Arautos do Evangelho: Como Vossa Eminência analisa o ano de 2007, com relação ao que aconteceu na Igreja de São Paulo e do Brasil?

São Paulo viveu vários momentos importantes no ano de 2007. No final de 2006, Dom Cláudio Hummes foi nomeado Prefeito da Congregação para o Clero. Em seguida, no mês de março, houve minha nomeação para arcebispo, e a posse em fins de abril.

Logo depois recebemos a visita do Papa no Brasil, em São Paulo de modo especial, quando houve a canonização de Frei Galvão e a Conferência do CELAM, esta última em Aparecida. Depois veio minha nomeação cardinalícia. Foi, portanto, um ano de muitos eventos. 

Procuro pensar no significado disso, porque, de alguma forma, é um sinal de carinho da Providência em relação ao Brasil e a São Paulo.

Encontro-me no meio desses acontecimentos com o coração muito agradecido, mas ao mesmo tempo bem consciente da missão que isso representa. Pois, de fato, trata-se de um dom de Deus, de uma graça, mas a toda graça corresponde uma missão, um envio.

De outro lado, é muito importante para o Brasil que haja essas manifestações fortes de presença da vida da Igreja, porque ajudam a confirmar o nosso povo na fé, a reanimá-lo na esperança e a fortificar a consciência de sua identidade católica.

E isso é certamente necessário neste tempo pelo qual estamos passando, com suas próprias dificuldades. Creio que Deus está pensando muito no Brasil. E em São Paulo também. 

AE: Como Vossa Eminência pretende conduzir as atividades pastorais numa cidade tão populosa? 

A Arquidiocese de São Paulo tem uma história apreciável, com grandes pastores à sua frente, que lhe deram sua atual configuração organizativa e pastoral.

Estamos vivendo o ano centenário da criação da Arquidiocese, e isso nos permite tomar consciência do muito que já foi realizado até agora. Temos muito a agradecer a Deus! 

São Paulo é uma comunidade eclesial imensa, inserida num contexto social, cultural, econômico e religioso muito complexo e em constante mudança.

Sinto que a Arquidiocese precisa colocar-se de modo muito realista diante dos atuais desafios que a cidade grande traz para a missão da Igreja e para o trabalho da evangelização. Precisamos fazer um trabalho missionário intenso, capilar e abrangente.

A presença de tantas igrejas, paróquias, comunidades menores, organizações eclesiais e de tantos católicos precisa significar algo de bom para esta cidade.

Na condução das atividades pastorais, conto com a ajuda preciosa de seis bispos auxiliares, e há um clero relativamente numeroso espalhado por toda a cidade, e isso me conforta.

Mas quero contar também com todas as congregações e comunidades de vida consagrada, com suas organizações, assim como com as organizações do laicato.

Em São Paulo temos um grande “corpo missionário” e sinto que é meu dever estimular e encorajar a todos no cumprimento de sua missão. 

AE: Os movimentos podem ajudar as atividades pastorais?

Evidentemente! Todas as organizações da Igreja são convidadas a tomar parte. Vejo que os movimentos, as novas comunidades, as associações católicas têm muito dinamismo, muita capacidade de se mover e de se organizar para fazer isso, para levar avante a proposta do CELAM em Aparecida.

Confio muito nas organizações do laicato católico, nos dois sentidos: seja na ação dentro da Igreja – a ação missionária direta –, seja na atuação na sociedade. Essa é uma das questões que em Aparecida foi fortemente destacada. 

O laicato é missionário na medida em que leva o fermento, o sal, a luz do Evangelho para o ambiente de sua vida, seu trabalho, sua atuação, suas competências, sua participação na sociedade, para transformar a vida na sociedade, cada vez mais de acordo com os critérios do Evangelho, do Reino de Deus.

Ali as organizações dos leigos têm enorme potencial.

É meu desejo incentivar as organizações, as associações, os grupos que, de acordo com as suas competências próprias, proponham-se como leigos católicos: professores, médicos, operários, psicólogos, educadores, juristas, e assim por diante. Algo já está surgindo. 

Após o Consistório, o Cardeal Odilo Scherer recebe a visita de cortesia de uma comitiva dos Arautos do Evangelho

AE: No documento da V Conferência Geral do CELAM, o que lhe parece mais importante?

O documento de Aparecida é muito bonito e rico. Acho que foi muito inspirado. A Conferência realizou-se, aliás, num clima muito bom, muito fraterno e de grande manifestação da fé.

Conforme a opinião de todos os participantes, o ambiente de oração e as manifestações de fé e alegria dos peregrinos ajudaram a própria Conferência. O povo que acorreu até lá também participou de alguma forma.

Agora é o momento de acolher a proposta de Aparecida. Estamos estimulando todas as organizações da Igreja – os movimentos, as associações, as congregações e ordens religiosas, as comunidades, as paróquias, as pastorais, o laicato – a que também o façam.

Que todos tomem em mãos a proposta de Aparecida e procurem absorvê-la para o seu âmbito próprio. 

Existe claramente uma proposta comum, que perpassa todo o documento. Primeiro, a de uma nova consciência da alegria de sermos cristãos, o discipulado.

Redescobrir a alegria, a riqueza da fé cristã, a beleza da pertença a esta Igreja da qual tantas vezes se falou mal nestes tempos. Precisamos colocar em evidência a beleza dessa pertença à Igreja.

A Igreja não é somente uma organização humana; é também obra humana. Contudo, mais do que isso, ela é obra de Deus, é a ação do Espírito Santo.

Assim, na fragilidade humana estão a graça e a obra de Deus. Embora esse tesouro esteja colocado em vasos de barro – como é bela a proposta da Igreja, do Evangelho, da vida e da esperança cristãs, da salvação, da misericórdia de Deus presente na Igreja, para que a Igreja manifeste isto ao mundo!

Esse é o dom, isso é o que precisamos pôr muito em evidência, muito mais do que as nossas fragilidades.

Este é o primeiro lado da proposta de Aparecida: compartilhar novamente, com os povos da América Latina, a beleza e alegria da proposta cristã.

O Papa dizia em Aparecida que a Igreja não cresce por proselitismo, por conquista, à força, mas sim por atração, pela proposta.

Dentro da proposta cristã, que convence, as pessoas se sentem atraídas pela luz, pela pureza, pela força, pela riqueza desta proposta cristã. 

A segunda questão que perpassa toda a proposta de Aparecida é a missionária.

Não há dúvida de que a nossa Igreja na América Latina, no Brasil, precisa adotar uma postura de cuidar do que é seu, para ser missionária: cuidar de nós, de todo o rebanho, de nossas organizações em função da missão.

Dar o que recebemos e saber que estamos aqui em função da missão.

Portanto, essa dimensão missionária precisa ser reavivada fortemente em todos os níveis, desde a família – cada pessoa, cada batizado –, até as organizações católicas. Todos precisam cultivar fortemente sua dimensão missionária.

Parece-me que agora a questão é trabalhar. Que isso se estabeleça e modifique pouco a pouco a vida da Igreja, que marque, digamos assim, toda a organização eclesial, nossas posturas, para podermos ser verdadeiramente uma Igreja em estado de missão.

AE: Como Vossa Eminência se sentiu chamado para o sacerdócio?

A origem da minha vocação é bem simples. Sou de família católica, e em casa se cultivava a vida cristã normalmente, sem nada de exagero, de afetação.

Rezava-se a cada dia, os pais procuravam educar os filhos no temor de Deus, no respeito a Deus, ao próximo, à Igreja.

Entre meus parentes houve sempre religiosos e padres; aquilo, naturalmente, deixava uma referência para as crianças. E desde pequeno eu queria ser padre; desde que me conheço por gente eu queria ser sacerdote.

AE: Poderia revelar o que levou o Santo Padre a pôr Vossa Eminência à frente de uma das maiores dioceses do mundo?

Fico muito grato ao Santo Padre e sensibilizado pela confiança que depositou em mim ao nomear-me Arcebispo de São Paulo.

Sinceramente, não saberia dizer quais foram os motivos que o levaram a nomear-me, mas isso também não importa muito neste momento.

O fato é que a Igreja, por meio da decisão do Papa, confiou-me uma missão e, desde que a aceitei, só tenho que me colocar nas mãos de Deus e contar com a sua graça, sem esquecer do apoio e da colaboração de toda a comunidade eclesial de São Paulo.

A relativa pressa de minha nomeação fez-me refletir sobre a vontade de Deus a meu respeito. 

AE: O que o pastor, neste caso o cardeal, sente pelo rebanho, por aqueles que estão sob seus cuidados?

Pelo meu povo de São Paulo – o grande povo de São Paulo – eu tenho o maior carinho e atenção. Sinto muita alegria por ser seu pastor.

Ao mesmo tempo, sinto por todos uma responsabilidade pessoal, e um desejo de falar ao coração de cada um, em nome de Jesus Cristo, Bom Pastor.

Sinto um enorme desejo de me aproximar, de estar junto, de poder dialogar, falar, confortar, de poder ouvir o povo de nossa cidade. 

Orientado pelo seu sentimento de fé, o povo reconhece no ministro ordenado, padre e bispo, um ministro de Deus e alguém que o vincula ao Bom Pastor.

E ele está certo; no seu modo simples e espontâneo de se relacionar com o bispo, traduz uma convicção firme da nossa Igreja.

A autoridade conferida ao bispo é um serviço e se orienta para o cumprimento da sua missão e para o bem da vida da Igreja.

Compreendo sempre melhor as palavras de Santo Agostinho: assusta-me aquilo que sou para vós, pois é uma enorme responsabilidade; mas alegro-me por aquilo que sou convosco, enquanto batizado: um cristão, discípulo e missionário de Jesus Cristo. 

AE: Vossa Eminência gostaria de dizer uma última palavra?

Os Arautos do Evangelho têm bastante gente em minha Arquidiocese, e uma grande organização em São Paulo. Meu incentivo é que façam bem o seu trabalho, continuem fazendo seu apostolado, ajudem a formar os leigos, os jovens.

Precisamos dispor de uma geração de católicos bem instruídos, com bons fundamentos doutrinais, clareza dos conceitos cristãos, boa moral, formação reta e, é claro, esse amor e essa proximidade da vida da Igreja, que são muito importantes.

Acho que é um privilégio para os jovens, os adolescentes, serem introduzidos na vida da Igreja. Trata-se de algo que muitas pessoas só vão descobrir tarde na vida, pensando: “Que pena ter conhecido isto só agora!”.

Quando as pessoas desde cedo são ajudadas e introduzidas na vida da Igreja, elas descobrem muitas coisas boas, e vêem quanta beleza pode acompanhá-las em sua existência. E, por sua vez, elas colocarão isso a serviço dos demais.