copiosamente sobre os filhos de Aarão a plenitude concedida a seu pai, para que o serviço dos sacerdotes segundo a Lei fosse suficiente para os sacrifícios do tabernáculo, que eram sombra dos bens futuros”.

E o Sacramento da Confissão é prefigurado pelas purificações e pelos sacrifícios, principalmente aqueles oferecidos em expiação pelos pecados e delitos.

Sinais que produzem a graça santificante

Não há dúvida, portanto, sobre a existência antes de Cristo de certos sacramentos, enquanto sinais sensíveis que significam a graça santificante. Eles, entretanto, não tinham a capacidade de produzi-la. Não eram instrumentos de Cristo, mas apenas davam ocasião para que, em atenção aos méritos do Divino Redentor, Deus justificasse a quem os praticava.19

Os sete Sacramentos instituídos por Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo contrário, são sinais sagrados que produzem necessariamente a graça santificante em quem os recebe. Basta ministrá-los nas condições estabelecidas pela Igreja para eles agirem ex opere operato, ou seja, pelo mero fato de terem sido executados.20

Pensemos, por exemplo, no Sacramento do Batismo. Basta que alguém derrame água sobre a cabeça de um ser humano, pronunciando a fórmula estabelecida pela Igreja e com a intenção de fazer o que a Igreja faz, para que essa pessoa seja automaticamente transformada em filho adotivo de Deus e todos os seus pecados lhe sejam perdoados.

Entretanto, na Antiga Lei, para ser justificado do pecado original era preciso um ato de fé, que Deus não estava obrigado a aceitar. E o mesmo poder-se-ia dizer quanto às oblações e sacrifícios.

Quem poderia garantir, por exemplo, que o bode expiatório levou efetivamente embora para o deserto todas as culpas e pecados sobre ele depositados pelo sacerdote? Que diferença com a Era Cristã, na qual nos basta declinar com fé os pecados diante do ministro consagrado e receber dele a absolvição para termos certeza absoluta de que eles foram de fato perdoados!

Raios de luz da misericórdia divina

Tantos são os percalços e escolhos que se apresentam ao homem nas vias da santificação que muitas vezes ele tem a estranha sensação de serem inúteis seus esforços, insuficiente sua oração, duvidável sua virtude… Bate-lhe então à porta da alma a tentação do desânimo, com o consequente desejo de desistir deste árduo e glorioso caminho rumo ao Céu e abandonar-se ao comodismo, despreocupado de seu aperfeiçoamento e de sua maior união com Deus.

Nada há de mais prejudicial do que tal sentimento. Se são grandes as dificuldades para travar as mil batalhas da vida espiritual, maior deve ser a nossa confiança ao vermos brilhar os raios de luz que partem da misericórdia divina, a qual nos assiste com os Sacramentos da Santa Igreja.

Na consideração do empenho de Deus em proporcionar-nos tantos meios para nossa salvação – já desde o Antigo Testamento, como vimos acima -, devemos robustecer nossa resolução de combater os próprios defeitos e progredir na prática da virtude. Sempre por intercessão da Bem-Aventurada Virgem Maria, aproximemo-nos cada vez mais dos Sacramentos, verdadeiras maravilhas postas por Deus à disposição de todos aqueles que desejam a salvação. (Revista Arautos do Evangelho, Maio/2015, n. 161, p. 22 à 25)

 
Comentários