Doutora em História pela Universidade de São Paulo, a Professora Roseli Santaella Stella tem-se aprofundado na pesquisa dos fatos históricos brasileiros nos séculos XVI e XVII. Além de outras obras, publicou o livro O Domínio espanhol no Brasil durante a Monarquia dos Felipes.
É, portanto, pessoa altamente qualificada para falar a nossos leitores sobre esse período da história pátria, no qual foi construída a pequena capela que deu origem à aldeia de São Miguel, nos limites territoriais da capital paulista.
Arautos do Evangelho: Qual a origem dessa histórica igrejinha?
Profª. Roseli: Conforme registra em suas cartas o Pe. Anchieta, a aldeia de São Miguel foi fundada por orientação do Padre Nóbrega, com certa quantidade de índios dissidentes do Pátio do Colégio, chefiados por Piquerobi, irmão do Tibiriçá.
Inconformados com a transferência dos moradores da aldeia de Santo André da Borda do Campo para São Paulo de Piratininga, em 1560, Piquerobi e seus seguidores deixaram esse local, indo instalar-se nas proximidades do Rio Ururaí, em uma região que lhes era familiar.
Ali os foi procurar o Pe. Anchieta, movido pela fé. Temos sinais evidentes de que a primeira capela, propriamente originária, foi levantada nesse ano.
Ora, edificar uma capela, por mais rudimentar que fosse, era o ato de fundação de uma aldeia. Até hoje continua a se considerar, erroneamente, como data oficial de fundação de São Miguel o ano de 1622, que aparece na inscrição da viga principal da porta de entrada da capela hoje existente.
Agora, porém, já temos comprovação documental fazendo referência à capela primitiva, dando conta de que aqui existiu uma outra edificação e de que São Miguel foi fundada efetivamente em 1560.
AE: É preciso muita pesquisa para levantar esses dados…
Profª. Roseli: Procurei nos arquivos da Companhia de Jesus, no Vaticano, informações sobre capela de São Miguel ou aldeia de São Miguel, e foi uma graça encontrar um registro do Pe. Anchieta que ainda não era conhecido, contendo uma carta dele ao Geral da Companhia, Pe. Diogo Lainez, de 12 de junho de 1561.
Nela está mencionada a aldeia de São Miguel. A escolha desse Arcanjo para padroeiro, além de outras razões, pode ser atribuída ao fato de os nativos chefiados por Piquerobi se identificarem com a figura de São Miguel por seu espírito guerreiro.
Além dessa carta, há outros registros bastante importantes no arquivo da Companhia de Jesus, a respeito dos padres e irmãos que continuaram servindo aqui até 1621.
Eles provam que, de fato, a aldeia de São Miguel era visitada e contava com uma assiduidade de missionários.
AE: Qual a importância dessa aldeia no Brasil recém-nascido?
Profª. Roseli: Devido à sua posição estratégica, São Miguel serviu de precioso apoio na defesa do Pátio do Colégio.
Além disso, Piquerobi e seus aguerridos índios guaianazes participaram da luta contra os tamoios em Cabo Frio, no ano de 1565, e apoiaram a expedição de Estácio de Sá, da qual resultou a expulsão dos franceses da Guanabara e na fundação do Rio de Janeiro.
Em carta de 1584, Anchieta comenta que ao redor da vila de São Paulo de Piratininga havia doze aldeias não muito grandes, numa distância de uma a três léguas, e que com o tempo seus habitantes se juntaram em duas: a de São Miguel e a de Nossa Senhora da Conceição dos Pinheiros.
Note-se, portanto, que São Miguel e Pinheiros são os dois bairros mais antigos da capital paulista e desempenharam relevante papel para o desenvolvimento dessa cidade.
AE: Os índios eram coagidos a tomar parte nessas guerras?
Profª. Roseli: Não. É preciso notar que eles participaram dessas guerras por vontade própria. Não foi de uma forma imposta, pelo que se sabe.
Porque esses índios tinham liberdade para sair do “jugo” da Igreja, por assim dizer, e se unir a outros grupos que não estavam seguindo esse processo de catequese. Se eles continuavam, é porque aceitavam seu vínculo com a Igreja.
AE: Resta algo da primeira capela?
Profª. Roseli: Dela não restam sequer vestígios, temos apenas informações documentais. A igreja que vemos hoje aqui nesta praça é de fato a segunda edificação, terminada em 1622, numa aldeia já existente.
AE: Algum detalhe especial, que escapa ao visitante comum?
Profª. Roseli: Nas obras de edificação e decoração desta capela se pode perceber que existia uma maleabilidade da Igreja para com os índios. Um exemplo disso são os entalhes existentes na porta e na janela de um de seus cômodos.
Em civilizações andinas, autóctones, em civilizações pré-colombianas, os totens representam um papel importante no cotidiano das pessoas. É um símbolo de defesa da casa, da vigilância durante o sono.
E pode-se ver que em toda a volta do batente da porta, na parte inferior e na superior, há entalhes de um totem.
Quem dirigiu os trabalhos de ornamentação da igreja permitiu que o autor desses entalhes – o qual não era nativo brasileiro, obviamente, porque esse traço não é de índio brasileiro – fizesse esse trabalho conforme os moldes artísticos nativos que ele possuía.
Todos sabemos que para cá eram trazidos índios da América Espanhola. Levantei esta questão numa tese que apresentei na Universidade de São Paulo sobre a época do domínio espanhol no Brasil.
E apresentei como exemplo esses entalhes, os quais nos fornecem uma prova material da presença de aborígenes hispano-americanos no Brasil, o que é de muito valor no conjunto da história brasileira do século XVI.
Por fim, gostaria de fazer notar que esta capela de taipa é a mais antiga igreja da cidade de São Paulo. Como patrimônio inteiro, intacto, ela é uma preciosidade.