Estupefata, a multidão contemplava o prodígio.
— Será possível!? – exclamavam uns.
— Viste o que acabo de ver? – indagavam outros.
Aquele que, em vida, tantas vezes doara suas roupas aos pobres; que, apesar de dolorosa enfermidade, tantas vezes transportara lenha às costas para aquecer nos duros invernos as choças dos mais necessitados; aquele homem tão afável com os seus, considerado “pai dos pobres e consolador dos aflitos”, acabara de operar, mesmo morto, portento inaudito.
Após a sua exumação, o corpo do Beato Stefano Bellesini estava sendo transferido para um esquife digno de conter tão excelsa relíquia.
Entretanto, constatou-se que o novo féretro, mal calculado, era demasiado pequeno. E assim, a alegria da solene cerimônia parecia encaminhar-se para uma situação vexatória.
Então o Cardeal Pedecini, num gesto de confiança, dirigiu ao Santo estas palavras:
— Padre Bellesini, tão obediente como fostes em vida, não poderíeis agora acomodar-vos neste estreito caixão? E qual não foi a surpresa de todos quando, sem intervenção humana, o corpo se encolheu o suficiente para adequar-se à urna!1
Bela é a pobreza, por amor à qual o religioso renuncia aos bens exteriores. Esplendorosa é a castidade que o leva a abdicar dos prazeres corporais.
Mais magnífica, entretanto, é a virtude da obediência, em aras da qual as almas consagradas imolam aquilo que têm de mais precioso: a própria vontade.2
Àquele beato que em vida praticara eximiamente os conselhos evangélicos, a simples invocação desta virtude por um Prelado da Santa Igreja foi-lhe irresistível, como irresistíveis são para Deus os pedidos feitos pelas almas obedientes.
Um monge anda sobre as águas
Certo dia, encontrava-se o grande patriarca São Bento recolhido em sua cela quando o menino Plácido, um de seus noviços, caiu num lago e foi arrastado pela correnteza à distância de um tiro de flecha.
O Santo Varão teve milagrosamente imediato conhecimento do fato, chamou o jovem Mauro e o mandou ir salvar seu irmão de hábito.
Após receber a bênção de seu pai espiritual, o discípulo partiu com tal ímpeto que, como se estivesse ainda em terra firme, correu sobre as águas, segurou o pequeno pelos cabelos e o trouxe de volta são e salvo. Só então deu-se conta do milagre que fora operado.
De regresso ao mosteiro, narrou, estupefato, o sucedido. Porém, “o venerável Bento começou a atribuir isso não a seus próprios méritos, mas aos da fiel obediência do discípulo.
Mauro, pelo contrário, sustentava que tudo era unicamente efeito de sua ordem, e que ele parte alguma tivera naquele prodígio obrado sem consciência”.3
O certo é que a Providência, agradada pela ordem de São Bento e pela pronta obediência de São Mauro, suspendera as leis da natureza para salvar o menino que, no futuro, viria a ser o grande São Plácido.
As feras tornam-se mansas
Dos monges dos primeiros tempos contam-se, também, fatos admiráveis relacionados com essa elevada virtude.
Sabia-se que um discípulo do Abade Paulo, de nome João, jamais resistia a qualquer ordem recebida, por mais árdua que fosse. Assim, em certa ocasião em que o abade o encarregou de uma incumbência na aldeia vizinha, aprestou-se a obedecer, mas preveniu o superior:
— Pai e senhor meu, ouvi dizer que ronda por aquelas bandas uma leoa feroz.
— Se a leoa te atacar, detém-na e traze-a contigo – respondeu o ancião, gracejando.
Ao cair da tarde, de fato, a leoa saltou sobre ele. Sucedeu, então, o inverossímil: a fera tornou-se presa e o monge, caçador. Cumprindo a ordem dada pelo superior, João quis sujeitá-la, mas ela escapou. Então ele a perseguiu, bradando:
— Mandou-me o abade prender-te e levar-te a ele!
A estas palavras, a fera deteve-se imediatamente. João a segurou e empreendeu o caminho de volta ao mosteiro, onde o abade mostrava-se pesaroso e preocupado por seu filho espiritual que tanto tardava.
Ao vê-lo retornar arrastando a leoa, encheu-se de admiração e deu graças a Deus. Cheio da alegria dos obedientes, disse-lhe o discípulo:
— Eis aqui, pai, a leoa que me mandaste trazer.
Para o bem daquela alma, a fim de que não viesse a envaidecer-se, o abade deu-lhe ordem de soltar a fera.4 O fato tornou-se logo conhecido entre os monges, que engrandeceram a Deus pelo prodígio realizado para enaltecer o valor da obediência.
União de vontade com o superior
Muitos volumes seriam necessários para se relatar os exemplos tirados da vida dos Santos no sentido de mostrar o quanto Deus ama a virtude da obediência, e os inimagináveis esforços realizados pelos Bem-aventurados para praticá-la de forma exímia.
Mas deixemos de lado por enquanto o florilégio hagiográfico e adentremo-nos no conhecimento dessa pérola preciosa, ainda que num voo muito rápido.
Oriunda do termo latino ob-audire – escutar com atenção –, a obediência é “uma virtude moral que torna a vontade pronta para executar os preceitos do superior”.5
E tanto mais perfeita ela será, “quanto mais rapidamente se adiante a executar aquilo que se entende ser vontade do superior, mesmo antes de este a manifestar”.6
Pois, como ensina São Tomás,
a vontade do superior, de qualquer maneira como ela se manifeste, é uma ordem tácita; e a obediência se mostrará tanto mais solícita quanto mais o obediente se antecipar à expressão do preceito, compreendida a vontade do superior.7
Portanto, a prática da obediência não se restringe ao cumprimento das ordens e preceitos claramente expressos por parte daquele que manda.
Quem almeja praticá-la em grau excelente deve assumir a postura de um bom filho em relação ao pai, ou seja, estar extremamente atento àquilo que o superior quer.
Porque
a obediência é, antes de tudo, uma atitude filial.
É aquele tipo particular de escuta que só mesmo o filho pode prestar ao pai, por estar iluminado pela certeza de que o pai só pode ter coisas boas a dizer e a dar ao filho; uma escuta embebida naquela confiança que permite ao filho acolher a vontade do pai, certo de que esta será para seu bem.
Isto é imensamente mais verdadeiro em relação a Deus. Com efeito, nós atingimos a nossa plenitude somente na medida em que nos inserimos no desígnio com que Ele nos concebeu em seu amor de Pai.8
As molas propulsoras da obediência
Assim, podemos afirmar que as molas propulsoras e o dinamismo desta virtude são a fé e a caridade.
Segundo o padre Royo Marín, o assunto da obediência “se reduz, em realidade, a um problema de fé”.9 E o Beato Columba Marmion nos apresenta uma ousada e elucidativa comparação a este propósito.
Diz ele que quando contemplamos a sagrada Hóstia, não vemos senão pão. Ora, Cristo afirmou: “isto é o meu Corpo” (Mt 26, 26). Assim, deixando de lado o testemunho de nossos sentidos, cremos estar Jesus real e substancialmente presente sob as Sagradas Espécies.
Diante delas nos ajoelhamos em adoração à Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. De modo semelhante, Nosso Senhor Se oculta a nós em nossos superiores.
Constatando seus defeitos, vemos que eles são falíveis, mas nossa fé nos diz que é um representante de Cristo, e, por assim dizer, apalpamos Cristo através das imperfeições do homem. “Se tivermos fé nos veremos obrigados a exclamar: ‘Creio!’. E obedeceremos a este homem, porque nos submetendo a ele obedecemos ao próprio Cristo e permanecemos a Ele unidos”.10
Por outro lado, na caridade se unificam as ações e os sentimentos “e, mesmo não havendo total coincidência de pareceres, haverá uma mútua predisposição para receber e compreender o ponto de vista do outro e um íntimo desejo de agradar a quem se ama”.11
De tal forma a caridade e a obediência se complementam que o Doutor Angélico assevera não ser possível existir uma sem a outra,12 sendo a obediência louvável por proceder da caridade.13
É por isso que
a obediência cristã, descobrindo nas ordens e mandatos a presença da vontade de Deus, deve ver-se necessariamente auxiliada pela presença da divina caridade que a faz atuar com um espírito totalmente sobrenatural.
Donde se deduz que, para a obediência ser cristã, deve estar informada da divina caridade, a qual só pode existir numa alma em estado de graça.14
Só os padres e religiosos devem obedecer?
Evidentemente, a virtude da obediência compete sobretudo aos clérigos e aos membros dos Institutos religiosos, vinculados pela profissão dos votos, cada qual a seu respectivo superior.
Constitui, aliás, o elemento mais importante da vida religiosa, conforme demonstrou o Doutor Angélico15 e lembra o padre Royo Marín: “o estado religioso, em virtude principalmente do voto de obediência, é um verdadeiro holocausto que se oferece a Deus”.16
Como diz São Gregório Magno: “com razão se antepõe a obediência aos sacrifícios, posto que mediante as vítimas se imola a carne alheia, enquanto que, pela obediência, se imola a vontade própria”.17
Sem embargo, apesar de concernir de modo especial os clérigos e membros de Institutos religiosos, a virtude da obediência abrange uma gama de pessoas muito mais ampla.18
Na Epístola aos Efésios, depois de incentivar todos a serem “submissos uns aos outros no temor de Cristo” (Ef 5, 21), São Paulo mostra, fundando-se em argumentos elevadíssimos, como ela deve ser praticada em todos os âmbitos das relações humanas, mesmo na ordem temporal.
Assim, por exemplo, exorta os filhos a obedecerem aos pais, lembrando-lhes que é cumprindo o mandamento de honrar pai e mãe que serão felizes (cf. Ef 6, 1-3).
Não deixa, porém, de alertar estes últimos para que, no exercício de sua autoridade, não provoquem a ira dos filhos, mas os eduquem na disciplina e instruções do Senhor (cf. Ef 6, 4).
E São Pedro afirma que devemos ser submissos “a toda autoridade humana” (I Pd 2, 13); portanto, não somente àquelas que julgamos serem boas e justas.
Também São Paulo é claro nesse sentido: “Cada qual seja submisso às autoridades constituídas, porque não há autoridade que não venha de Deus; as que existem foram instituídas por Deus” (Rm 13, 1).
Logo em seguida, o Apóstolo alerta para o prejuízo da insubordinação: “Quem resiste à autoridade, opõe-se à ordem estabelecida por Deus; e os que a ela se opõem, atraem sobre si a condenação” (Rm 13, 2).
A obediência de Jesus Cristo e de Maria Santíssima
Desta santa virtude da obediência deram-nos o mais sublime exemplo Jesus e Maria. Como diz São Paulo, em sua Epístola aos Filipenses:
Sendo Ele [Cristo] de condição divina, não Se prevaleceu de sua igualdade com Deus, mas aniquilou-Se a Si mesmo, assumindo a condição de escravo e assemelhando-Se aos homens.
E, sendo exteriormente reconhecido como Homem, humilhou-Se ainda mais, tornando-Se obediente até a morte, e morte de Cruz (Fl 2, 6-8).
Com efeito, o Verbo eterno e consubstancial ao Pai dignou-Se assumir nossa carne mortal, fazendo-Se verdadeiro Homem, entre outras razões, para nos ensinar e recomendar, por meio de seu sublimíssimo exemplo, esta virtude.
De fato, “de um a outro extremo, da Encarnação ao Calvário, a vida de Jesus aparece dominada pela lei da obediência”.19
Idêntica afirmação faz o Beato Columba Marmion:
O “Consummatum est” é a expressão mais exata e completa de sua vida, regida toda ela pela obediência; é o eco do “Ecce venio” pronunciado no instante da Encarnação.
Estas duas palavras são duas grandes afirmações de obediência, e toda a existência terrena de Cristo Jesus gira em torno de um eixo que passa por estes dois polos.20
Maria Santíssima, por sua vez, certa de que “a Deus nada é impossível” (Lc 1, 37), realizou “da maneira mais perfeita a obediência da fé”,21 quando disse: “Eis aqui a escrava do Senhor. Faça-se em Mim segundo a tua palavra” (Lc 1, 38).
Comenta Santo Irineu: “O nó da desobediência de Eva foi desatado pela obediência de Maria; e aquilo que a virgem Eva atou, com a sua incredulidade, desatou-o a Virgem Maria com a sua fé”.22
Como atesta a Lumen gentium, com este consentimento, abraçando de todo o coração a vontade divina de salvação, Maria tornou-Se Mãe de Jesus e “consagrou-Se totalmente, como escrava do Senhor, à pessoa e à obra de seu Filho, subordinada a Ele e juntamente com Ele, servindo pela graça de Deus onipotente o mistério da Redenção”.23
E acrescenta:
Por isso, consideram com razão os Santos Padres que Maria não foi utilizada por Deus como instrumento meramente passivo, mas que cooperou livremente, pela sua fé e obediência, na salvação dos homens.24
A verdadeira liberdade e a ufania da obediência
“Nunca os homens tiveram um tão vivo sentido da liberdade como hoje”,25 já dizia o Concílio Vaticano II, apontando também para os perigos de uma falsa concepção deste termo:
Os homens de hoje apreciam grandemente e procuram com ardor esta liberdade; e com toda a razão.
Muitas vezes, porém, fomentam-na de um modo condenável, como se ela consistisse na licença de fazer seja o que for, mesmo o mal, contanto que agrade.26
Os anos se passaram, e é o caso de nos perguntarmos se isso mudou… Se não, nada mais atual do que a necessidade de deitar luz sobre o tema.
Pode por certo o homem, com suas simples forças naturais, conhecer muitas verdades e praticar várias virtudes; não lhe é possível, porém, sem o auxílio da graça, permanecer estavelmente no conhecimento e na prática de todos os Mandamentos.
Isto porque na natureza humana decaída pelo pecado original persiste sempre a debilidade da inteligência e a má tendência, anterior a qualquer raciocínio, que o incita a revoltar-se contra a Lei.
Se consentir nessa tendência, transgredindo algum Mandamento, pode o homem chegar ao ódio, mais ou menos inconfessado, à própria ordem moral em seu conjunto.
Esse ódio pode não só dar origem a erros doutrinários, mas até levar à profissão explícita de princípios contrários à lei moral e à doutrina revelada, enquanto tais. Ou seja, a cometer um pecado contra o Espírito Santo: negar a verdade conhecida como tal.
Obediência, hierarquia e autoridade são pilares indispensáveis para uma sociedade bem constituída.
E o conceito de liberdade, em seu sentido moral verdadeiro, não se cifra na capacidade de fazer sempre a própria vontade (inclusive podendo escolher o mal), mas sim em fazer o bem, cumprindo a vontade de Deus, ainda que à custa de sacrifícios, renúncias e abnegação.
Nesta obediência cheia de liberdade o homem se livra da escravidão da libertinagem. Só assim terá ele autêntica e duradoura felicidade, pois o pecado não traz alegria e paz, mas apenas fruição passageira.
Por intermédio de Maria Santíssima, peçamos, pois, a graça de praticar eximiamente esta santa virtude da obediência, a fim de gozarmos da infinita felicidade que nos está reservada por Jesus Cristo na eternidade.