Os problemas morais e sociais, tão numerosos e muitas vezes dramáticos, interpelam-nos enquanto Igreja, institutos de vida consagrada e sociedades de vida apostólica.

Estimulam-nos a manter viva no mundo “a forma de vida que Jesus, supremo consagrado e missionário do Pai para o seu Reino, abraçou e propôs aos discípulos que O seguiam”. […]

Risco de desvirtuar a vida consagrada

A pressão exercida pela cultura dominante – que apresenta com insistência um estilo de vida fundado na lei do mais forte, no lucro fácil e sedutor, na desagregação dos valores da pessoa, da família e da comunidade social – influencia inevitavelmente nosso modo de pensar, nossos projetos e as perspectivas de nosso serviço, com o risco de os esvaziar da motivação da fé e da esperança cristãs que os tinham suscitado.

Os pedidos de ajuda, de apoio e de serviço, numerosos e prementes, que nos fazem os pobres e os excluídos da sociedade, levam-nos a procurar soluções que estejam na lógica da eficiência, do efeito visível e da publicidade.

Desta forma, a vida consagrada corre o risco de ser incapaz de expressar as razões fortes da fé e da esperança que a animam.

Ela dificilmente consegue manifestar os valores evangélicos, dado que sua proposta de razões autênticas de vida e de esperança muitas vezes é oculta.

A tentação do ativismo pode enfraquecer a espiritualidade

Evidentemente, o problema está, sobretudo, no coração das pessoas consagradas.

Com frequência, elas não conseguem encontrar as palavras justas para testemunhar Cristo de modo claro e convincente, porque

ao lado do impulso vital, capaz de testemunho e de doação de si até ao martírio, a vida consagrada conhece também a insídia da mediocridade na vida espiritual, do aburguesamento progressivo e da mentalidade consumista.

A complexa condução das obras, mesmo sendo exigida pelas novas situações sociais e pelas legislações dos Estados, juntamente com a tentação do eficientismo e do ativismo, correm o risco de ofuscar a originalidade evangélica e enfraquecer as motivações espirituais.

A predominância de projetos pessoais sobre os comunitários pode afetar profundamente a comunhão da fraternidade.

É preciso reconhecer que, com muita frequência, não conseguimos fazer uma síntese satisfatória da vida espiritual e da ação apostólica.

Contudo, isto é absolutamente necessário, se queremos enfrentar o desafio do “novo” para o qual Cristo e a Igreja nos convidam e que a humanidade espera.

Num mundo dilacerado e fragmentado, impõe-se a todos uma profunda e autêntica unidade de coração, de espírito e de ação. […]

A raiz de muitos desvios: orgulho e sensualidade

Contudo, esse compromisso no “novo” nem sempre aconteceu seguindo critérios de discernimento evangélicos.

Por vezes a “renovação” foi confundida com a adaptação à mentalidade e à cultura dominantes, correndo o risco de esquecer os valores autenticamente evangélicos.

É inegável que “a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida” (1Jo 2, 16), próprias do mundo e de sua cultura, exerceram sua influência desorientadora, gerando graves conflitos no interior das comunidades e nas opções apostólicas, nem sempre fiéis ao espírito e às inspirações originais do instituto.

Como sempre na História, a Igreja coloca-se entre o sopro do Espírito, que abre novos caminhos, e as seduções do mundo, que tornam o caminho incerto e podem conduzir ao erro.

A Eucaristia no centro das atividades

Por esse motivo, devemos ir ao “poço” da Eucaristia. Só uma leitura eucarística das necessidades do tempo pode nos ajudar a interpretar a qualidade das novas formas de as enfrentar.

Na Eucaristia, Jesus nos aguarda e nos chama: “Vinde a Mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e Eu vos aliviarei” (Mt 11, 28). […]

A “paixão por Cristo” deve levar as pessoas consagradas a colocar no centro de sua existência e de suas atividades Jesus, presente e operante na Eucaristia.

Em torno de sua mesa, nossas orientações apostólicas terão maior garantia de fidelidade ao seu espírito e uma capacidade mais certa de fazer as opções justas.

Jesus veio anunciar a “Boa Nova” e repete-nos hoje o que disse ao Apóstolo Pedro, que regressava desanimado pela pesca infrutuosa: “Duc in altum”. É o desafio da Eucaristia.

A vida consagrada reencontra sua identidade quando deixa transparecer nos fatos a “memória viva do modo de existir e de agir de Jesus como Verbo Encarnado diante do Pai e dos irmãos. Ela é tradição viva da vida e da mensagem do Salvador”.

Esta perspectiva eucarística dá renovado vigor às motivações espirituais e nova vitalidade à ação apostólica, e leva ao seu cumprimento a consagração batismal, fundamento da identidade e da missão das pessoas consagradas. […]

A santidade: objetivo da vida consagrada

A santidade, na rica variedade de suas formas e de seus caminhos, desde sempre constitui o principal objetivo daqueles que, “tendo deixado a vida segundo o mundo, procuraram Deus e a Ele se dedicaram, nada antepondo ao amor de Cristo”.

Sobretudo hoje, no clima de laicismo em que vivemos, o testemunho de uma vida totalmente consagrada a Deus é uma recordação eloquente de que Deus é suficiente para encher o coração do homem. […]

A vida consagrada, em suas diversas formas, em todos os tempos e lugares, foi suscitada pelo Espírito Santo precisamente para oferecer às comunidades cristãs a imagem da perfeição evangélica. […]

Constantemente inclinadas para realizar o “desígnio de Deus acerca do homem”, as pessoas consagradas colocam-se na linha do ideal cristão comum, e não fora nem acima dele.

Com efeito, toda a Igreja espera muito do testemunho de comunidades ricas “de alegria e do Espírito Santo” (At 13, 52).

De fato, se é verdade que todos os cristãos são chamados “à santidade e à perfeição do próprio estado”, as pessoas consagradas, graças a uma “nova e especial consagração” têm a missão de fazer resplandecer a forma de vida de Cristo, através do testemunho dos conselhos evangélicos, a fim de sustentar a fidelidade de todo o Corpo de Cristo.

A vocação comum de todos os cristãos à santidade nunca pode ser um impedimento, mas deve ser um estímulo à originalidade e ao contributo específico dos religiosos e das religiosas ao esplendor da santidade de toda a Igreja. […]

A formação deve abarcar toda a vida do religioso

Há um último aspecto de importância fundamental. Em todos os setores da vida eclesial, a formação representa um elemento decisivo. Isto é válido de modo particular para as pessoas consagradas.

Desde a formação inicial será importante educar as pessoas para empregar todas as suas energias, suas capacidades e forças afetivas no seguimento radical de Cristo, descoberto progressivamente como o “único”, o “único necessário”.

Ou seja, Aquele que é fonte de vida e que pode colmar, além de qualquer palavra, o coração de um homem ou de uma mulher. […]

É necessário rever a formação das pessoas consagradas, que já não se poderá limitar a só um período da vida.

Será fundamental, numa realidade que muda em ritmos velozes, desenvolver a disponibilidade para aprender durante toda a vida, em qualquer idade, em qualquer contexto humano, de cada pessoa e cultura, a fim de poder instruir-se partindo de cada fragmento de verdade e de beleza que as circunda.

Mas será, sobretudo, necessário aprender a deixar-se formar pela realidade quotidiana, pela própria comunidade, pelos seus irmãos e irmãs, pelas coisas de todos os dias, ordinárias e extraordinárias, pela oração e pelo trabalho apostólico, na alegria e no sofrimento, até o momento da morte.

Que a experiência da Virgem Maria, Mãe de Jesus e Mãe da Igreja, a qual Se deixou formar por todos os acontecimentos da vida do seu Filho divino – “conservava todas essas coisas, meditando-as no seu coração” (Lc 2, 19) – guie também a vida consagrada, para que ela persevere na dedicação ao seu Senhor e percorra os caminhos da nova evangelização com caridade generosa e livre.

 

Texto integral em http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/ccscrlife/documents/rc_con_ccscrlife_doc_20050825_eucaristia-vita-consacrata_po.html.