Na sala de concertos repleta, a orquestra sinfônica acaba de executar uma famosa obra. O espetáculo é um só, mas muitas são as impressões no auditório.
Alguns ouvintes admiram a uniformidade no movimento dos arcos; outros apreciam melhor a precisão do timpanista; outros, por fim, sentem-se mais atraídos pelos timbres dos clarinetes e dos oboés, pelos graves do fagote ou pelo brilho dos trompetes.
Uma parte da assistência enaltece o gênio do compositor, outra exalta o do maestro, que conhece todos os detalhes da partitura e rege a execução.
Em suma: todos admiram a música, mas a variedade de impressões é proporcional ao número de assistentes, consequência de mil fatores relacionados ao temperamento, aos gostos, ao caráter, à cultura ou à personalidade de cada ouvinte.
Necessidade da diversidade para representar a bondade divina
A situação acima descrita constitui um exemplo adequado do que acontece com os homens quando contemplam a criação: esta é uma só, mas são infindáveis as perspectivas através das quais pode ser contemplada.
Estas perspectivas correspondem aos pontos de vista de quem observa, ou melhor, de quem admira.
Tais pontos de vista, por sua vez, dependem de uma maravilhosa e harmônica conjugação de dons naturais e sobrenaturais concedidos por Deus a cada pessoa com a finalidade de dar-lhe a possibilidade de conhecê-Lo, glorificá-Lo e adorá-Lo de maneira única.
Há uma razão para esta forma peculiar de cada homem adorar a Deus, como explica São Tomás:
Deus produziu as coisas no ser para comunicar sua bondade às criaturas, bondade que elas devem representar.
Como uma única criatura não seria capaz de representá-la suficientemente, Ele produziu criaturas múltiplas e diversas a fim de que o que falta a uma para representar a bondade divina seja suprido por outra.1
Assim como Deus não pode ser representado por uma única criatura, não podia Ele criar homens que O compreendessem e adorassem de uma mesma forma.
Destarte, dispôs a Divina Providência que cada ser humano seja único e tenha certas apetências particularíssimas para fixar sua atenção admirativa em determinados aspectos de Deus.
Tais apetências se ligam a fatores hereditários, culturais e sociais, e são incentivadas constantemente pela graça de Deus.
Em muitas de suas palestras e conferências, o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira comentou esta conjugação de graça e natureza, dando-lhe o expressivo nome de luz primordial. Posteriormente, os profundos comentários por ele feitos sobre este tema foram desenvolvidos em várias teses acadêmicas, de mestrado e de doutorado.
A luz primordial hierarquiza as virtudes
Conforme explica Plinio Corrêa de Oliveira, quando alguém sente que um determinado tipo de paisagem, um gênero literário ou musical ou certo assunto elevam especialmente seu pensamento para Deus e a convidam a praticar a virtude, no fundo, é sua luz primordial que está agindo.
Pois ela ordena as virtudes do homem, inspirando suas preferências e dando o tônus com o qual cada um pratica certo ato.
A luz primordial constitui, antes de tudo, uma determinada hierarquização de perfeições.
Por exemplo, a pessoa admira, antes de qualquer outra virtude, a fortaleza, depois a justiça, depois a prudência, e assim por diante. Ou admira primeiro a honra, depois a coragem, depois a humildade, etc.
É preciso, entretanto, observar que a perfeição dominante dá às secundárias uma certa tonalidade, de tal modo que todas as outras têm um tom da principal.
É o que Santa Teresinha dizia quando observava que, para ela, até a justiça de Deus estava embebida de amor.2
Esta percepção de que até mesmo a justiça divina se exerce com amor era a luz primordial da Santa de Lisieux.
O Prof. Plinio dá outro exemplo: “Santo Inácio era muito bom político, mas, observando-o bem, vê-se que sua luz primordial não era a política, mas a integridade de espírito e de vontade em tudo quanto fazia”.3
Critério para analisar e definir a dignidade humana
Por desígnio divino, todos os seres humanos – sem exceção, e apesar de suas eventuais mazelas e imperfeições – são portadores de uma luz primordial, uma maravilha digna de admiração e de homenagem.
Todo homem é dotado de uma “cintilação de Deus”, posta pelo Criador exclusivamente em sua alma: Ele não colocou nem colocará em nenhuma outra ao longo de toda a História. “Cada homem é, por assim dizer, um momento único da História de Deus”.4
Muito se fala hoje em dignidade humana. Juristas, filósofos e intelectuais de todos os naipes tentam encontrar parâmetros para defini-la. Eis uma proposta para fazê-lo de forma cristã: procurar em cada pessoa a luz primordial posta por Deus.
Por débil que seja o seu brilho na aparência, ela participa daquilo que representa, ou seja, de Deus.
Por isso, não é exagerado imaginar as palavras do Divino Mestre a respeito dos lírios do campo sussurradas no ouvido do leitor: Nem Salomão em toda sua glória conseguiria ter uma luz primordial como a que Eu te dei!