Quarenta homens trajando capas de cor roxa avançam pelas estreitas ruas, sob um sol generoso, portando o pesado andor da imagem do Senhor Bom Jesus, enquadrada em rica moldura de ouro e prata.
O reitor da Irmandade dá um toque de sino e todos param. Outra equipe de quarenta portadores se apresenta para levar o “Cristo Moreno” pelas ruas seguintes.
Onde estamos? Em Lima, na tradicional Procissão do Senhor dos Milagres.
Mas só em Lima? Não. Esta popular devoção está hoje difundida por todo o mundo. Com as necessárias adaptações – mas procurando sempre manter as características e o espírito da procissão original – ela se repete em diversos países da América à Ásia.
Intacta no meio do terremoto
No século XVII, a Capital peruana era constituída por um variado mosaico de imigrantes, entre os quais os nativos da África Ocidental.
Na metade desse século, os negros de raça angolana fundaram uma confraria na zona de Pachacamilla e edificaram no local sua sede, um galpão de grossas paredes de adobe.
Um dos piedosos confrades resolveu pintar na parede uma imagem de Cristo crucificado.
Fruto da graça e de um coração devoto, a imagem resultou notável, não só devido ao seu feitio artístico, mas pela representação que proporciona dos mistérios da fé.
Acima de Cristo crucificado, estão figurados o Padre Eterno e o Espírito Santo; à direita, a Santíssima Virgem, com o coração transpassado por uma espada, e Santa Maria Madalena.
Em 1655 um terremoto abalou a cidade de Lima, destruindo muitos edifícios e ocasionando milhares de mortes. A sede da Confraria dos Angolanos veio também abaixo. Mas, com uma exceção milagrosa: a parede na qual estava pintado o quadro de Nosso Senhor permaneceu intacta, sem nenhum arranhão!
Surto inicial de devoção
Desse prodigioso fato, que encheu de júbilo os fiéis da localidade, nasceu a devoção popular ao Senhor dos Milagres.
Os habitantes de Lima passaram a pedir o perdão de Deus diante da milagrosa imagem, pois intuíam bem a relação entre seus pecados e a catástrofe que os tinha golpeado.
No entanto, o pároco da Matriz de São Marcelo, sob cuja jurisdição se encontrava a Confraria, mostrava-se temeroso de que esse surto de devoção popular acabasse por redundar em superstição profana.
Por este motivo, solicitou à autoridade competente a demolição da parede.
Nosso Senhor, porém, velava de forma especial sobre essa sua imagem sagrada, e ela permaneceu ilesa. Apesar das legítimas desconfianças das autoridades, aumentava o número das pessoas que para lá acorriam pedindo favores e graças ao Senhor.
Milagrosa cura
Entretanto, por razões inexplicáveis, começou a se esfriar esse surto primeiro de devoção. O Santo Cristo continuava convidando as almas à oração perante sua milagrosa imagem… mas estas haviam ficado surdas à voz da graça!
A cada dia, diminuía o número de fiéis, até acabar-se por completo. Abandonada, a parede ficou exposta à inevitável deterioração do tempo e da natureza.
Quinze anos após o terremoto, passou por lá um fervoroso católico chamado Antonio de León e a encontrou em mau estado, com o alicerce abalado.
Tomado de veneração pela expressiva imagem do Santo Cristo, restaurou o que estava deteriorado e construiu um apoio, à maneira de altar, para reforçar seu alicerce danificado.
O Divino Filho de Maria Santíssima, que nunca se deixa vencer em generosidade, recompensou com celestial favor esse devoto seu.
Rezando diante da venerável imagem, Antonio foi curado de terríveis dores de cabeça – decorrentes de um tumor maligno – que há tempos o atormentavam.
Fortalecido na fé, e muito agradecido, desde então não perdia ele oportunidade de a todos proclamar sua milagrosa cura.
Segunda ordem de destruição
Em consequência, não tardou a renascer a veneração à imagem do Cristo Crucificado, pintada com arte e unção na tosca parede. Em sua maioria, os devotos eram negros e pobres, os quais lá se reuniam nas sextas-feiras à noite para rezar e cantar louvores ao Senhor.
Por infelicidade, aquelas reuniões foram contaminadas pela presença de indivíduos sem fé e que iam lá com más intenções.
Isso provocou, em 1671, uma intervenção das autoridades, que proibiram as reuniões e mandaram – novamente! – destruir a milagrosa imagem, passando uma camada de tinta por cima da pintura.
Dessa vez, foi categórica a intervenção de Deus. No momento de executar a ordem, o pintor ficou tão impressionado que se pôs inexplicavelmente a tremer e não conseguia fazer seu trabalho. Depois de várias tentativas, desistiu.
À vista disso, um soldado decidiu incumbir-se dessa missão, mas tampouco conseguiu levá-la a cabo. Como ele mesmo narrou depois, sempre que se punha à frente da pintura, a imagem do Senhor se iluminava.
Posto a par desse prodigioso fato, o Vice-Rei do Peru não só mandou suspender a ordem de destruição, mas passou, ele próprio, a cultuar a milagrosa imagem.
Em pouco tempo, edificou-se uma pequena ermida para abrigar a preciosa parede.
E em 14 de setembro, festa da exaltação da Santa Cruz, celebrou-se a primeira Missa ante o “Cristo de Pachacamilla”, que logo passou a ser chamado “Santo Cristo dos Milagres” pelos peregrinos, cada vez mais numerosos, que o iam venerar.
Novo milagre dá origem à procissão
Em outubro de 1687, a região foi abalada por outro terremoto, do qual se valeu Nosso Senhor para operar novo prodígio e, assim, aumentar a devoção dos fiéis.
Esse abalo sísmico arrasou o povoado de Callao e uma parte da cidade de Lima. A pequena ermida também desmoronou, mas a parede da venerável pintura ficou intacta!
Ocorreu então a Sebastião de Antuñano a providencial ideia de mandar fazer um quadro a óleo da milagrosa imagem, para levar consolo às sofridas vítimas do terremoto.
Com essa finalidade, organizou-se uma procissão que percorreu as ruas de Callao e de Lima, acompanhada pelos aflitos e angustiados fiéis, até chegar à Praça Maior, onde o quadro foi objeto de especiais manifestações de fervor.
Assim nasceu a tradicional procissão que ficou marcada, a cada ano, para os dias 18 e 19 de outubro.
No correr do tempo, católicos peruanos emigrados espalharam pelo mundo essa devoção.
Assim, hoje se realizam anualmente procissões em honra do Senhor dos Milagres nos seguintes países: Argentina, Canadá, Chile, Egito, Equador, Espanha, Estados Unidos, França, Itália, Japão, México, Paraguai, Romênia, Suécia e Suíça.
Bênção e incentivo do Papa à devoção
Por ocasião do 350º aniversário da milagrosa imagem, em setembro de 2001, Sua Santidade João Paulo II enviou paternal mensagem incentivando essa devoção “profundamente arraigada em tantas gerações” do povo peruano. E ele próprio se dignou benzer um quadro do “Jesus Moreno”.
Neste ano, a procissão do Senhor dos Milagres em Nova Iorque foi encabeçada pelo Cardeal Juan Luis Cipriani, Arcebispo de Lima, e acompanhada por milhares de católicos peruanos residentes nos Estados Unidos.