Roma é uma cidade plena de história e de encantos. Quiçá, em nenhum outro lugar do mundo os monumentos da Antiguidade clássica se encontrem em tão perfeita harmonia com as maravilhas oriundas da Civilização Cristã.

Caminhando pela margem esquerda do legendário Tibre, que cruza o centro histórico da Cidade Eterna, é possível contemplar ao longe a esguia torre da Basílica de Santa Maria in Cosmedin.

Edificada por volta do século VI, sobre as ruínas de um antigo templo, é hoje uma das igrejas mais visitadas de Roma.

Denominava-se inicialmente Santa Maria in Schola Græca, em razão de uma próspera colônia helênica situada em seus arredores.

Por volta do ano 780, foi confiada a uma comunidade de monges bizantinos, os quais a adornaram com majestosas colunas e ricos mosaicos.

Devido ainda à beleza de suas pinturas e à suntuosidade do seu pavimento cosmatesco, recebeu o merecido título que conserva até hoje: Santa Maria in Cosmedin (do grego, Cosmidion, “bem ornamentada”).

 “Bocca della Verità”

Uma fábula multissecular

Turistas provenientes de diversas partes do mundo cruzam todos os dias o pórtico desse histórico recinto sagrado. Muitos, todavia, não são atraídos pelos seus belos afrescos, nem pelos melodiosos hinos da Liturgia oriental que ali se entoam.

A longa fila de turistas se dispersa ainda no átrio da Igreja, defronte a uma grande pedra circular amparada por um capitel.

E se algum transeunte pouco informado dessas “curiosidades romanas”, perguntasse a um dos presentes o que o levou a visitar o belo edifício, bem poderia ouvir a seguinte resposta: “Vim aqui para conhecer a Boca da Verdade”

Medindo 1,75m de diâmetro e pesando cerca de uma tonelada, a Bocca della Verità é um grande disco de mármore no qual se encontra esculpida uma grotesca face com a boca aberta.

Para alguns, ela representa alguma divindade fluvial cujo nome a História não guardou; para outros, o frontispício de uma grandiosa fonte. Muitos, porém, julgam tratar-se da tampa de um velho bueiro romano.

E uma lenda medieval atribuiu a esta escultura de pedra o admirável poder de punir os mentirosos: teria seus dedos amputados quem pusesse a mão na boca dessa máscara de mármore e dissesse uma mentira.

Uma das razões do sucesso desta fábula, que perdura até nossos dias, deve-se por certo ao fato de a Boca da Verdade jamais ter posto em prática seu prodigioso poder de punir. Bem podemos nos perguntar: Por quê?

Talvez por considerar como verdadeiras todas as palavras proferidas pelos homens… Sua inoperância, porém, pode ter uma razão mais profunda: influenciada pelo relativismo da sociedade contemporânea, teria perdido a capacidade de distinguir o verdadeiro do falso…

O homem anseia por conhecer a verdade

Mesmo sendo uma mera curiosidade histórica, a lenda da Bocca della Verità põe em relevo um dos anseios mais enraizados no coração do homem.

Com efeito, é inerente ao ser humano o desejo de conhecer a verdade, ainda que este se manifeste através de meios tão diversos quanto inusitados.

São Tomás de Aquino parte desse pressuposto em sua obra A Unidade do Intelecto: “Omnes homines naturaliter scire desiderant veritatemPor natureza, todos os homens desejam conhecer a verdade”.1 

Ainda segundo este Santo Doutor, o homem, por sua natureza espiritual, anseia por conhecer a verdade das coisas, assim como, por sua natureza corporal, almeja os prazeres próprios ao corpo.2

Tal aspiração de conhecer a verdade se manifesta no íntimo do ser humano sob a forma de indagações sobre o fundamento último de sua existência, bem como sobre a natureza dos seres circundantes.

A este propósito, afirmou São João Paulo II:

Em toda a criação visível, o homem é o único ser que é capaz não só de saber, mas também de saber que sabe, e por isso se interessa pela verdade real daquilo que vê.

Ninguém pode sinceramente ficar indiferente quanto à verdade do seu saber. Se descobre que é falso, rejeita-o; se, pelo contrário, consegue certificar-se da sua verdade, sente-se satisfeito.3

“Por que a verdade gera o ódio?”

Devido a esta intrínseca sede da verdade, a qual espontaneamente aflora na mente humana, bem se poderia imaginar que a verdade foi sempre compreendida e amada por todos.

Contudo, Santo Agostinho nos oferece uma opinião diferente: “A verdade é doce e amarga. Doce quando perdoa; amarga quando visa curar”.4

Ora, nem sempre os homens estão dispostos a aceitar o amargo sabor da verdade quando esta se manifesta sob a forma de uma censura ou repreensão. Tal atitude de inconformidade levou o Bispo de Hipona a formular a seguinte pergunta: “Por que a verdade gera o ódio?”. E responde:

É tal o amor à verdade, que aqueles que amam algo diferente pretendem que o objeto de seu amor seja a verdade; e como não admitem ser enganados, não querem convencer-se de seu erro.

Do amor àquilo que supõem ser a verdade, provém seu ódio à verdade.

Amam seu esplendor e odeiam sua censura. Gostam de enganar e detestam ser enganados, por isso a amam quando se revela e odeiam quando os acusa.5

Sob o signo da “ditadura do relativismo”

Há, contudo, uma terceira atitude perante a verdade: ela não existe e, se existisse, seria impossível conhecê-la. “Tudo é relativo; eis o único princípio absoluto”,6afirmou Augusto Comte no início do século XIX.

Cerca de dois séculos depois o então Cardeal Joseph Ratzinger denunciava a “ditadura do relativismo” como um dos mais graves problemas do momento atual:

Ter uma fé clara, segundo o Credo da Igreja, muitas vezes é classificado como fundamentalismo.

Enquanto o relativismo — isto é, deixar-se levar “aqui e além por qualquer vento de doutrina” — aparece como a única atitude à altura dos tempos hodiernos.

Vai-se constituindo uma ditadura do relativismo que nada reconhece como definitivo e que deixa como última medida apenas o próprio eu e as suas vontades.7

E três anos depois, respondendo às perguntas dos Bispos norte-americanos, o Papa Bento XVI esclarecia: “Em última análise, a ‘ditadura do relativismo’ nada mais é do que uma ameaça à liberdade humana, a qual amadurece na generosidade e na fidelidade à verdade”.8

Este problema já tinha ­sido levantado com grande profundidade por São João Paulo II na encíclica Fides et ratio, onde mostra a contraditória situação pela qual passa a razão filosófica em nossos dias:

Mais recentemente, ganharam relevo diversas doutrinas que tendem a desvalorizar até mesmo aquelas verdades que o homem estava certo de ter alcançado.

A legítima pluralidade de posições cedeu o lugar a um pluralismo indefinido, fundado no pressuposto de que todas as posições são equivalentes: trata-se de um dos sintomas mais difusos, no contexto atual, de desconfiança na verdade.

E esta ressalva vale também para certas concepções de vida originárias do Oriente: é que negam à verdade o seu caráter exclusivo, ao partirem do pressuposto de que ela se manifesta de modo igual em doutrinas diversas ou mesmo contraditórias entre si.

Neste horizonte, tudo fica reduzido a mera opinião.9

E conclui observando que, segundo certas correntes do pensamento dito pós-moderno, “o tempo das certezas teria irremediavelmente passado, o homem deveria finalmente aprender a viver num horizonte de ausência total de sentido, sob o signo do provisório e do efêmero”.10

Uma pergunta vigente há dois milênios

Assim, o homem contemporâneo parece retomar a cética pergunta feita por Pilatos a Nosso Senhor Jesus Cristo: “Quid est veritas? — O que é a verdade?” (Jo 18, 38).

E ele a faz parecendo temer não tanto a verdade em si mesma, mas as ­consequências que derivam da obediência aos seus preceitos.

A essa pergunta, formulada há quase dois milênios, é possível responder com o perfeito anagrama lembrado pelo Papa Paulo VI numa de suas audiências.

Usando as mesmas letras da pergunta de Pilatos diríamos que a verdade “est vir qui adest — é o Homem que está aqui”.11 Pois no Cristianismo a “Verdade” não é um “que”, mas um “quem”.

Ela não é um mero conceito teórico, mas sim uma Pessoa cujo nome é Jesus, Filho de Deus e da Virgem Maria.

“Quem procura a verdade, consciente ou inconscientemente, procura a Deus”,12 escreveu Santa Teresa Benedita da Cruz, lembrando o tempo em que trilhava as sendas da filosofia.

Por isso, caro leitor, se alguma vez você tiver oportunidade de fazer uma peregrinação à Cidade Eterna, não deixe de visitar a Basílica de Santa Maria in Cosmedin, para contemplar suas maravilhas. Todavia, não se detenha em seu átrio, à busca da verdade.

Entre, dirija-se ao altar e fique bem junto do sacrário. Ali estará à sua espera, não a lendária Bocca della Verità, mas a Verdade autêntica, Jesus Cristo, Senhor nosso.

Ele terá com certeza algo de extraordinário a dizer-lhe, pois “os lábios que dizem a verdade permanecem para sempre, mas a língua mentirosa dura apenas um instante” (Pr 12, 19). 

Jesus diante de Pilatos, por Duccio di Buoninsegna - Museo dell’Opera del Duomo, Florença (Itália)

1 SÃO TOMÁS DE AQUINO. De unitate Intellectus. Proœmium.
2 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. II-II, q. 166, a. 2.
3 SÃO JOÃO PAULO II. Fides et ratio, n. 25.
4 SANTO AGOSTINHO. Epistola CCXLVII, n. 1: ML 33, 1062.
5 SANTO AGOSTINHO. Confessionum. L.X, c. 23, n. 34: ML 32, 794.
6 COMTE, Auguste. Appendice général. Préface spéciale. In: Système de politique positive. Paris: Carilian-Goeury et Vor Dalmont, 1854, t. IV, p. II.
7 RATZINGER, Joseph. Homilia na Missa “pro eligendo Romano Pontifice”, de 18/4/2005.
8 BENTO XVI. Respostas às perguntas de Bispos americanos, n. 1, de 16/4/2008.
9 SÃO JOÃO PAULO II, op. cit., n. 5.
10 Idem, n. 91.
11 PAULO VI. Audiência geral, de 20/5/1970.
12 SANTA TERESA BENEDITA DA CRUZ, apud SÃO JOÃO PAULO II. Homilia na cerimônia de canonização, n. 5, de 11/10/1998.