Em todos os continentes, ao longo dos séculos

O canto de louvor que ressoa eternamente nas moradas celestes e que Jesus Cristo, Sumo Sacerdote, introduziu nesta terra de exílio, foi sempre repetido pela Igreja no decorrer dos séculos, constante e fielmente, na maravilhosa variedade das suas formas.[1]

A Constituição apostólica Laudis canticum – mediante a qual em 1970 o Papa Paulo VI promulgou o Ofício divino, na dinâmica da renovação litúrgica inaugurada pelo Concílio Vaticano II – exprime em primeiro lugar a profunda vocação da Igreja, chamada a viver o serviço quotidiano da ação de graças num incessante louvor à Trindade.

A Igreja recorre ao seu canto perpétuo na polifonia das múltiplas formas de arte.

A sua tradição musical constitui um patrimônio de valor inestimável, dado que a música sacra é chamada a traduzir a verdade do mistério que se celebra na liturgia.[2]

Em conformidade com a antiga tradição judaica, com que Cristo e os Apóstolos foram alimentados, a música sacra desenvolveu-se ao longo dos séculos em todos os continentes, segundo o gênio próprio das culturas, manifestando o magnífico impulso criador demonstrado pelas diferentes famílias litúrgicas do Oriente e do Ocidente.

O último Concílio recebeu a herança do passado e levou a cabo um precioso trabalho sistemático em perspectiva pastoral, dedicando à música sacra um capítulo inteiro da Constituição sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium.

No tempo do Papa Paulo VI, a Sagrada Congregação para os Ritos especificou a atuação desta reflexão através da Instrução Musicam sacram (5 de março de 1967).

O gregoriano, canto próprio da liturgia romana

A música sacra constitui uma parte integrante da liturgia.

O canto gregoriano, reconhecido pela Igreja como “canto próprio da liturgia romana”[3], é um patrimônio espiritual e cultural único e universal, que nos foi transmitido como a expressão musical mais límpida da música sacra, ao serviço da Palavra de Deus.

A sua influência sobre o desenvolvimento da música na Europa foi considerável.

Tanto os eruditos trabalhos de paleografia da Abadia de São Pedro de Solesmes e a edição das recopilações do canto gregoriano, fomentadas pelo Papa Paulo VI, como também a multiplicação dos coros gregorianos, contribuíram para a renovação da liturgia e da música sacra em particular.

Embora reconheça o lugar proeminente do canto gregoriano, a Igreja mostra-se também acolhedora no que diz respeito a outras formas musicais, especialmente a polifonia.

Em todo caso, é oportuno que estas várias formas musicais estejam em harmonia “com o espírito da ação litúrgica”.

A partir desta perspectiva, é particularmente evocadora a obra de Pierluigi de Palestrina, o mestre da polifonia clássica. Sua inspiração transformou-o em modelo para compositores de música sacra, que ele colocou ao serviço da liturgia.

A música de órgão, a instrumental e a popular

De forma especial a segunda metade do século XX testemunhou o desenvolvimento da música religiosa popular, de harmonia com o desejo expresso pelo Concílio Vaticano II, a fim de ser esta forma de canto “promovida com vigor”.[4]

Esta forma de canto é particularmente adequada para a participação dos fiéis, tanto nas práticas devocionais como na própria liturgia.

Ela exige dos compositores e dos poetas a qualidade da criatividade, a fim de abrir os corações dos fiéis para o significado mais profundo do texto, do qual a música é instrumento.

Isto é também verdade a propósito da música tradicional, pela qual o Concílio expressava grande estima, exortando a que a mesma receba “o lugar que lhe compete, tanto na educação do sentido religioso desses povos, como na adaptação do culto à sua índole”.[5]

O canto popular, que é um vínculo de unidade e uma jubilosa expressão da comunidade em oração, promove a proclamação da única fé e oferece às grandiosas assembleias litúrgicas uma solenidade incomparável e íntima.

Durante o grande Jubileu, tive a alegria de ver e de ouvir um elevado número de fiéis, reunidos na Praça de São Pedro para celebrar em uníssono a ação de graças da Igreja.

Uma vez mais, agradeço a todas as pessoas que contribuíram para as celebrações jubilares: o uso dos recursos da música sacra, especialmente durante as comemorações pontifícias, foi exemplar.

O canto gregoriano, a polifonia clássica e contemporânea, os hinos populares, de maneira particular o Hino do Grande Jubileu, fizeram com que as celebrações litúrgicas fossem fervorosas e de excelsa qualidade.

Também às músicas de órgão e instrumental foi reservado um lugar próprio nas comemorações jubilares, e elas ofereceram uma contribuição magnífica para a união dos corações na fé e na caridade, transcendendo a diversidade das línguas e das culturas.

No Ano Jubilar também teve lugar a realização de numerosos eventos culturais, de modo especial concertos de música religiosa. Esta forma de expressão musical que é, por assim dizer, uma extensão da música sacra em sentido estrito, tem um significado singular.

Hoje, […] desejo agradecer aos compositores, diretores de orquestras, músicos e cantores, e também aos responsáveis pelas sociedades, organizações e associações musicais.

Agradecer os seus esforços na promoção de um repertório culturalmente rico, que dá expressão aos grandes valores ligados à revelação bíblica, à vida de Cristo e dos Santos, e aos mistérios da vida e da morte, celebrados pela liturgia cristã.

De igual modo, a música religiosa edifica pontes entre a mensagem de salvação e as pessoas que, embora ainda não aceitem Cristo plenamente, são sensíveis à beleza, porque “a beleza é chave do mistério e apelo ao transcendente”.[6] A beleza torna possível um diálogo fecundo.

É preciso ter uma sólida formação cultural e musical

A aplicação das orientações do Concílio Vaticano II acerca da renovação da música sacra e do canto litúrgico de modo particular nos coros, nas capelas musicais e nas Scholae Cantorum exige hoje dos pastores e dos fiéis uma sólida formação a níveis cultural, espiritual, litúrgico e musical.

Além disso, requer uma reflexão aprofundada, para definir os critérios de constituição e de difusão de um repertório de qualidade, que consinta à expressão musical servir de maneira apropriada o seu fim último, que é “a glória de Deus e a santificação dos fiéis”.[7]

Isto vale em particular para a música instrumental. Embora o órgão de tubos permaneça o instrumento da música sacra por excelência, as composições musicais hodiernas integram formações instrumentais cada vez mais diversificadas.

Formulo votos para que esta riqueza ajude a Igreja em oração, a fim de que a sinfonia do seu louvor esteja de harmonia com o “diapasão” de Cristo Salvador.

A indispensável contribuição de músicos e artistas

Diletos amigos músicos, poetas e liturgistas, a vossa contribuição é indispensável.

Quantas composições sacras foram elaboradas, ao longo dos séculos, por pessoas profundamente imbuídas pelo sentido do mistério!

Crentes sem número alimentaram a sua fé com as melodias nascidas do coração de outros fiéis, que se tornaram parte da Liturgia ou pelo menos uma ajuda muito válida para a sua condigna realização.

No cântico, a fé é sentida como uma exuberância de alegria, de amor, de segura esperança da intervenção salvífica de Deus.[8]

Estou convicto de que posso contar com a vossa generosa colaboração para conservar e incrementar o patrimônio cultural da música sacra, ao serviço de uma liturgia fervorosa, lugar privilegiado de inculturação da fé e de evangelização das culturas.

Por este motivo, confio-vos à intercessão da Virgem Maria, que soube cantar as maravilhas de Deus, e concedo com afeto, a vós e às pessoas que vos são queridas, a Bênção apostólica.

 

 

 

Notas
[1] Laudis canticum. Ed. port. de L’Osservatore Romano de 25 de julho de 1971, pág. 9.
[2] Cf. Sacrosanctum Concilium, 112.
[3] Sacrosanctum Concilium, 116.
[4] Ccf. Ibid., n. 118.
[5] Ibid., n. 119.
[6] Carta aos Artistas, 16.
[7] Sacrosanctum Concilium, 112.
[8] Carta aos Artistas, 12.