Conhecendo bem, amados irmãos, quão ardente é a vossa devoção, não ignoramos que, no concernente ao jejum que precede à Páscoa do Senhor, muitos de vós já se adiantaram às nossas exortações.
Como, entretanto, a prática desta abstinência é necessária não só para mortificar a carne, mas também para purificar a mente, desejamos fazer com que vossa observância seja completa.
De forma que, ao mesmo tempo que vos privais dos prazeres atinentes aos desejos carnais, cerceeis também os erros decorrentes das imaginações do espírito.
Com efeito, só quem tem seu coração livre de concepções errôneas se prepara com uma genuína e razoável purificação para a chegada da festa pascal, na qual se sintetizam todos os mistérios de nossa Religião.
A mente pratica o jejum quando rejeita o erro e a falsidade
Diz o Apóstolo que “tudo quando não procede da fé é pecado” (Rm 14, 23). Por esse motivo, vão e inútil será o jejum daqueles aos quais o pai da mentira engana com suas ilusões, não permitindo que sejam alimentados pela verdadeira carne de Cristo.
E assim como devemos obedecer de todo coração aos Mandamentos divinos e professar a sã doutrina, precisamos também nos conduzir com toda precaução quando se trata de fugir das imaginações perversas.
De fato, a mente só pratica o sagrado e espiritual jejum quando rejeita o alimento do erro e o veneno da falsidade.
Ora, eles nos são apresentados mais perfidamente pelo nosso falaz e astucioso inimigo agora, quando, ao se aproximarem as veneráveis festas pascais, toda a Igreja é admoestada a compreender os mistérios da salvação, pois só é verdadeiro confessor e adorador da Ressurreição de Cristo quem não se deixou confundir a respeito de sua Paixão nem enganar sobre seu nascimento corporal.
Alguns, entretanto, se envergonham do Evangelho da Cruz de Cristo a ponto de minimizarem imprudentemente os sofrimentos que Ele padeceu pela Redenção do mundo negando a genuína natureza da verdadeira carne do Senhor.
Fazem isso por não serem capazes de entender como a impassível e imutável divindade do Verbo pôde chegar ao misericordioso extremo de, para nos salvar, assumir nossa humanidade sem perder seus atributos divinos.
Adorai com reverência as duas naturezas de Cristo
Há em Cristo duas naturezas, mas uma só Pessoa. O Filho de Deus é ao mesmo tempo Filho do Homem e Senhor. Ele aceitou a condição de escravo não por necessidade, mas por desígnio de sua amorosa bondade.
Por seu poder Se humilhou, por seu poder tornou-Se passível, por seu poder Se fez mortal. Para destruir a tirania do pecado e da morte, assumiu uma natureza fraca, capaz de sofrer, enquanto sua natureza forte nada perdia de sua glória.
Assim, caríssimos, quando, lendo ou ouvindo o Evangelho, encontrardes em Nosso Senhor Jesus Cristo certas coisas sujeitas a dano e outras iluminadas por milagres, fazendo com que na mesma Pessoa ora apareça a humanidade, ora resplandeça a divindade, não desprezeis nenhum desses dois aspectos, como se em Cristo houvesse só a humanidade ou só a divindade, mas crede fielmente em ambas as naturezas.
Adorai reverentemente as duas, de modo que não haja separação na união da Palavra e da carne e não pareçam ser ilusórias as provas corporais, uma vez que os sinais divinos eram evidentes em Jesus.
Há provas verdadeiras e abundantes de sua dupla natureza e, pelo insondável desígnio divino, todas concorrem para um único fim.
Não estando o Verbo impassível separado da carne passível, a divindade deve ser compreendida como participando em tudo com a carne, e a carne com a divindade.
Nossas antigas feridas só podiam ser curadas pelo Verbo
A mente cristã deve, portanto, fugir da mentira, ser discípula da verdade, e servir-se com confiança da narração evangélica para distinguir, como se estivesse nesse momento junto aos Apóstolos, ora através da compreensão espiritual, ora por meio das vistas corporais, o que é visivelmente feito pelo Senhor.
Contemplai o Homem nascido menino de uma Mulher; contemplai o Deus que em nada lesou a virgindade de sua Mãe, nem no nascimento, nem no momento de sua concepção.
Reconhecei o servo envolto em panos, deitado numa manjedoura, mas reconhecei também o Senhor anunciado pelos Anjos, proclamado pelos elementos, adorado pelos Reis Magos.
Compreendei que sua humanidade não recusou participar numa festa de casamento, e confessai sua divindade ao vê-Lo transformar a água em vinho (cf. Jo 2, 9).
Permiti que os vossos próprios sentimentos expliquem o motivo pelo qual Ele verteu lágrimas por um amigo morto; considerai seu divino poder quando esse mesmo amigo, após jazer durante quatro dias no sepulcro, é reerguido e trazido de volta à vida por uma simples ordem sua (cf. Jo 11, 39).
Fazer barro com saliva e terra era obra do corpo (cf. Jo 9, 6), mas ungir com ele os olhos dos cegos e restituir-lhes a vista é sinal indubitável do poder por Ele reservado para revelar sua glória, coisa que no início de sua vida natural não tinha permitido acontecer.
É realmente humano aliviar pelo repouso do sono a fadiga corporal (cf. Mc 4, 38); mas é decerto divino dominar com uma mera admoestação a violência de furiosas tempestades.
Oferecer alimento aos famintos denota bondade humana e espírito filantrópico (cf. Jo 6, 11), mas saciar com cinco pães e dois peixes cinco mil homens, além das mulheres e das crianças, quem ousaria negar que é obra da divindade?
Uma divindade que, pela cooperação das funções da verdadeira carne, não só ela se manifestou na humanidade, mas manifestou nela própria a humanidade.
As antigas feridas da natureza humana não podiam ser curadas a não ser pelo Verbo de Deus que Se fez carne no seio da Virgem. Nele, a carne e a Palavra coexistiam numa mesma e única Pessoa.
Permanecei firmes nos artigos do Credo
Por esta fé na Encarnação do Senhor que nos leva a considerar a Igreja inteira como Corpo de Cristo, mantende-vos, caríssimos, firmes e com o coração inabalável.
Abstende-vos de todas as mentiras dos hereges e recordai que vossas obras de misericórdia só vos serão proveitosas e o rigor de vossa abstinência só produzirá frutos se vossas mentes estiverem livres de qualquer impureza de opiniões erradas.
Rejeitai os argumentos da mundana sabedoria, pois Deus os detesta e ninguém pode chegar por eles ao conhecimento da verdade; guardai em vosso espírito o que rezais no Credo.
Crede que o Filho de Deus é coeterno com o Pai, por quem todas as coisas foram feitas e sem o qual nada foi feito, nascido segundo a carne no fim dos tempos.
Crede que Ele foi crucificado, morreu, ressuscitou, elevou-Se acima de todos os poderes celestiais, está sentado à direita do Pai, prestes a vir na mesma carne na qual ascendeu, para julgar os vivos e os mortos.
Pois é isto que o Apóstolo proclama a todos os fiéis, dizendo:
Se ressuscitastes com Cristo, buscai as coisas lá do alto, onde Cristo está sentado à direita de Deus. Afeiçoai-vos às coisas lá de cima, e não às da terra. Porque estais mortos e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus. Quando Cristo, vossa vida, aparecer, então também vós aparecereis com Ele na glória (Col 3, 1-4).
Excerto do Sermão XLVI, sobre a Quaresma: PL 54, 292-294.