Vivia num reino longínquo uma princesa chamada Leonor, filha de monarcas cristãos, tementes a Deus.

Sua linhagem era das mais ilustres, e aos feitos dos seus antepassados somava-se a piedade e retidão dos reis, seus pais, cuja virtude os tornava dignos da coroa que cingiam.

Todas as manhãs, Leonor assistia à Missa na capela do palácio, em companhia da mãe, e rogava à Rainha do Céu e da Terra que a protegesse quando lhe coubesse a responsabilidade de governar.

Terminada a Missa, encontrava-se com o pai e aplicava-se com afinco ao estudo, a fim de agradá-lo. Recebia lições de Religião, canto, bandolim e bordado, mas não descuidava a História, o latim ou a aritmética.

O palácio em que vivia contava com numerosa criadagem. Entre as cozinheiras havia uma especialmente dedicada aos soberanos: Maria.

Sua mãe e avó serviram aos pais do rei, e ela sonhava ver a filha seguir os mesmos passos… Um dia, sem que nada pedisse, a rainha a chamou e disse:

Sei que tens uma filhinha pequena, que fica sozinha em casa ao vires para cá. Não queres trazê-la contigo?

Comovida, a cozinheira começou a trazer consigo a pequena Matilde. Com apenas nove anos e muito vivaz, a menina não perdia nenhum movimento, crivando a mãe de perguntas.

Queria saber como funcionava o forno, os segredos da produção de licores, de onde saíam ovos tão grandes…

Com o tempo ela foi se acostumando à vida palaciana e passou a sentir uma inveja muda de Leonor. Por que tinha ela vestidos de seda, uma voz cristalina e tocava tão lindo instrumento? Por que estava rodeada de atenções?

Estas e outras perguntas a deixavam tristonha, embora sua consciência acusasse a maldade destes pensamentos, aconselhando-a a fugir deles.

Contudo, Matilde deixou-se levar por tais sentimentos perversos e arquitetou uma cilada…

Numa aprazível manhã, Leonor dirigiu-se a uma das sacadas do palácio, da qual se contemplava uma bela vista do jardim.

Antes de ali chegar, Matilde correu na frente e empurrou a cadeira em que ela certamente se sentaria para um canto coberto por vegetação, onde não havia segurança.

A princesa estranhou ao ver que Matilde voltava da sacada e se esgueirava para o salão a toda pressa… Mas encantada como estava com as flores, sentou-se sem prestar atenção no perigo. E bastou-lhe um ligeiro movimento para precipitar-se no vazio!

Um grito lancinante ecoou pelas paredes do palácio. Que teria acontecido?! Os guardas chegaram e se depararam com a princesa alquebrada, tentando em vão se levantar. Ao ser examinada pelo médico, este constatou uma séria lesão numa das pernas, embora se esperasse algo mais grave, pelo impacto da queda.

Foi Deus que me amparou! – balbuciou Leonor – Poderia ter sido pior. E se Ele permitiu que este mal me acontecesse, foi para tirar dele algum bem.

O desastre parecia ter sido um infortunado acidente… A princesa, no entanto, desconfiava de Matilde, por seu olhar sombrio nos últimos dias e por sua sorrateira saída da sacada naquela manhã… Todavia, decidiu guardar para si qualquer suspeita e não levantou o assunto com o pai.

Passou-se o tempo e a princesa se submetia a penosos tratamentos, que não surtiam maiores efeitos. Só depois de dois anos voltou a andar, porém com uma sequela irreversível: ficara manca!

Atormentada pelo remorso e temendo ser descoberta, Matilde pedira à mãe para ausentar-se do palácio.

Com pesar a boa senhora – que sequer imaginava o ponto ao qual chegara a maldade da filha – a viu voltar ao vilarejo. Em pouco tempo a menina estava envolvida com jovens devassos, que a levaram por péssimos caminhos.

Transcorreram-se as décadas e tudo mudou. Leonor crescera, dando mostras de ser herdeira não só do reino como das virtudes do pai. Com a partida do rei para a eternidade, a princesa tornara-se rainha e governava com prudência e sabedoria.

Um dia, durante as audiências, ouviu-se ecoar pelo castelo gritos desesperados, implorando misericórdia. Era uma mulher acorrentada, com os cabelos desgrenhados e ferida, pertencente a uma quadrilha de salteadores.

Havia roubado somas astronômicas e, ao ser capturada, fora condenada à prisão perpétua. Antes de ir para o calabouço, contudo, ela suplicava para ser recebida pela soberana, por razões que explicaria pessoalmente.

A rainha Leonor mandou-a entrar e não tardou em reconhecê-la… era Matilde! Trinta anos depois, estava reduzida a uma mísera situação.

Majestade, sou Matilde, filha de vossa falecida e leal servidora. Fui justamente condenada e sei que ainda mereço castigo pior… Entretanto, implorei para ser trazida aqui porque quero confessar vos o pior de meus crimes: sou a responsável pela vossa deficiência física!

E explicou o ocorrido:

— Eu empurrei vossa cadeira para aquele canto da sacada, a fim de cairdes! Eu vos ofendi e mereço estas penas… Agora, rogo vosso perdão e vossa clemência para poder me reconciliar com Deus, que não abandona um coração arrependido!…

Tão surpreendentes palavras foram pronunciadas num só fôlego e um pesado silêncio de indignação pairou no ambiente. Todos os olhares se voltaram para a rainha, esperando o veredicto.

Matilde, agiste mal em relação a meu povo e a mim. Há muito que ouço contar as reprováveis ações de tua quadrilha. Não obstante, como soberana cristã devo imitar Aquele que, no alto do Calvário, perdoou os que O ofendiam. Em Deus a misericórdia triunfa da justiça e, se quero conservar o mais sublime de meus títulos, o de ser católica, devo seguir seus passos. Pedes-me perdão pela ofensa que me fizeste: está concedido!

E a soberana concluiu:

— E para que meus súditos tenham prova de teu arrependimento, deverás permanecer três anos reclusa fazendo penitência, assistida por um capelão que te reconcilie com Deus e te reconduza pelos caminhos do bem. Então, virás trabalhar no palácio em lugar de tua mãe, que decerto intercede por ti, do Céu. Esta será a prova de minha clemência.

A pobre mulher emendou-se e chorou seus pecados, vindo depois a servir fielmente na corte. A notícia espalhou-se por todo o reino, que louvou a Deus por lhes ter dado uma rainha tão santa!