Como o senhor veio para o Brasil?

Quando eu tinha nove anos (em 1950), meus pais resolveram mudar-se de Xangai para Hong Kong.

Todos sabiam que os comunistas não permitiriam a prática religiosa livre, e meus pais preferiram perder todos os bens materiais a perder a Fé, a não poder praticar a Religião.

Saímos da China por um motivo de religião e de liberdade. Um povo sem liberdade não é um povo, é um escravo.

Em Hong Kong, entrei para o Seminário Menor dos Salesianos. Mas pouco tempo depois meus pais pensaram que ali também não estavam seguros, porque um dia aquilo voltaria a pertencer à China comunista. Decidiram então vir para o Brasil.

Eu queria ficar na China, para ser um dia missionário junto aos meus irmãos que não conheciam Deus, porém, o Superior Geral dos Salesianos achou melhor eu acompanhar a família. 

Chegando aqui, continuei a formação, tornei-me salesiano, e em 2002 o Papa me nomeou Bispo desta diocese de São Gabriel da Cachoeira.

Quais as características desta diocese?

A diocese se estende por uma área de 286.866 km2. Tem, portanto, um território que corresponde a quase sete vezes o da Holanda; é maior que o Estado de São Paulo.

As viagens aqui só podem ser feitas por via fluvial ou aérea – carro, nem pensar! – e são caras e perigosas. Eu mesmo já enfrentei cachoeiras de três, quatro metros. Já morreram vários missionários salesianos na diocese.

Ela tem dez paróquias e mais de mil comunidades rurais. Para tudo isso, disponho de somente dezoito padres. Graças a Deus, há muitos irmãos salesianos e irmãs.

Já visitei mais de sete mil famílias em toda a diocese. E já recebi respostas malcriadas, agressivas, porque eu declaro que sou o Bispo católico, e há por aqui alguns irmãos separados que não me aceitam bem. 

Costumo perguntar como estão, se estão felizes, se estão bem de saúde. Pergunto alguma coisa sobre a Religião, deixo alguns presentes: a Bíblia, o Novo Testamento, uma estampa de Nossa Senhora… Onde está Maria, o demônio não entra.

Esta é uma realidade pouco conhecida…

No ano passado, a Campanha da Fraternidade foi sobre a Amazônia, e foi uma ocasião muito boa para divulgar melhor este mundo desconhecido e até, às vezes, temível.

Eu vejo que a Igreja Católica, graças a Deus, está sendo bem informada, através de publicações como a revista Arautos do Evangelho, e também da internet.

Os trabalhos são muito difíceis, mas é preciso ter um coração otimista, esperançoso e sonhador, como Dom Bosco era sonhador. Eu agradeço a Deus essa graça, o dom de trabalhar aqui.

Acabo de aceitar pedidos para administrar o Sacramento da Crisma em três comunidades rurais; vamos lá, onde não há banheiro, chuveiro, quarto, cama… Pareço escoteiro!

Cada vez que saio, agradeço a Deus pela ocasião de poder distribuir seu dom, a Palavra, a Eucaristia; e quando volto, agradeço novamente.

Bento XVI afirmou que onde não está Deus, não se respeita a criação. Como o senhor vê esse fato? 

A Amazônia tem sido muito explorada, gananciosamente desejada, e cada um que vem aqui leva uma parte da riqueza material, ambiental.

Ela é uma riqueza, mas não deve ser explorada de qualquer jeito, tem de ser aproveitada do melhor modo possível. Há muita riqueza aqui: ouro, diamantes, plantas, além de outras ainda por descobrir.

A parte mais importante, porém, é a espiritual. 

E nosso trabalho, especialmente como Igreja Católica, é recuperar o homem. Vendo essa natureza tão bonita, alguém poderia pensar que aqui não há problemas… Ora, há problemas sérios. 

O alcoolismo, que é um problema mundial, mas aqui… Eu vejo pessoas muito inocentes, muito ingênuas, bebendo e se destruindo. A prostituição, não só adulta, mas também infantil… A droga está entrando muito nesta região, situada muito perto da Colômbia.

Nos meus seis anos de trabalho missionário, vejo que esses problemas se agravam cada vez mais.

Os missionários da Amazônia realmente foram heróis, infelizmente pouco compreendidos, e muitas vezes difamados.

Que tipo de difamação?

Nós, os missionários, somos acusados de destruidores da cultura indígena, de proibir a língua deles, de ter matado os pobres índios. São coisas absurdas! Somente vindo para cá e vendo a realidade é que se valoriza o trabalho dos missionários.

Eles são pessoas que deixaram a pátria, pai, mãe, cultura e comida gostosa. É preciso vir para cá e ver a realidade, muitas vezes precária, carente e necessitada.

Então, eu aproveito para esclarecer o público: nós não matamos ninguém; graças a Deus, não destruímos cultura, pelo contrário, nós valorizamos, preservamos e incentivamos a cultura, danças, cantos, artesanato, pinturas. 

É uma grande injustiça acusar os missionários de coisas que eles não fizeram. Também nós somos acusados. Jesus também foi acusado injustamente. 

E a população, como trata os missionários?

Com muita alegria, vemos cidades inteiras, de seis mil, de oito mil habitantes, todos católicos fiéis. Receberam a Fé Católica e a conservam fielmente.

Às vezes chega um agente de outra religião, oferece dinheiro, oferece cesta básica. Ele vai ao chefe, ao cacique da comunidade e lhe diz:

Eu lhe dou um salário mínimo, uma cesta básica, você muda de religião e fala para os seus irmãos mudarem também…

Algumas vezes, os indígenas ficaram tão indignados que responderam com pontapés no autor da proposta.

Nós temos espírito ecumênico, não atacamos ninguém, permitimos que todos trabalhem, porque a Fé é um dom de Deus que se aceita livremente, tendo depois que desenvolvê-la.

O senhor queria dizer algo aos leitores?

Agradeço muito essa vinda dos Arautos. Eu achava que não viriam, porque é uma viagem muito dispendiosa.

Mas qual não foi minha surpresa quando vi no avião alguns moços e logo identifiquei: “São sérios, de cabelo bem aparado, devem ser Arautos do Evangelho”. É uma grande alegria receber vocês, estamos muito contentes e satisfeitos.

Faço um convite aos leitores: Venham aqui nos conhecer, passar um tempo conosco nesta terra de missão! Não há problema algum, basta não ter medo de pernilongos, nem de cobras…


Dom José Song Sui Wan nasceu em Xangai, China, em 1941. Recebeu a ordenação sacerdotal em 1971 e episcopal em 2002. Tem mestrado em Filosofia e em Teologia, pela Pontifícia Universidade Salesiana, de Roma.
Além do chinês e alguns de seus dialetos, domina diversas línguas ocidentais: italiano, português, espanhol, inglês, francês, alemão, latim e grego.
Com 67 anos de idade, define-se como um homem “muito alegre”. E acrescenta: “Sui Wan, em chinês, significa ‘Nuvem Feliz’. Gosto de música. Toco instrumentos musicais. Faço mágicas. Gosto de contar histórias.” Assim era o fundador da Congregação Salesiana, São João Bosco.