Eu tinha umas asas brancas, 
Asas que um anjo me deu, 
Que, em me eu cansando da terra, 
Batia-as, voava ao céu. 

Eram brancas, brancas, brancas, 
Como as do anjo que mas deu: 
Eu inocente como elas, 
Por isso voava ao céu. 

Veio a cobiça da terra, 
Vinha para me tentar; 
Por seus montes de tesouros 
Minhas asas não quis dar.

Veio a ambição, co’as grandezas, 
Vinham para mas cortar, 
Davam-me poder e glória; 
Por nenhum preço as quis dar. 

Porque as minhas asas brancas, 
Asas que um anjo me deu, 
Em me eu cansando da terra, 
Batia-as, voava ao céu. 

Mas uma noite sem lua 
Que eu contemplava as estrelas, 
E já suspenso da terra, 
Ia voar para elas, 

Deixei descair os olhos 
Do céu alto e das estrelas… 
Vi entre a névoa da terra, 
Outra luz mais bela que elas. 

E as minhas asas brancas, 
Asas que um anjo me deu, 
Para a terra me pesavam, 
Já não se erguiam ao céu.

Cegou-me essa luz funesta 
De enfeitiçados amores…
Fatal amor, negra hora 
Foi aquela hora de dores! 

Tudo perdi nessa hora 
Que provei nos seus amores 
O doce fel do deleite, 
O acre prazer das dores. 

E as minhas asas brancas, asas 
que um anjo me deu, 
Pena a pena me caíram…
Nunca mais voei ao céu.

Não se surpreenda leitor, leitora. O que lhe trago aqui, hoje, não é o relato de algum milagre. Nem um fato edificante da vida de algum dos muitos santos que brilham no firmamento da Igreja.

Hoje, vou apresentar-lhe algo de muito diferente: a descrição do primeiro pecado de uma alma que foi inocente!

Não lhe parece um absurdo? Concordo consigo. A mim também me pareceu, num primeiro momento.

E quando lancei a ideia, entre os meus amigos mais próximos, a reação foi a mesma: todos tentaram me convencer a desistir, porque na revista Arautos do Evangelho não há espaço para o pecado, nem para o mal…

Claro! Ela procura fazer luzes aos olhos dos leitores os maravilhosos tesouros da Igreja.

Mas a vida tem lá seus paradoxos, e é muitas vezes no contraste com o mal, que o Bem sobressai.

Foi por isso que me empenhei em trazer a estas páginas a poesia Asas Brancas, de Almeida Garrett, poeta português do séc. XIX.

Nela, com expressivas imagens simbólicas descreve ele a beleza do estado de inocência, os encantamentos mentirosos do mundo, a falsa felicidade do pecado, as tentações e, por fim, a perda da inocência.

São poucas as almas que, fiéis às promessas do batismo, conservam íntegra e sem mancha, nem rasgões, a branca veste batismal, símbolo da alma inocente.

O drama descrito tão belamente pelo poeta, embora poucos o vejam com tanta clareza, não atinge só a ele. É a história de tantas e tantas outras pessoas que conservam, no fundo da alma, uma saudade indizível daquela felicidade perdida, quase paradisíaca.

Leitor, leitora, corra os olhos pela poesia, se é que já não o fez, logo ao abrir esta página, e depois vamos ler o texto juntos, verso por verso, para melhor saborear sua beleza e significado.

Terminou? Não lhe parece que do último verso se evola uma nota de tristeza, sem esperança?

“Nunca mais voei ao céu…”

Nunca mais voei ao céu… Então, perdida a inocência já não há solução? Para quem tem fé, sempre há possibilidade de recuperar o estado de graça, até ao último instante de vida. 

E, por um extremo de misericórdia de Deus, o sacramento da Unção dos Enfermos ainda nos dá a possibilidade de restaurar a inocência batismal.

Mas, voltemos à nossa poesia.

Eu tinha umas asas brancas / Asas que um anjo me deu

Conta-se que certa vez perguntaram a Napoleão Bonaparte, quando já era imperador e estava no auge da gló­ria, dominando quase toda a Europa, qual tinha sido o dia mais feliz da vida dele.

Todos esperavam que dissesse ter sido o dia de sua coroação, na Catedral de Notre-Dame, em Paris. Ou então o dia de alguma de suas grandes vitórias militares. A resposta surpreendeu: “Foi o dia de minha Primeira Comunhão”.

Também Napoleão, referindo-se a essa hora de suprema felicidade, em que recebia Nosso Senhor pela primeira vez, poderia dizer que

tinha umas asas brancas/ Eu inocente como elas, / Por isso voava ao céu.

Creio que também você leitor, leitora, assim como muitos outros, tivemos na vida momentos em que a graça divina nos visitou de forma mais sensível e parecia estarmos mais perto do Céu. 

Para uns terá sido o dia da Primeira Comunhão. Para outros, com vocação religiosa, poderá ter sido o dia da ordenação sacerdotal, ou da tomada de hábito, ou ainda quando sentiram em seu interior o chamado de Deus.

E nessas horas, a alma realmente tem asas, e voa para Deus com toda a facilidade. 

Sendo fiel às promessas do Batismo, a alma inocente não encontra felicidade nos prazeres materiais, e

em me cansando eu da terra / batia-as, voava ao céu.

Houve santos que tiveram o privilégio de contemplar a beleza de uma alma em estado de graça.

O poeta, embora não tenha tido esse privilégio – provavelmente – sente em seu interior a felicidade da inocência e vislumbra algo dessa beleza que ele não consegue expressar senão pela repetição:

eram brancas, brancas, brancas, como as do anjo que mas deu. / Eu inocente como elas, por isso voava ao céu.

Quase se diria que ele tinha dentro de si um verdadeiro paraíso.

“Veio a cobiça da terra”

Mas… até no Céu os anjos foram submetidos a uma prova.

E aqui nesta terra, não há quem não tenha de enfrentar as tentações. É uma forma de conquistarmos méritos para o Céu:

Veio a cobiça da terra, / Vinha para me tentar; / Por seus montes de tesouros/ Minhas asas não quis dar.

De vários modos procura o demônio tentar as almas. A umas tenta aguçando o desejo de riquezas, que permitem o gozo desenfreado da vida. A outras, oferece as grandezas do mundo, a fama, as honras, o prestígio…

Veio a ambição, co’as grandezas, /Vinham para mas cortar,/ Davam-me poder e glória; / Por nenhum preço as quis dar.

Resistiu aos dois primeiros embates. Mas uma noite sem lua… Nossa Senhora é simbolizada pela lua.

Terá diminuído nele a devoção a Maria? E quando isso ocorre se faz noite na alma. Talvez tenha ele confiado excessivamente em si próprio, achando que sua inocência era tão mais bela do que tudo no mundo, que nada era capaz de lha roubar.

Eram brancas, brancas, brancas, / como as do anjo que mas deu: / Eu inocente como elas, / Por isso voava ao céu.

Não tinha ele resistido já a duas provas?

Mas uma noite sem lua / Que eu contemplava as estrelas /Deixei descair os olhos / Do céu alto e das estrelas… / Vi entre a névoa da terra / Outra luz mais bela que elas.

O espírito das trevas espera para nos tentar na hora em que deixamos de contemplar as coisas do céu, e nos voltamos para os bens materiais.

Então ele apresenta o pecado revestido de um atrativo fascinante, ao qual só é possível resistir com o auxílio da graça que nos vem por meio de Maria, pela oração.

Mas uma noite sem lua… Não rezou, como certamente também não o fez Adão no Paraíso, que apesar de inocente, pecou. Depois, fugia de Deus. Sua alma já não voava.

E as minhas asas brancas / para a terra me pesavam/ já não se erguiam ao Céu.

“Tudo perdi nessa hora”

No momento da tentação, o pecado parece atraente, mas, depois de cometido, a alma sente a frustração da desobediência, e a amargura de ter perdido a felicidade interior:

Tudo perdi nessa hora / que provei / o doce fel do deleite / o acre prazer das dores…

Com a perda da inocência, a alma abandona as castas delícias do espírito para se lançar nos prazeres da matéria, inebriantes e fugazes, mas que deixam a alma amargurada quando cessam… Seu fruto são dores.

E as minhas asas brancas / pena a pena me caíram… / nunca mais voei ao céu.

Após a queda, o espírito do mal procura induzir a alma ao desespero, fazendo-lhe crer que nunca mais será possí­vel recuperar aquela felicidade interior que vem do estado de graça: “nunca mais voei ao céu.”

Para o católico, contudo, abre-se a via do perdão e da misericórdia.

Um coração contrito e humilhado é de molde a atrair da Providência divina as graças que restaurem a inocência perdida. Foi o que aconteceu a Santo Agostinho, por exemplo, que em sua famosa obra “Confissões” manifesta a alegria de ter reencontrado a Deus:

Tarde Te amei, ó beleza tão antiga e tão nova, tarde Te amei!

Eis que estavas dentro e eu, fora; e aí Te procurava e lançava-me desfigurado ante as belezas que Tu criaste.

Estavas comigo e não eu contigo. Seguravam-me longe de Ti as coisas que não existiriam, se não existissem em Ti.

Chamaste, clamaste e rompeste minha surdez; brilhaste, resplandecente e afugentaste minha cegueira; exalaste perfume e respirei, e anelo por ti, e tenho fome e sede; tocaste-me e ardi por tua paz.