Tudo fazia crer que aquela seria mais uma festinha de aniversário igual às outras: família reunida, comes e bebes, sopra-velinha e o infalível “Parabéns-pra-você”. Mas o tom das vozes que vinham de fora fazia suspeitar que não só as velinhas estavam acesas.
Sentados na varanda, conversavam acaloradamente dois primos: Joaquim, professor de História, e Abelardo, arquiteto.
Tudo começou com uma troca de ideias sobre a planta da nova casa do Joaquim. Abelardo, profissional conceituado, não gostou do desenho. “Muito rebuscado”, dizia. Joaquim, naturalmente, defendia seu projeto.
O arquiteto criticava, principalmente, a preocupação com a estética, que o professor considerava primordial. Ponderava que a moderna engenharia não tem tempo a perder com esses detalhes supérfluos: “Uma casa precisa ser, sobretudo, prática e funcional” – asseverava.
Joaquim contra-argumentava com segurança, comparando os diversos estilos arquitetônicos surgidos ao longo da História, sua relação com as sociedades em que nasciam, e os efeitos que produziam sobre as pessoas.
Aos poucos os demais convivas, meio enfadados com a monotonia da festa, foram passando para a varanda. Afinal, ali fora estava mais arejado, e a conversa parecia animada. Só não imaginavam que, em breve, o terraço ficaria mais quente que o interior da casa…
E quem ateou o fogo, sem o querer, foi a boa da tia Ernestina. Procurando defender o sobrinho, sustentou que a beleza tinha importância, sim. Tanto que as igrejas eram construídas sempre de modo bonito e grandioso. Para quê?!
— Ah, isso é que não, titia! – replicou vivamente Abelardo. A senhora sabe que sou muito católico, colaboro com a minha comunidade e até já projetei uma igreja no interior. Mas arquitetura nada tem a ver com religião. A gente faz uma casa para morar, não para contemplar. Temos de ser objetivos, e a beleza é uma coisa subjetiva. Ela pode ser levada em conta, sim, mas lá no último lugar.
Todo mundo começou a falar ao mesmo tempo. Surgiram as idéias mais variadas: religião tem importância, não tem, é o “ópio do povo”, não é, é empreendimento comercial, “isso nunca!”, e daí por diante. O dono da casa, Bernardo, ouvia tudo calado, com um discreto sorriso nos lábios.
Os campos estavam divididos: Dr. Querêncio, advogado aposentado, liderava os “ateus”. Abelardo era o cabeça dos “pragmáticos”, embora dizendo-se católico praticante.
O professor Joaquim e dona Ernestina, embora convencidos de que religião e beleza têm um papel fundamental, não sabiam refutar os argumentos contrários.
Curiosamente, o maior grupo era o dos indecisos. Ora pendiam para um lado, ora para o outro, preferindo assumir comodamente a posição de meros espectadores.
O anfitrião tomou a palavra. Pai exemplar, culto, era muito respeitado na família. Fez-se espontaneamente silêncio para ouvi-lo.
— Estou achando interessantes os debates desse “parlamento”. Como vocês sabem, nem preciso dizer porque discordo do Querêncio. Sou católico convicto e, embora sejamos parentes, não temos um terreno comum para discutir. Vou dar minha opinião, isso sim, na questão principal, que foi o começo de toda a controvérsia: “se a beleza tem ou não um papel na vida diária”.
Fez uma pausa e continuou, tranquilamente:
— Mas se eu der a minha opinião pessoal, não estarei trazendo muita coisa. Vou dar para vocês algo que vale muitíssimo mais: a palavra da Igreja sobre o assunto. Aqueles para os quais essa palavra tem valor, saberão avaliar quem tem razão.
Abelardo ficou nervoso. Enquanto Bernardo entrou um momento para pegar uma revista, começou a falar rapidamente, dizendo que conhecia alguns padres que pensavam como ele, que não se pode querer aplicar à realidade moderna tudo quanto a Igreja ensinava…
De nada adiantou. Todos os olhares se concentraram em Bernardo, quando ele voltou. Abelardo ficou falando sozinho.
— Ouçam só o que encontrei nesta revista. É uma declaração do Cardeal Ratzinger, feita agora, em agosto último, num congresso do movimento Comunhão e Libertação:
“A fim de que a fé possa crescer hoje em dia, temos de levar nós mesmos e os homens e mulheres com quem nos encontramos, a procurar os Santos, a entrar em contato com a Beleza”(Meeting pela amizade entre os povos, agosto de 2002, Rimini, Itália).
— Mas isso é uma coisa que ele diz em tese, que poderia ser aplicada em qualquer época histórica, principalmente no passado, onde certos Cardeais se sentiam mais à vontade – ironizou Abelardo.
— Não sei, não – respondeu Bernardo calmamente. Note que ele diz: “A fim de que a fé possa crescer hoje em dia…” E veja esta outra declaração dele, feita num congresso de catequistas, em 2001: “Precisamente no nosso mundo de hoje temos necessidade do silêncio, do mistério supraindividual, da beleza” (L’Osservatore Romano, 6/1/2001).
— Mas isso é o que esse Cardeal está dizendo. Eu não conheço nenhum Papa que tenha afirmado coisa parecida! – balbuciou Abelardo, já meio inseguro.
— Você conhece João Paulo II? Veja só a mensagem que ele enviou, através do Secretário de Estado, Cardeal Ângelo Sodano, a esse mesmo congresso: “O refulgir da beleza contemplada abre o espírito ao mistério de Deus”.
Abelardo pôs-se a verificar o respaldar da cadeira onde, já não se encontrava confortável. Enquanto isso, Bernardo lia:
— Ele acrescenta: “A beleza tem uma força pedagógica própria para introduzir eficazmente no conhecimento da verdade. Definitivamente, leva a Cristo, que é a Verdade […] Por isso, a Bíblia, no livro da Sabedoria, recorda que ‘da grandeza e formosura das criaturas se chega, por analogia, a contemplar o seu Autor’”.
— Isso é afirmação de um outro Cardeal, não é diretamente do Papa! – insistiu Abelardo, transpirando.
— Bem, e esta frase citada por João Paulo II em sua célebre Carta aos artistas: “A beleza salvará o mundo”?
— Não, isso são coisas modernas que eles agora estão dizendo. Antigamente não falavam assim. Eles sabiam ficar dentro dos limites das igrejas e das sacristias… – gaguejou Abelardo, sem se dar conta da contradição em que incorria.
— Não seja por isso. Tenho aqui um trecho da encíclica Quas Primas de Pio XI que diz o seguinte: “Composto de corpo e alma, precisa o homem dos incitamentos exteriores das festividades, para que através da variedade e beleza dos sagrados ritos, recolha no ânimo a divina doutrina, e, transformando-a em substância e sangue, tire dela novos progressos em sua vida espiritual”.
Bernardo esclareceu:
— E note, Abelardo, que neste documento, Pio XI instituía a festa de Cristo Rei, destacando a importância das procissões e cerimônias litúrgicas como modo de propagar a fé bem para fora do recinto das sacristias…
Abelardo estava atônito, sem saber o que dizer. Para manter a conversa, Bernardo acrescentou:
— Tem mais esta outra declaração de…
— Basta! Basta, Bernardo! Estou confuso demais para continuar a discussão. Sempre achei que a beleza era uma coisa teórica, divorciada da realidade concreta. Mas agora, sinto vacilar meus alicerces mentais…
— Minha intenção não era esta, Abelardo. Mas se nossa conversa o ajudar a “reconstruir” seu edifício mental, eu só posso ficar contente.
A roda foi se desfazendo naturalmente. Alguns aproveitaram para se despedir, pensativos. Abelardo em primeiro lugar, é claro. Outros ficaram conversando mais um pouquinho. Logo que pôde, Joaquim se aproximou e perguntou, com avidez:
— Que revista é essa, hein, Bernardo? Quero conhecer…
Bernardo mostrou-lhe, então, a revista que você, leitor, tem nas mãos.