Bem, agora podemos continuar a história de Dom Beppi. Já lhes contei como ele se tornara pároco daquela pequena cidade no meio das montanhas.

No cimo da mais alta colina estava a igreja matriz, e no altar-mor desta havia uma imagem da Virgem, conhecida por não ser exatamente modelo de beleza…

Digamos a verdade: era feia, e muito feia. Passaram-se os anos, e todos os esforços de Dom Beppi para substituí-la foram frustrados. Os fiéis tinham tal apreço a ela, que o pároco não podia mais sequer mencionar a hipótese de tirá-la da igreja.

Parecia, então, que Dom Beppi tinha desistido, pois não tocou mais no assunto. Mas, para quem realmente o conhecia, essa sua atitude representava um mau sinal. Posso lhes garantir, ele sabia ser mais teimoso do que todos os seus paroquianos reunidos.

Por fim, chegou o mês de agosto, e com ele a grande procissão da Padroeira, que percorria as principais ruas da cidadezinha, com tudo quanto se costuma fazer nessas ocasiões: banda de música, confrarias e irmandades. Até o prefeito iria participar.

Uma tarde, reunido com os organizadores, Dom Beppi comunicou:

Neste ano, vamos estender a procissão pelas casas novas, ao norte da cidade.

— Mas aumenta muito o percurso! – disse “seu” Manuel, um barbudo comerciante.

Sendo o chefe dos carregadores do pesadíssimo andor, ele assustou-se ao imaginar suas costas vergando ao longo da caminhada de algumas milhas, debaixo do tórrido sol de verão.

Senhor Manuel – respondeu Dom Beppi – o trajeto será, de fato, bem mais longo, mas acho de grande importância que a imagem da Virgem estenda sua benção ao casario novo.

E consolando o comerciante disse:

— Assim, já falei com o Mantovanni, que vai nos emprestar seu caminhão. Sobre ele montaremos o andor e faremos todo o percurso de modo digno… e sem quebrar a espinha de ninguém.

Ainda se discutiu um pouco o assunto, mas, por fim, todos concordaram de bom grado. Na verdade, “seu” Manuel ficou bastante aliviado com a história do caminhão, pois este o livrava do sacrifício de carregar o terrível peso.

E assim foi. Dias antes da procissão, trouxeram o caminhão para o depósito atrás da casa paroquial.

Era um daqueles velhos e toscos veículos de antes da guerra, de pneus duros e molas arcaicas. Mas, no fim, bem adornado com flores e guirlandas, o conjunto ficou até bonito.

A única coisa destoante, evidentemente, era a imagem. Saindo ao sol, nem todos os enfeites conseguiam esconder sua feiúra. Os confrades olhavam de soslaio para o pároco, mas este nada disse.

— Que bom! O padre já se acostumou com a Virgem Feia!

Começou a procissão. Tudo decorria como de costume, e o povo acompanhava contente, rezando e cantando. Em certo momento, como fora combinado, o velho caminhão enveredou pelo caminho do bairro novo.

Não havia ali ruas pavimentadas, e as veredas de terra nua estavam tão esburacadas e cheias de valetas que muita gente vacilou em prosseguir.

Resvalando no cascalho, o caminhão sacolejava como um boi bravo e, na direção, o infeliz Mantovanni maldizia o momento em que concordara com a ousada ideia de fazer esse trajeto.

Os moradores do casario novo se rejubilavam pela consideração com a qual o pároco os distinguira, e alegremente acenavam lenços das calçadas e das janelas.

Os participantes da procissão, porém, temiam pela imagem, que avançava aos trambolhões pelo acidentado caminho. Tal era a apreensão, que um grande espaço vazio foi aos poucos se abrindo na multidão em torno do andor motorizado.

Dom Beppi, no entanto, seguia tranquilo e seguro. A estrutura de madeira fora solidamente fixada na carroceria do caminhão, e não se abalou em momento algum.

Mas… como poderia a antiquíssima imagem suportar os fortes e contínuos abalos?

Continuava a reza do terço, entremeada de cânticos. Aliviado, o povo já avistava novamente, pouco adiante, as ruas pavimentadas. Aquelas últimas duas quadras, porém, eram as piores de todas.

Os fiéis rezavam mais alto, os músicos tocavam com maior vigor. Mantovanni tentava a todo custo levar seu velho veículo pelo caminho menos ruim possível. Dom Beppi mantinha-se calado.

Entretanto, a Virgem Feia não conseguiu superar aquele fatídico trecho.

Quando faltavam pouco mais de cem metros para alcançar as boas ruas do bairro antigo, o caminhão derrapou e caiu numa grande valeta.

A violenta queda produziu na velha imagem o efeito de um coice de cavalo: ela se desfez em milhares de fragmentos, levantando uma nuvem de pó e caliça.

Um grande grito se elevou da multidão. Mas não foi só pela destruição da Virgem Feia: desfeita a grossa casca de argamassa, surgiu cintilante uma maravilhosa imagem de prata, com um rosto tão belo e inocente como o de algumas famosas obras de arte medievais.

Espantados, Dom Beppi e os fiéis compreenderam num instante o porquê da existência da disforme peça de “escultura” que acabava de esboroar-se: 

Num passado remoto, em situação de iminente perigo, alguém recobrira às pressas a admirável imagem de prata com aquela massa de argila e gesso, para protegê-la dos bárbaros ou dos ladrões.

E assim “esculpiu” a Virgem Feia, a qual teve o mérito de, durante séculos, defender da sanha dos malfeitores a preciosa imagem de prata, a Virgem Bela.

Conduzida em triunfo para a igreja, a Virgem Bela foi solenemente entronizada, em meio aos cânticos e exclamações da multidão entusiasmada.

Contemplando a magnífica imagem sobre o altar, Dom Beppi meditava: “Quantas outras maravilhas não terá Deus posto na Santa Igreja, e permanecem ocultas aos olhos dos homens para, em certo momento, virem à luz com todo esplendor?”

À noite, porém, antes de dormir, ele relembrou os acontecimentos daquele dia.

Na verdade, tudo fora planejado por ele – as ruas esburacadas, o velho caminhão de pneus duros e molas deficientes – para que a imagem se espatifasse.

E à mente lhe veio um escrúpulo: teria feito o bem, agindo dessa maneira? Não teria cometido uma falta, destruindo deliberadamente uma imagem da Virgem à qual o povo tinha devoção, por mais feia que ela fosse?

No dia seguinte, foi à igreja logo de manhã e teve a satisfação de ver grande número de fiéis rezando diante da recém-descoberta imagem.

E duas novidades: muitas flores e uma multidão de inocentes crianças dirigindo à Mãe de Deus suas infantis preces.

Isso desfez os escrúpulos de Dom Beppi: afinal – concluiu ele – tudo fora obra da própria Virgem Bela que, por meio de seu pároco, escolheu aquele momento para revelar-se aos seus filhos e ao mundo!