Contava-se, na antiga Europa, as maravilhas do Preste João, de cuja existência ninguém ousava duvidar. Vivia ele num reino misterioso, de localização desconhecida; cristão, apesar de perdido no Oriente.
Não havia na terra soberano como o Preste João! Sete reis o serviam, bem como sessenta duques, trezentos condes e fidalgos sem conta. Tinha por cozinheiro um rei-abade, por copeiro um rei-bispo, e um arcebispo por mordomo.
Seu reino era o lugar onde os sonhos se convertiam em realidade. Lá corriam rios subterrâneos de pedras preciosas e misteriosas, dentre elas, uma que dava a vista aos cegos e tornava as pessoas invisíveis. Não ocorriam roubos nem assassínios, todos diziam a verdade e o vício não existia. Tratava-se de um paraíso terrenal, que nenhum europeu ainda descobrira!1
Para os homens de hoje, essa lenda relata algo irreal, impossível e pueril. Entretanto, na Idade Média ela despertou a ambição dos heróis. Eram tempos em que as pessoas se sentiam atraídas pelo fabuloso, moviam-se por grandes anseios e lançavam-se em arriscadas viagens para alcançar seus sonhos, sem nenhuma garantia de sucesso ou de sequer retornar à pátria.
Quantas vezes estes homens de alma dilatada foram sepultados no fundo dos mares? Mas não deixaram, por isso, de marcar a História.
Um povo em especial, de reduzido território, mas vasto coração, cuja alma era grande o suficiente para ocupar continentes e oceanos, não tardou em destacar-se desde o seu nascedouro nas ousadas e arriscadas empresas pelos “mares nunca dantes navegados”:2 Portugal!
Nascido das cinco chagas de Cristo
A nação lusa nascera em meio a desafios, fatos lendários e vitórias prodigiosas.
Quem diria que o Infante Dom Afonso Henriques havia de vencer a Batalha de Ourique, em 1139, contando com apenas um soldado para cada cem adversários? Ninguém.
Mas não por isso sua gente lusitana, que julgava ser tal lance mais temerário que ousado, tentou dissuadi-lo de dar combate.
Agradecendo tamanho zelo pela pátria e por sua pessoa, aquele que em breve seria aclamado o primeiro rei de Portugal, com fisionomia alegre, serena e decidida, resolveu mesmo assim iniciar a peleja, “em nenhuma outra coisa confiado, senão no sumo Deus que o Céu regia”.3
De onde lhe vinha tamanha certeza da vitória? É que certa noite Cristo lhe aparecera e garantira o sucesso naquela batalha e em todas as outras que empreendesse.
Esse milagre levantou o ânimo das suas hostes e, apesar da esmagadora desproporção numérica, o impossível aconteceu, deixando em memória deste fato os cinco escudos que até nossos dias permanecem na bandeira lusa, os quais representam as cinco chagas d’Aquele que, em Ourique, concedeu o triunfo.
Temeridade? Imprudência? Desatino? Talvez para homens de alma pequena, a atitude deste herói português fosse incompreensível, mas não, porém, para os de espírito magnânimo, pois eles sabem que o rumo da História não é regido por aqueles que buscam vantagens próprias, mas pelos que atuam por aspirações muito mais transcendentes.
Dom Henrique, o Navegador
Dois séculos depois, o Infante Dom Henrique, filho do Rei João I de Portugal, tomado de enlevo pela figura do Preste João, fez da procura desse mítico soberano o ideal de sua existência, tornando-se “pai da navegação”.
Os marinheiros que singravam os oceanos sob o comando de Henrique, o Navegador, sentiam agir sobre si uma potente força propulsora que sempre lhes dizia: “Ide ainda mais longe”.4 Sem medo de monstros marinhos ou daquilo que seria o então “limite da terra”, nosso infante foi o primeiro a conseguir dobrar a costa ocidental da África para além do Bojador e do Saara, o que para a época constituía uma conquista inimaginável.
Sua largueza de horizontes parecia não ter limites, e sua perseverança perante os infortúnios era admirável. Queria catequizar os africanos e dilatar o Reino de Cristo, embora nem todos compreendessem tal intento, sendo sempre necessário repetir que “não brigassem com aquela gente naquelas regiões, mas que travassem alianças, e tratassem do comércio, porque a sua intenção era fazê-los cristãos”.5
Atos de mediocridade que marcam a História…
Ora, é inegável que a vida dos personagens mais memoráveis se entrelaça continuamente com a dos medíocres…
Muitos deles desapareceram nas sombras da História, mas outros deixaram registrado seu nome, para realçar com sua estreiteza de vistas a grandeza de horizontes das almas generosas.
Foi o caso de um tal Gonçalo de Sintra, que parece não ter conseguido ver através de sua luneta nada além de sua própria pessoa. Partira ele para a Guiné, com ordens de Dom Henrique de não parar em parte alguma, até alcançar seu destino.
Alegando, porém, que certas ordens não devem ser tomadas muito a sério, decidiu desembarcar em uma das ilhas próximas ao Cabo Branco, pois queria praticar algum feito inigualável: “Nunca daqui partirei, até que faça uma coisa tão assinalada, que nunca jamais venha outro semelhante”.6
Seus companheiros em vão tentaram persuadi-lo de que o “feito notável” a praticar era obedecer às ordens recebidas… Contudo, este orgulhoso passou a noite toda perambulando pela praia em busca de nativos com os quais guerrear, até que, em certo momento, foi surpreendido por um grupo de duzentos deles e nunca mais foi encontrado.
Aquele que tanto almejara glórias perante o mundo apenas obteve que a praia deserta onde desperdiçara sua vida levasse posteriormente o seu nome…
Terá ele alcançado o reino de Preste João?
Em contrapartida, Dom Henrique sem dúvida abrilhantou a História com sua alcunha. Não alcançou, como pretendia, a lendária terra do Preste João, mas seu esforço, coragem e brio abriram as vias para os novos e ousados empreendimentos que fizeram de Portugal um dos mais gloriosos reinos da terra.
Na verdade, há quem afirme terem seus marinheiros alcançado a chamada “Ilha Autêntica”, situada a mil e quinhentas milhas a ocidente da África: o Brasil!7 Talvez, então, Dom Henrique tenha conseguido o que queria…
Bandeira lusa desfraldada na Índia
Avancemos mais alguns anos, até nos depararmos com Afonso de Albuquerque. Quando ele era jovem, Lisboa servia de ponto de encontro de todos os que se interessavam por conhecimentos náuticos.
As façanhas de Dom Henrique, o Navegador, os enigmas e mistérios dos mares, as novas rotas marítimas e as notícias das caravelas, que dia a dia levavam mais ao sul a rubra Cruz de Cristo estampada nas velas, constituíam a moeda corrente pelas ruas de Portugal.
Em 1503, Vasco da Gama regressava da Índia, e quatro anos depois Afonso de Albuquerque partia para este novo domínio luso como comandante de uma esquadra de cinco navios.
Escravo de uma ideia, só para ela queria viver e por ela trabalhar […]: ver a bandeira de Portugal desfraldada triunfalmente em todo o universo, e o único tesouro que ambicionava era a glória de ele mesmo a levar.8
Não se tratava, porém, de uma expedição meramente comercial: “Os maiores dos seus capitães eram cruzados sinceros e o seu ideal distante era a libertação de Jerusalém”.9
Albuquerque chegou a ser nomeado Governador da Índia. Deus não lhe concedeu, entretanto, alcançar essa última proeza. Tantas conquistas haviam-lhe minado a saúde, encurtando os dias de sua vida.
Incansável em seus avanços, implacável nas contrariedades, imenso em seu ideal, talvez tenha sido dedicado a Afonso de Albuquerque o famoso verso de Camões: “Tu, que repouso buscas com cuidado, neste mundo de mar tempestuoso, não esperes encontrar nenhum repouso, senão em Cristo Jesus crucificado”.10
Para a tristeza de todo o Oriente, um dia aquele que percorrera vitorioso toda a costa do Índico, desde a Arábia até a China, deixou esta terra. “Devia haver guerra no Céu”, diziam “visto que Deus o mandara chamar!”11
Ora, enquanto os olhos de Albuquerque se cerravam, abria-se no horizonte dos portugueses o vislumbre de um império ultramarino, até então inimaginável para o pequeno pedaço de terra chamado Portugal.
Dom Sebastião, o Desejado
Mal terminara de expirar o valente Dom Afonso,
elevou-se no ar um brado de júbilo. As ladainhas lamentosas transformaram-se logo em Te Deum. Tocaram os sinos das igrejas, o povo aclamava. O Senhor tinha-lhe atendido as orações! Enviara-lhe o seu príncipe, o Desejado, o futuro duma dinastia bem-amada que ameaçava extinguir-se.12
Nascia Dom Sebastião, a quem talvez coubesse mais o título de “desejoso” do que “desejado”.
Rei desde os três anos de idade, de espírito contemplativo, porém, não estático, aos seis anos sua principal diversão era navegar em um barquinho em meio às tempestades.
Obviamente, os aios não partilhavam o mesmo gosto, mas as fisionomias mareadas e assustadas dos seus preceptores constituíam um divertimento a mais para o pequeno soberano.
De outro lado, o tenro monarca muitas vezes foi surpreendido entre lágrimas diante de um crucifixo. “Estava pedindo a Deus”, dizia ele, “que assim como a outros príncipes havia concedido vitórias, impérios e monarquias, me concedesse a mim somente ser seu capitão”.13
Fé e ação, contemplação e coragem: eis os fundamentos da personalidade do Desejado.
“Quando eu for de idade conveniente”
Dentre seus sonhos, um sempre teve realce: retomar o domínio sobre a África, outrora portuguesa por mérito de Dom Henrique, mas perdida por desventura de seus antecessores.
“Em sendo grande, havia de ir conquistar a África”,14 dizia uma das frases encontradas nos cadernos do pequeno.
Desejava instaurar um império português sobre todo o mundo, para que se tornasse inteiro cristão.
Certo dia, perguntam-lhe: “Em que pensa o rei de Portugal?” Ao que ele, “com a cabeça sempre ereta, o olhar fixo […], responde com voz firme, serena, convicta e enamorada: ‘Penso em tomar a África, quando eu for de idade conveniente!’”15
Esta “idade conveniente” chegou-lhe aos vinte e dois anos. Seu plano era, apesar dos protestos gerais de todos que o cercavam, partir ele mesmo à frente da expedição e comandar pessoalmente batalha tão arriscada. Ninguém o conseguiu impedir.
O êxito da empresa estava mais do que incerto. A esquadra portuguesa encontrava-se em terrível desvantagem, pois Portugal, que já não era o mesmo de outrora, não tinha homens nem estrutura para tão ousada iniciativa.
Contudo, Dom Sebastião desejava levá-la a bom termo! E se havia duas coisas que ele bem sabia fazer, uma delas era crer, e a outra, querer.
Não cessavam de chegar bilhetes ao valoroso rei lusitano vindos de todas as partes. “Não vades!” ou “Ide depois!”, diziam-lhe os nobres e conselheiros que o cercavam, ao que ele serenamente respondia: “Quem não se arrisca a perigos, jamais consegue coisas grandes!”16
Ele voltará numa manhã de nevoeiro
Dom Sebastião acabou por partir… e nunca mais voltou. Ó perplexidade! Muitas vezes Deus sujeita os grandes sucessos à realização de grandes desejos; outras, permite que belos “cristãos atrevimentos”17 resultem em duros fracassos.
Quando os sobreviventes da batalha pisaram novamente em solo português, foram assaltados por numerosas e aflitas indagações: “E o exército? A armada? Quem morreu? E o rei? Está morto? Ou vivo?” “Corria por lá que se salvara…”18 – se limitaram a responder. O Desejado morrera: sacrificara-se por seus desejos.
Após a morte de Dom Sebastião, uma última esperança ainda palpitava nos corações lusitanos: “Dom Sebastião virá, virá, em certa manhã de nevoeiro…”19 – ele não deixara de ser o Desejado.
Fracasso: o preço das grandes vitórias
Alguém poderá se perguntar: por que Deus não protegeu Dom Sebastião, da mesma forma como outrora fora o escudo de Dom Afonso Henriques, realizara os sonhos de Dom Henrique e operara prodígios através de Afonso de Albuquerque? A resposta é simples, mas dura.
Os homens de desejos grandiosos são as pedras brutas com as quais o Altíssimo constrói as maravilhas da História, pois esses anseios não lhe são postos na alma por ninguém senão Ele.
Muitas vezes, porém, é pedido a essas almas de escol não apenas a coragem de avançar e lutar, mas a força para enfrentar os fracassos por amor a Cristo, como preço a pagar por maiores e vindouras vitórias.
Assim foi com Nosso Senhor, cuja aparente “derrota” no Calvário comprou a Redenção do gênero humano e o triunfo absoluto sobre o mal; assim também será com muitos dos que são chamados a seguir de um modo especial os passos do Supremo Herói.
Tantos sonhos não foram apenas ilusões!
Ao longo destas linhas, pudemos vislumbrar alguns traços do admirável filão das almas que enobreceram a heroica história de Portugal.
A Dom Alfonso Henriques, Deus concedeu ver com seus próprios olhos a vitória; a Dom Henrique outorgou o pleno sucesso, apesar disto não lhe ter ficado claro em vida; a Afonso de Albuquerque favoreceu com a honra de constatar a quase totalidade de seus anseios realizados; a Dom Sebastião, porém, concedeu talvez a mais alta das missões.
Ele não viu o cumprimento de suas aspirações, e passou para a outra vida desejando-as.
Todavia, a partir de sua morte, tornou-se objeto de um desejo do seu povo: “Dom Sebastião virá, virá, em certa manhã de nevoeiro…” Seu nome passou a evocar a imagem de um português modelar, figura arquetípica do herói luso.
Não faltaram em Portugal heróis que lutaram pela dilatação das suas fronteiras. De Dom Sebastião, contudo, pode-se dizer que foi mártir pela dilatação das almas de uma nação inteira!
Ora, o que se passou afinal, com o lendário reino do Preste João, tão ambicionado pelos nossos heróis? Foi ele uma mera ilusão?
É claro que não! Para quem tem profundidade de espírito e verdadeira fé, este anseio do povo português traduz-se em algo incomparavelmente mais sublime: a esperança da vinda de um reino muito superior, profetizado também a esta nação, no qual Maria Santíssima triunfará sobre a face da terra, reinando no interior de todos os corações.