“Que fizeste? Eis que a voz do sangue do teu irmão clama por Mim desde a terra” (Gn 4, 8-10).

Esta indagação de Deus a Caim ecoa ainda hoje, recordando aos homens o primeiro fratricídio da História, cuja causa foi uma só: a inveja.

Caim não suportou ver seu irmão Abel corresponder generosamente ao amor que Deus lhe manifestava.

Desde a aurora da humanidade esse vício, qualificado pelo Antigo Testamento como “a cárie dos ossos” (Pr 14, 30), vem provocando desgraças entre os homens.

Movidos por ele, os irmãos de José venderam-no como escravo (cf. Gn 37, 11-28) e Saul arremessou duas vezes sua lança sobre Davi com o intuito de “cravá-lo na parede” (I Sm 18, 7-11).

Chegada a plenitude dos tempos, será também esse o motivo pelo qual os fariseus entregaram Jesus ao tribunal de Pilatos: “Ele sabia que tinham entregue Jesus por inveja” (Mt 27, 18).

Não é, pois, de estranhar, que Santo Agostinho a considere como “o pecado diabólico por excelência”.1

Ou que São Basílio pergunte se pode haver uma enfermidade de alma mais terrível do que a inveja. Pois, para este Padre da Igreja Caim foi o primeiro discípulo de Lúcifer, e dele aprendeu a ser homicida.2

“Pela inveja do demônio é que a morte entrou no mundo” (Sb 2, 24).

Frei Luís de Granada, do seu lado, a considera

um dos pecados mais poderosos e prejudiciais, e que mais espalhou seu império pelo mundo, de modo especial nas cortes e palácios, nas casas de senhores e de príncipes; não poupa universidades nem cabidos, nem conventos de religiosos.3

Ora, se tão grande é esse mal, haverá para ele algum remédio? Ou, melhor ainda, um meio eficaz de preveni-lo? É o que tentaremos desvendar neste artigo.

Para isso, comecemos por conhecer melhor este defeito que é, ao mesmo tempo, uma paixão e um pecado capital.

Conceitos concordantes ao longo dos séculos

Etimologicamente, a palavra “inveja” provém do verbo latino invidere, que significa deitar sobre o outro um olhar malicioso. Daí a origem do famoso trocadilho de Santo Agostinho: “Video, sed non invideo – Vejo, mas não invejo”.4

São notavelmente concordantes, ao longo dos séculos, as características atribuídas a ela pelos mais diversos autores.

Aristóteles a define na sua Retórica como uma dor causada pela boa fortuna de que gozam alguns de nossos semelhantes, não com a intenção de a obtermos para nós, mas pelo simples fato de eles a possuírem.5

São Tomás de Aquino, citando São João Damasceno, caracteriza a inveja como “uma tristeza dos bens do outro”.6 E explica que ela “é sempre má” porque faz sentir pesar diante daquilo que deveria causar alegria, isto é, o bem do próximo.7

Com pequenas variantes, manifestam idêntica opinião tratadistas recentes como o dominicano Royo Marín, que a define como sendo “a tristeza face ao bem alheio enquanto rebaixando nossa glória e excelência”.

E acrescenta que dela procedem “o ódio, a murmuração, a difamação, a satisfação pela adversidade do próximo e a tristeza por sua prosperidade”.8

Precocidade desta paixão na alma humana

A paixão da inveja está de tal forma arraigada na natureza humana decaída pelo pecado que, antes mesmo de ela ser capaz de formular suas primeiras concepções sobre o mundo ou de poder balbuciar alguma palavra, já se podem manifestar numa criança algumas de suas características.

Assim, Santo Agostinho escreve no livro das Confissões: “Vi e observei um menino invejoso. Ainda não falava e já olhava lívido e com rosto amargurado para outro menino, seu irmão colaço”.9

Também Mons. João Scognamiglio Clá Dias põe em realce a precocidade desse defeito: “Quantos de nós não nos lançamos nos abismos da ambição, da inveja e da cobiça já nos primeiros anos de nossa infância?” – pergunta ele.10

E acrescenta:

Há paixões que se mantêm letárgicas até a adolescência, assim não o é a inveja; ela se manifesta já na infância e acompanha o homem até a hora de sua morte.

Não será difícil aos pais observar os sinais desse vício, em seus pequenos.

Irmãos ou irmãs, entre si, não poucas vezes terão problemas por se imaginarem eclipsados pelas qualidades ou privilégios de seus mais próximos.

Quantas vezes não acontece de ser necessário separar irmãos, ou irmãs, na tentativa de corrigir essas rivalidades que podem chegar a extremos inimagináveis, tal qual se deu entre os primeiros filhos de Eva, Caim e Abel?11

Quatro graus de gravidade crescente

Tomando em consideração o objeto sobre o qual ela se aplica, o pecado capital da inveja tem sido classificado pelos moralistas em quatro graus, em ordem crescente de gravidade.

O primeiro e mais grosseiro consiste em invejar os bens temporais do próximo, como, por exemplo, riqueza, honra, dignidades ou beleza física.

O segundo refere-se aos bens intelectuais, tais como cultura, ciência, habilidades, dons artísticos e entendimento.

No terceiro grau, muito mais grave, o invejoso tem por mira as virtudes e bens espirituais do próximo, entristecendo-se ao ver que outros os possuem e são, por isso, honrados e louvados como santos. 

Ela pode chegar, por fim, até à inveja da graça fraterna, um dos pecados contra o Espírito Santo.12 Sobre este grau supremo, ensina-nos o Doutor Angélico:

Há, contudo, uma inveja a ser enumerada entre os mais graves pecados, a saber, a inveja da graça de nossos irmãos.

Nesse caso, alguém se aflige com o progresso da graça divina, e não somente com o bem do próximo.

É um pecado contra o Espírito Santo, porque por essa inveja o homem de alguma maneira inveja o Espírito Santo que Se glorifica em suas obras.13

Volta-se contra os mais próximos

Pode-se afirmar ser a inveja um dos pecados que mais assemelha o homem aos demônios, “que sentem grande pesar pelas obras boas que fazemos e os bens que obtemos”.14

Ela excita sentimentos de ódio e tende a semear divisões até no seio das famílias, pois ela se volta principalmente contra aqueles que nos são mais próximos.

Nesse sentido, afirma Aristóteles:

Sentirão inveja aqueles que são ou parecem ser os nossos pares, entendendo por pares aqueles que são semelhantes a nós em estirpe, parentesco, idade, disposição, reputação e posses. […]

Invejamos as pessoas que nos são chegadas no tempo, lugar, idade e reputação, de onde o provérbio: “O familiar também sabe invejar”.15

A razão disto no-la ensina São Tomás:

A inveja se refere à glória do outro enquanto esta diminui a glória que se deseja.

Em consequên­cia, alguém inveja somente os que quer igualar ou ultrapassar em glória. Ora, isso não é possível com aqueles que estão muito distantes.16

A inveja é também fonte de perturbação para a própria alma de quem a pratica. “Não há paz nem sossego”, afirma Tanquerey, “enquanto se não consegue eclipsar, dominar os próprios rivais; e, como é muito raro que se chegue a alcançá-lo, vive-se em perpétuas angústias”.17

Quem se deixa arrastar pela inveja, explica Mons. João ­Scognamiglio Clá Dias,

perde o verdadeiro repouso de alma e passa a viver constantemente na preocupação, na inquietude e na ansiedade.

Estará sempre atormentado pelo pavor de ficar à margem, de ser esquecido, igualado ou superado.

Sua existência será um inferno antecipado e essas paixões serão seus próprios carrascos.18

Emulação não é inveja

Embora sejam frequentemente confundidos, inveja, ciúme e cobiça são sentimentos distintos.

Em termos simples, poderíamos resumir as diferenças entre eles como sendo o ciúme o anseio por manter aquilo que se tem; a cobiça, o desejo de possuir aquilo que não se tem; e a inveja, a tristeza ao ver que o outro possui um determinado bem.

Ouve-se também falar com certa frequência de uma “inveja sã” ou positiva, que consiste em desejar algo que o outro tem – por exemplo, virtude – sem, entretanto, entristecer-se nem desejar-lhe mal algum.

Ora, esse sentimento não deve ser denominado de inveja, mas sim de emulação, a qual é definida por Tanquerey como “um sentimento louvável que nos leva a imitar, igualar e, se possível for, sobrepujar as qualidades dos outros, mas por meios ­leais”.19

Mas, ensina-nos o mesmo Tanquerey, para que a emulação seja de fato uma virtude cristã, ela precisa ser honesta no seu objeto, nobre na sua intenção e leal quanto aos meios de ação.

Em outros termos, jamais poderá ela utilizar-se da intriga ou de qualquer outro processo ilícito, mas sim do esforço pessoal, do trabalho e principalmente do bom uso dos dons recebidos de Deus.20

Existe remédio eficaz para tão grande mal?

Ora, como fazer para combater essa paixão tão precoce e universal, e ao mesmo tempo tão deletéria?

Como acontece com todos os defeitos, o primeiro e mais importante antídoto para a inveja consiste na prática da virtude da caridade.

“O amor”, ensina São Paulo,

é paciente; é benfazejo; não é invejoso, não é presunçoso nem se incha de orgulho; não faz nada de vergonhoso, não é interesseiro, não se encoleriza, não leva em conta o mal sofrido; não se alegra com a injustiça, mas fica alegre com a verdade (I Cor 13, 4-6).

Também a virtude da emulação, da qual falamos pouco acima, é uma arma eficaz para combatê-la, pois

considerar como modelos os melhores dentre os nossos irmãos para os imitar, ou até mesmo sobrepujar, é, afinal, reconhecer a nossa imperfeição e querer dar-lhe remédio, aproveitando os exemplos dos que nos rodeiam.21

Para assim agir, devemos nos compenetrar de que as qualidades e virtudes do próximo não diminuem as nossas, mas, pelo contrário, nos incentivam a avançarmos, também nós, nas vias da perfeição. 

Contudo, existe também outro remédio, intimamente ligado à virtude da caridade, que acreditamos ser um dos principais antídotos contra a inveja. Chama-se admiração.

Da admiração surge o amor 

Da mesma forma que a inveja é fonte de ódio, a admiração o é do amor. E por isso, bem se poderia dizer que o Primeiro dos Mandamentos inclui o dever de “admirar a Deus sobre todas as coisas”.

A alma que pratica essa virtude adquire algo que a torna, por sua vez, digna de admiração. Porque, explica Plinio Corrêa de Oliveira,

ela transfunde em nós aquilo que admiramos.

Quando admiramos desinteressadamente algo, aquilo entra em nós, e à força de contemplar tanta força nós ficamos mais fortes; à força de contemplar tanta doçura, ficamos mais desapegados.22

“Quanta felicidade, paz e doçura têm as almas que são despretensiosas, reconhecedoras dos bens e das qualidades alheias, restituidoras a Deus dos dons por Ele concedidos”, exclama Mons. João em um dos seus Comentários ao Evangelho.23

E Plinio Corrêa de Oliveira acrescenta que se mantivermos nosso espírito nesse “estado de admiração”, em pouco tempo veremos nascer em nossa alma “um paraíso constante, uma alegria fixa, estável e contínua”.24

Em consequência, devemos pedir a Nossa Senhora, Mãe Admirável, que afaste de nossas almas toda e qualquer fímbria de inveja, dando-nos, em sentido contrário, a graça de ter a alma altamente admirativa que se alegra com o bem de seus irmãos e louva a Deus por sua liberalidade e bondade.

Quem assim proceder

notará, em pouco tempo, como o coração estará sossegado, a vida em paz, e a mente livre para navegar por horizontes mais elevados e belos.

Mais ainda: tornar-se-á ele mesmo alvo do carinho e da predileção de nosso Pai Celeste.25 


1 CCE 2539.
2 Cf. SÃO BASÍLIO MAGNO. Homilia 11 – De Invidia. c.3. MG 31, 375.
3 GRANADA, Luis de. Guia de Pecadores, l.II, c.7. In: Obras de Fray Luis de Granada. La Publicidad: Madrid, 1848, t. I, p. 132.
4 Cf. JOSEP-ORIOL, Tuñí. Escritos joánicos y cartas católicas. In: Introducción al estudio de la Biblia. Estella: Verbo Divino, 1995, v. VIII, p. 74.
5 Cf. ARISTÓTELES. Retórica, l. 2, c. 10.
6 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, II-II, q. 36, a. 1, s. c.
7 Cf. Idem, a.2.
8 ROYO MARÍN, OP, Antonio. Teología moral para seglares. Madrid: BAC, 2007, p. 260.
9 SANTO AGOSTINHO. Confissões. l. 1, c. 7. ML 32, 665-666.
10 CLÁ DIAS, EP, João Scognamiglio. O Precursor e a Restituição. In: Arautos do Evangelho. São Paulo. N.37 (jan., 2005); p. 8.
11 Idem, p. 9.
12 Cf. PUENTE, Luis de la. Meditaciones de la vía Purgativa. Barcelona: Pablo Riera, 1856, t. I, p. 176.
13 SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., II-II, q. 36, a. 4, ad. 2.
14 GRANADA, op. cit., p. 132.
15 ARISTÓTELES, op. cit., l. 2, c. 10.
16 SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., II-II, q. 36, a. 1, ad. 2.
17 TANQUEREY, A. Compêndio de Teologia Ascética e Mística. 4.ed. Porto: Apostolado da Imprensa, 1948, p. 483.
18 CLÁ DIAS, op. cit., p. 11.
19 TANQUEREY, op. cit., p. 482.
20 Cf. Idem, p. 484.
21 Idem, ibidem.
22 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Conferência. São Paulo, 14 jun. 1968.
23 CLÁ DIAS, EP, João Scognamiglio. O verme roedor da inveja. In: Arautos do Evangelho. São Paulo. N.9. (set., 2002); p. 11.
24 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Conferência. São Paulo, 19 jun. 1971.
25 CLÁ DIAS. O verme roedor da inveja, op. cit., ibidem.