Na raiz de grandes empreendimentos históricos bem-sucedidos, encontramos com frequência a figura de um mestre, de um Santo ou de um profeta.
Nos albores do Brasil, Anchieta reúne em si essas três missões.
Em seu poema A Gesta de Mem de Sá, podem-se ler estas palavras de ressonância profética sobre o futuro do Brasil:
Já o teu Nome se espalha, ó Cristo, até os confins do universo, como torrente de penetrante perfume […] Arrancada às trevas e iluminada pelo sol fulgurante da luz divina, também virá um dia adorar-Te a nação que se alimenta agora em carnes humanas. A terra em que sopra o vento sul conhecerá teu Nome, e ao mundo austral virão os séculos de ouro, quando as gentes brasílicas observarem tua doutrina.
Como Santo, o Apóstolo do Brasil trazia impressa na alma a matriz de um plano providencial que ele soube intuir e impulsionar desde os primeiros alicerces.
Ele sentia gosto em galgar a Serra do Mar para vir ao Planalto falar aos nativos de um Jesus que os ama e perdoa. Sua pessoa era uma irradiação de santidade, cuja luz brilhou em meio às trevas do paganismo indígena.
Como mestre, pôs-se a ensinar os silvícolas brasílicos na própria língua deles.
“Sempre tenho estado em Piratininga, a primeira aldeia de índios, a dez léguas do mar, porque a terra é muito boa, a entender e ensinar gramática em três classes diferentes” – informa ele, em carta ao Provincial.
Consumia as noites escrevendo em folhas de palmas as lições destinadas aos alunos, as quais ele coloria com pormenores curiosos e atraentes.
Não dispunha de luz elétrica, nem sequer de vela. Tinha melhor, segundo relata Chiquinha Rodrigues, em seu livro Antevisão de Jesuíta: “enxames de vaga-lumes entravam à noite a iluminar a choupana, como lamparinas muito claras”.
Assim funcionava o primeiro colégio em nosso País!
Rústica construção de taipa, coberta de palmas, servindo ao mesmo tempo de igreja, escola, dormitório, enfermaria e cozinha, assim era o Colégio de Piratininga, fundado pelos missionários jesuítas na “lombada do Planalto”, em 1554.
O Irmão Anchieta descreve as agruras dos primeiros dias de funcionamento:
Em tantas estreitezas nos achamos colocados, que muitas vezes é necessário ministrarmos as lições de gramática no campo. E como do lado de fora o frio nos incomoda, e dentro da casa a fumaça, preferimos sofrer o incômodo do frio que o da fumaça.
Essa situação precária era largamente compensada por dois fatores: da parte dos mestres, o empenho em evangelizar; e dos alunos, o desejo de aprender.
Assim, o Colégio não demorou em “abrir filiais”, conforme se comprova nesta afirmação do Pe. Simão de Vasconcelos, grande historiador das missões jesuíticas no Brasil:
Especialmente as mulheres mestiças, em breve tempo, ficaram mestras e prezavam-se de ensinar os filhos e escravos com a mesma doutrina. E se viam naquelas vilas tantas escolas quantas eram as casas onde elas moravam.
Ensino com belo cerimonial
O ensino era feito sob normas racionais, mas adaptado às apetências dos alunos. “A catequese, muitas vezes em versos musicados, transmitida com um belo cerimonial, maravilhava os índios” – informa o cronista.
A Escola de Piratininga crescia tão rapidamente em número de alunos que apenas um ano depois da fundação já era chamada de Grande.
Por essa época, vieram para ela alunos de São Vicente, já instruídos em doutrina cristã, leitura, escrita e canto. Para sua sustentação trazia-se farinha de uma distância de 10 léguas, com muito trabalho e sérias dificuldades, por causa da aspereza do caminho.
Escreve o Pe. Anchieta:
O principal alimento nesta terra é a farinha de mandioca, torrada em vasos de barro, pois se comida assada ou crua, mata… Isto substitui entre nós a farinha de trigo.
A outra parte da alimentação é feita de carnes de animais selvagens, como corças, lagartos, macacos; ou peixes, legumes, favas, abóboras, folhas de mostarda, ervas cozidas e outras verduras que a terra produz.
A escola progredia! Em 1556 o provincial pediu a Santo Inácio sua elevação à categoria de Colégio da Companhia.
E, considerando a situação de pobreza da gente da terra, acrescentava o pedido de que o Rei mandasse dar-lhe “alguns dízimos de arroz” para ajudar na sua subsistência.
A primeira gramática brasileira
Anchieta logo se tornou o melhor mestre da “arte da língua brasílica”. Para explicá-la, compôs uma gramática que desde 1560 era matéria obrigatória no Colégio de Piratininga e no da Bahia. Em 1595, foi impressa pela primeira vez, em Coimbra.
O Provincial da Companhia, Pe. Luiz da Grã, determinou que todos os jesuítas em missão no Brasil a aprendessem. Havia diariamente uma hora de aula obrigatória: “Desta lição, nem reitor, nem pregador, nem qualquer outra pessoa é dispensada” – escreve o Pe. João de Melo.
Através dos filhos, chegar aos pais
Agindo com tato e habilidade, os missionários tiveram como primeiro cuidado atrair os curumins (meninos índios) e dar-lhes boa formação para, através deles, doutrinar os pais. Escreve o Pe. Simão de Vasconcelos:
Granjeados os filhos de índios, os jesuítas lhes ensinaram a ler e escrever, a auxiliar na Missa e no ensino da doutrina cristã. Os maiores saíam em procissão pelas ruas, entoando o canto do solfa, as orações, os mistérios da fé, compostos em versos. Isto alegrava imensamente os pais.
O maior interesse de todos era despertado pelos cânticos sacros, ouvidos à distância com muito agrado. Esses hinos ganhavam para Deus os íncolas, trazendo-os para a civilização.
Os catecúmenos acordavam recitando orações, bendizendo os nomes de Jesus e Maria. Um coro cantava: “Bendito e louvado seja o santíssimo nome de Jesus”. E outro respondia: “Bendito e louvado seja o santíssimo nome da Bem-Aventurada Virgem Maria para sempre”.
E todos juntos concluíam, em latim: “Gloria Patri et Filio et Spiritui Sancto. Amen”.
Depois de pouco tempo, esses louvores a Jesus e Maria estavam ecoando pelas florestas, em língua Tupi, levados pelos curumins.
Cantavam eles: “Ó Virgem Maria/ Tupan ey êté/ Aba pe ara porá/ Oicó endê yabê” – que quer dizer: “Ó Virgem Maria, mãe de Deus verdadeiro, os homens deste mundo estão bem convosco”.
Aprendiam também fórmulas de boa educação. Por exemplo, a saudação Enecoêma! (Bom dia!).
Em breve esses meninos eram respeitados pelos índios adultos como algo sagrado. Ninguém ousava contrariar a vontade deles.
“Todos acreditavam no que diziam, achando que neles habitava alguma divindade. Chegavam a ornamentar com ramos os caminhos por onde deviam passar” – relata o Pe. Simão de Vasconcelos.
Quando se tornavam homens, eles eram escolas vivas para os demais. Sabendo bem a língua portuguesa e a brasílica, constituíam o elo de ligação entre as duas raças. E era comum encontrar-se também índios que conheciam o latim.
Nas primeiras décadas do séc. XVII, em sua obra O Valoroso Lucideno, Frei Manuel Calado escreveu a respeito de Filipe Camarão:
É um índio de muito boas inclinações, muito cortês em suas palavras, destro em ler e escrever, e com algum princípio de latim, e muito grave, e pontual, que se quer muito respeitado.
O tempo que lhe vaga de suas ordinárias ocupações, sempre o verão em sua casa com o rosário nas mãos, encomendando-se a Deus, ou rezando o Ofício de Nossa Senhora; bem empregado foi o trabalho que os padres da Companhia de Jesus, e outros religiosos de diferentes Ordens, fizeram neste índio.
Entendia os índios e fazia-se entender por eles
Enquanto Anchieta realizava o trabalho maior e mais penoso, outros irmãos faziam longas incursões pelo sertão, levando de taba em taba a fé e a civilização.
Com os olhos voltados para o alto, iam ministrando o ensinamento moral, pregando a bondade, a harmonia e a justiça, conceitos até então ignorados nesta parte do mundo.
Assim se formaram as Aldeias de Pinheiros, Itaquaquecetuba, São Miguel, Guarulhos, Consolação, Carapicuíba, Ibirapuera, Santo Amaro, Guarapiranga, Jeribativa, e sabe-se lá quantas outras!
Os índios viam, admirados, José de Anchieta caminhar sobre as águas como Jesus. Nos dias de sol quente, observavam as gaivotas formarem sobre ele, com suas asas abertas, uma espécie de guarda-sol vivo.
O Santo Missionário lhes falava da paz que levava dentro de sua alma, e eles a punham em prática. Era como se em suas veias de europeu circulasse o mesmo sangue dos índios e dos africanos. Por isto, ao chegar aqui foi logo entendendo os índios e se fazendo entender por eles.
Compreendendo bem que as ideias se transmitem melhor através de alegorias e de expressivas metáforas, compôs a primeira peça teatral encenada no Brasil, quase ao ar livre, à sombra de belas árvores, tendo o sol como o mais rico e radioso dos coloristas.
“Sucessos educativos inigualáveis”
A formação cultural de nossa pátria é, sem dúvida, uma obra-prima desses gigantes da fé que aqui consumiram suas vidas a serviço de Deus e do próximo. Ainda hoje, nos ilumina a luz por eles irradiada há quase meio milênio, mostrando-nos que Cristo é o Caminho, a Verdade e a Vida.
A respeito de sua gloriosa epopeia, afirma a historiadora Chiquinha Rodrigues, na obra acima mencionada:
É indiscutível a fortaleza de ânimo, a abnegação de quantos deixavam o conforto da vida na Europa civilizada para se aventurar por estes climas. […]
Tinham eles [os jesuítas] de domesticar o índio, pedir resignação ao negro, e ainda conter o frenesi dos brancos pelo dinheiro. Mas que os seus sucessos educativos foram inigualáveis, aí está a proclamá-lo o Brasil que eles construíram, arrancado do lodo.
Trabalhar para que nosso país atinja esse grandioso objetivo desejado pelos que nos antecederam com o sinal da fé, é dever de todo bom católico.