O senhor foi recebido pelo Santo Padre para a visita de despedida do cargo de Embaixador do Brasil no Vaticano. Poderia dizer-nos algo dessa conversa?
A visita de despedida ao Santo Padre é muito simples, não enseja propriamente uma conversa. O Santo Padre foi muito afável, tendo referido-se afetuosamente ao Brasil.
Tive a oportunidade de reiterar a intenção do Governo brasileiro de manter e estreitar as relações com a Santa Sé. Ao final do encontro, o Santo Padre fez entrar minha mulher e cada um de nós recebeu dele um Rosário.
A visita de despedida é mais um momento formal do que um encontro para discutir temas específicos.
A Embaixada junto à Santa Sé certamente tem diferenças importantes em relação aos outros países. Quais são os principais traços dessa missão? Em que medida influi o fato de ser o Brasil o país com maior número de católicos do mundo?
Uma definição clássica das funções do diplomata é: representar, negociar e informar. Na Santa Sé, a ênfase principal está na função de representar e de informar. A parte de negociação é mais limitada.
Nesse contexto, cabe ao Embaixador marcar sua presença, deixando sempre clara a importância que o Governo brasileiro atribui a esta relação, ao mesmo tempo em que acompanha e avalia a política externa desenvolvida pela Santa Sé e as tendências prevalecentes na relação da Cúria com a Igreja no Brasil.
Sob esse último aspecto, o fato de ser o Brasil o país com o maior número de católicos no mundo é importante, porque obviamente – embora o Brasil não esteja muito representado na Cúria – o peso da Igreja brasileira se faz sentir muito especialmente no Vaticano.
No entanto, trata-se de uma relação da Igreja do Brasil com a Cúria, que não necessariamente envolve o Estado.
O observador diplomático deve buscar entender as linhas principais desse relacionamento. Nesse sentido, acompanhar as visitas ad Limina dos Bispos brasileiros foi muito útil para mim.
Foi uma ocasião muito especial de poder conhecer a ampla diversidade do Episcopado brasileiro, diversidade que se reflete na própria composição dos grupos.
Estiveram aqui mais de 300 Bispos, divididos em 13 grupos. As visitas ocorreram entre 2009 e 2010, com alguns intervalos, e pude apreciar bastante essa dimensão.
O acompanhamento das visitas ad Limina proporcionou-lhe ocasião de conhecer mais profundamente o Brasil?
Sem a menor dúvida, pois a Igreja é uma instituição que reflete todas as realidades do Brasil. Essas realidades se manifestam na atuação pastoral dos Bispos em suas respectivas dioceses, seja nas grandes cidades, seja nas regiões mais remotas do Brasil.
É interessante poder conhecer as diferentes perspectivas envolvidas. Tive a oportunidade de convidar cada um dos grupos à Residência para jantar, ocasião em que pudemos confraternizar e discutir várias idéias. Foi para mim uma experiência muito enriquecedora.
Durante sua missão em Roma, quais foram os momentos mais marcantes para o senhor?
Eu diria que, do ponto de vista mais amplo, foi esse contato muito estreito com o Episcopado brasileiro.
Seja no transcurso das visitas ad Limina, seja nas diversas ocasiões em que altos dignitários brasileiros estiveram em Roma: o Arcebispo de São Paulo, o Arcebispo do Rio de Janeiro e vários novos Arcebispos brasileiros que receberam o pálio.
Tivemos também oportunidade de assistir a criação de um Cardeal: Dom Raimundo Damasceno.
Outro momento marcante foi a troca dos instrumentos de ratificação do Acordo entre o Brasil e a Santa Sé, que me tocou fazer com Dom Dominique Mamberti, Secretário para as Relações com os Estados, culminando um longo trabalho de negociação que precedeu a minha chegada aqui.
Coube a mim o acompanhamento da aprovação legislativa do Acordo e, posteriormente, a troca dos instrumentos de ratificação que eleva a relação entre o Brasil e a Santa Sé a um patamar formal muito importante.
Em termos pessoais e espirituais, o que significou para o senhor, como católico praticante, esse tempo passado no Vaticano?
Foram dois anos e meio de contato com a Hierarquia católica, durante os quais pude participar de celebrações muito tocantes, fazer parte de um grupo que se reunia uma vez por mês para discutir trechos da Bíblia, ler muito sobre a história do Cristianismo e vários outros assuntos.
Creio que recuperei uma intimidade, por assim dizer, com a Religião, não apenas com a Liturgia, mas sobretudo com os aspectos mais fundamentais da nossa Fé.
Foi quase como se houvesse um reencontro.
Foi possível recuperar a intensidade do contato religioso – que desde meus tempos de colégio, em que fui aluno dos jesuítas, não era tão grande – pois pude ir além, digamos, da parte formal que a religião ocupa na vida de cada um – Missa, Sacramentos, etc. – para um contato que supera essa experiência.
A influência do Brasil no panorama internacional vem crescendo nos últimos anos. Em que medida contribuem para isso os valores humanos e espirituais do povo brasileiro?
É uma boa pergunta. Nunca pensei sobre este aspecto. Nós, como profissionais da diplomacia, tendemos a lidar com fenômenos mais concretos ou mais mensuráveis, definir os espaços de atuação e a participação do país nos grandes foros internacionais.
Na minha opinião, o que credenciou o Brasil para assumir esse papel mais importante no mundo foi um conjunto de fatores que giram em torno de três elementos.
O primeiro, e o mais importante de todos, foi a consolidação da democracia. Para a minha geração, essa é a conquista mais importante realizada nos últimos anos.
Hoje, a democracia é uma realidade incontestável no Brasil. Sabemos que ela, por si só, não resolve os nossos problemas, mas sem ela estes jamais serão resolvidos.
O segundo aspecto é o crescimento econômico. A situação econômica tem dado provas de estabilidade, com um crescimento sustentado e bastante intenso.
O terceiro aspecto, a meu ver, é o da inclusão social.
Nosso país foi marcado por muitas divisões e desigualdades – e ainda o é –, mas elas foram muito atenuadas pelas políticas ativas de inclusão social, desenvolvidas nos últimos anos, que tiraram milhões e milhões de brasileiros da linha da pobreza.
E com isso, não só foram dadas condições mais humanas e dignas de vida às famílias, como foi alimentado o próprio crescimento econômico, através da participação dessas novas camadas no mercado.
São, portanto, esses três elementos que caracterizam essa nova estatura do Brasil.
Sem dúvida, um dos fatores que nos leva também a ter, do ponto de vista mais operativo, uma grande influência internacional é justamente a propensão da sociedade brasileira a convergências.
Temos no interior do nosso país divisões muito semelhantes às que prevalecem no contexto internacional como um todo. Então, todo o sentido da política no Brasil é a busca de convergências, nunca oposições ou contraposições.
A tendência à conciliação, no plano político interno, é muito intensa no Brasil. Nós procuramos transpor esse mesmo espírito para nossa política externa.
Acredito que essa tendência à conciliação, à busca de convergências, é algo que vem, justamente, da formação da sociedade brasileira dentro de princípios morais, ligados à boa convivência entre os homens e à boa vontade.
Quando Embaixador do Brasil na Espanha, o senhor especializou-se no “Período Filipino” da história do Brasil, e afirmou ter sido ele “fugaz, mas repleto de consequências duradouras”. Poderia citar algumas?
O Período Filipino – ou seja, a fase em que Portugal, e portanto o Brasil, estiveram sob a coroa espanhola – deixou consequências muito positivas para nosso país.
Porque possibilitou, de um lado, a expansão territorial dos portugueses para o interior do continente sul-americano, em busca de minerais e pedras preciosas; de outro lado, abriu de certa forma o nosso País a um contato mais direto com seus vizinhos hispânicos.
Isso foi importante sob vários aspectos socioculturais que permaneceram válidos, como a legislação civil aplicada no Brasil a partir das chamadas Ordenações Filipinas.
Essencialmente, o que esse período possibilitou ao Brasil foi, do lado positivo, essa expansão; do lado reativo, a partir do momento em que Portugal recuperou sua soberania, a noção que o elemento português colonizador e o elemento já “brasileiro” daquela época adquiriram de terem construído um imenso patrimônio territorial.
E essa noção de sermos detentores de um território enorme, um dos maiores países do mundo, levou a uma valorização do espírito nacional brasileiro, que é também um dos elementos mais importantes na conformação da nossa política.
Quais são os motivos que o levaram a se interessar pelo Período Filipino?
Sempre me interessei por esse tema, desde jovem estudante, por várias razões.
Em primeiro lugar porque, dedicado à diplomacia, tenho a impressão de que o conhecimento das condicionantes históricas do país é extremamente importante para entender o sentido e a irradiação da nossa postura externa.
Segundo, porque o Brasil tem uma História diferente da dos demais países que se formaram naquele período. Não digo diferente apenas da América do Norte, a qual era, na época, colônia da potência mais avançada do mundo, a Inglaterra, onde começou a Revolução Industrial.
Nós éramos colônia de um país pequeno que àquela altura já estava chegando quase ao final da sua expansão, da época dos descobrimentos, e do apogeu comercial.
Por outro lado, Portugal e Espanha sempre tiveram uma relação antagônica, e essa relação foi, de certa forma, transplantada para a América do Sul, com a vantagem de que não houve propriamente pontos de contato.
As frentes colonizadoras só se encontravam no sul, onde, em certo momento da formação dos estados nacionais, no começo do século XIX, houve alguns conflitos limitados.
Mas havia uma diferenciação. Esta pergunta sempre me intrigou: quais eram esses fatores distintivos da experiência da formação brasileira, que nos singularizaram e que criaram esse corpo social e essa presença diferenciada no mundo?
Isso vem do fundo da nossa História, com a fusão das três raças: o europeu, o indígena e o africano, diferentemente de outros países nos quais esses elementos se mantiveram separados por um tempo muito grande.
No Brasil, embora houvesse o regime de escravidão – que era um regime abominável – foi, desde o começo, de algum modo atenuado por uma grande miscigenação racial, que criou uma sociedade muito especial, fruto também de uma certa tolerância e abertura de espírito.
Há, pois, esses mistérios, esses enigmas, essas singularidades na História do Brasil. Menciono outra característica importante: o Brasil foi o único país-colônia que se tornou sede da monarquia.
Durante as guerras napoleônicas, a Metrópole se transplantou para a colônia, quando Dom João veio para o Brasil em 1808 e a sede da monarquia portuguesa se estabeleceu no Rio de Janeiro.
Isso condicionou o processo de independência do Brasil, que não foi um processo conflitivo; não houve uma guerra de independência. Nós obtivemos uma independência transacionada, mais do que uma independência agressiva.
Resultou desse processo mais uma singularidade do Brasil: tornou-se independente sob o signo da monarquia legitimista num período em que as grandes influências do mundo eram os princípios da Revolução Americana, os princípios da Revolução Francesa.
O senhor promoveu, aqui na Embaixada brasileira em Roma, um seminário a respeito da canonização do Beato Anchieta. Poderia dizer algo sobre o status atual dessa causa?
É uma causa muito antiga. Anchieta esteve ativo no Brasil na segunda metade do séc. XVI. Portanto, num tempo muito remoto. Foi uma das figuras mais importantes na criação da cultura brasileira, enquanto autor de várias obras e agente da catequização do elemento indígena no Brasil.
Através da sua atuação fundaram-se várias cidades, inclusive a de São Paulo, que começou com uma pequena escola por ele criada.
Anchieta teve uma missão pastoral muito intensa no Brasil e assumiu lugar de muito destaque na formação do que se poderia chamar de uma cultura de origem brasileira.
Ele prenunciou o sentimento de Ibero-América, porque era originário de uma família basca que se estabelecera nas Ilhas Canárias, de onde ele, jovenzinho, saiu para fazer seus estudos eclesiásticos em Portugal.
Veio daí para o Brasil, na companhia de outros missionários jesuítas portugueses, para o trabalho de evangelização da nova terra.
É, portanto, uma figura emblemática dessas características do Brasil. Foi muito reverenciado, sendo a ele atribuídos vários milagres – todos documentados – que o levaram à beatificação.
Aqui, procurei criar convergências e dar um certo dinamismo ao processo de canonização. Tomamos algumas iniciativas, como o seminário que o senhor mencionou, e várias outras.
A revista La Civiltà Cattolica publicou um artigo importante sobre ele; o postulador geral dos jesuítas, Pe. Anton Witwer, viajou ao Brasil e visitou todos os lugares “anchietanos”, que vão desde a região de Vitória, no Espírito Santo, até o sul do Estado de São Paulo; e o Episcopado brasileiro,por sua vez, se mobilizou bastante por essa causa.
Há hoje uma tendência, bastante compreensível – creio que iniciada no pontificado de João Paulo II – de dar prioridade às causas mais recentes.
Mas julgo ter plantado uma semente, a qual espero que frutifique. Várias iniciativas estão sendo planejadas para dar continuidade a esse trabalho em torno de Anchieta, e dou-me por satisfeito em ter podido revalorizá-lo nesse meu período em Roma.
Para terminar, qual a mensagem que o senhor gostaria de transmitir aos nossos leitores?
Minha mensagem, para usar uma linguagem da nossa Fé, está baseada nas três virtudes teologais. É uma mensagem de fé: devemos acreditar no Brasil, nas nossas potencialidades, nossas possibilidades, nossas realidades.
É uma mensagem de caridade, porque o desenvolvimento do Brasil supõe essa inclusão social, que tem fundamento no espírito da caridade, da doutrina social da Igreja.
E é uma mensagem de esperança porque, na minha opinião, as possibilidades de nosso país tornar-se mais justo, mais próspero, mais eficaz, de resolver os seus próprios problemas e de contribuir para a solução dos problemas do mundo, dependem muito da nossa perseverança e da nossa capacidade de confiar em nós mesmos.
Portanto, entre a fé, a esperança e a caridade, eu renovo esse sentimento e deixo o posto na Santa Sé muito convencido dessas perspectivas positivas para o Brasil.