“Que a paz seja contigo!”
Com esta frase, Laércia acordou seu esposo, o loiro e gigante Tubaldo, que pulou da cama resmungando, pois esse tipo de saudação não era de seu agrado.
— Ah! Quem pensa em perturbar a paz? Tu farias melhor se recorresses a Wotan (um deus dos germanos) para me fazer ganhar umas boas moedas na feira hoje.
Entristecida pela rude acolhida de seu marido, Laércia apressou-se em servir-lhe a refeição matinal: quatro trutas na manteiga, duas fatias de fígado de porco, um prato de batatas assadas, queijos de leite de cabra e grossas rodelas de pão.
— Bela manhã! Haverá muita gente na feira de Lutécia hoje, e disseram-me que o Magistrado Fescemio fará um julgamento – comentou, enquanto comia.
— Quem será julgado? – perguntou Laércia, demonstrando inquietação.
— Não faltam malfeitores em Lutécia! Bem, talvez sejam julgados mais alguns desses cristãos…
— Cristãos? Que mal fazem eles?!
— Eles recusam sacrificar aos deuses – respondeu Tubaldo.
— Mas, por que não podem permanecer fiéis a seu Deus?
— E que mal lhes faria lançar alguns grãos de incenso diante de Júpiter ou de Mercúrio? Eu o faço e, entretanto, Wotan, que é o meu deus, não se importa com isso…
Tubaldo abraçou sua esposa e saiu. Tinha de apressar-se, pois estava atrasado. Ficando só, Laércia foi ajoelhar-se num canto da sala, diante de uma coluna na qual estava esculpida uma tosca imagem. Sem seu marido saber, ela era cristã.
A feira de Lutécia
Tubaldo andava rápido, pois tinha uma longa distância a percorrer até Lutécia. Quando chegou, a enorme praça em frente ao templo de Mercúrio (deus do comércio) estava cheia de feirantes, compradores e curiosos.
Era a feira mais incrível que se possa imaginar!
Lá estavam domadores de ursos de permeio com vendedores de toda sorte de objetos, malabaristas, cantores, bailarinos, mágicos, pitonisas. Todos gritando ao mesmo tempo, para atrair a atenção dos eventuais fregueses.
Tubaldo enfurecia-se, pois chegara atrasado e não encontrava local onde exercer suas habilidades. Mas seu amigo Bela, o domador de ursos, tinha lhe reservado um bom espaço junto ao primeiro degrau da escadaria do templo. Melhor lugar, não poderia haver!
A profissão de Tubaldo
Contente e animado com a perspectiva de um dia lucrativo, o gigante loiro anunciou o início de seu espetáculo. Enquanto, ao lado, Bela fazia dançar seus ursos amestrados, Tubaldo… engolia espadas. Sim, ele era um engolidor de espadas, de grande nomeada em Lutécia e em toda a região.
Mal acabara de engolir as primeiras, várias moedas foram atiradas sobre seu manto estendido na laje. Em poucas horas, conseguiu arrecadar uma considerável soma.
Tudo parecia ir de bom para melhor quando… o som de possantes trombetas anunciou a chegada do Magistrado Fescemio. Detendo-se ante a escadaria do templo, este observou por instantes o gigante loiro postado à sua frente.
— Hum, homem grande este! – resmungou mal-humorado.
— É o engolidor de facas e espadas. Gostarias de vê-lo trabalhar? – perguntou um funcionário.
Fescemio aquiesceu.
Tubaldo deu uma demonstração de sua arte. Gládios romanos, sabres dácios, espadas germânicas – tudo desaparecia em sua prodigiosa garganta. Em retribuição, choveram moedas de prata sobre seu manto, deixando-o radiante de alegria.
O martírio de São Dionísio
Fescemio subiu a escada do templo e sentou-se numa cadeira ao lado do altar portátil do deus Mercúrio. Sobre o altar, ardia um fogo de madeira aromática. A um sinal seu, a multidão fez silêncio.
Um oficial de voz possante pôs-se a ler o decreto do Imperador, determinando a eliminação de todos os cristãos do território de Lutécia.
Do templo onde estavam os presos, os guardas fizeram sair três homens carregados de ferros. Dois deles, ricamente trajados, personagens importantes na cidade. O terceiro, um ancião magro e ereto, de barba branca, vestia uma longa túnica de linho, era o Bispo Dionísio.
Os dois primeiros, embora cristãos sinceros, fraquejaram. Para salvar esta vida efêmera e conservar as riquezas terrenas, queimaram incenso ao ídolo e se retiraram carregadosde remorsos.
Chegou a vez do Bispo Dionísio.
Calmo e recolhido, fitando ao longe seu límpido olhar, parecia nem sequer ouvir os repetidos gritos do magistrado, ordenando-lhe sacrificar ao ídolo.
Enfurecido, este deu um espantoso berro:
— Sacrifica! Se não, morrerás imediatamente e todos os teus bens serão confiscados!
— Sou cristão! Não sacrificarei a vossos falsos deuses. Morrerei com alegria confessando o nome de Jesus Cristo. Quanto aos meus bens, eles não são deste mundo, não os podeis confiscar – respondeu ele.
Voltando-se para os guardas, Fescemio deu ordem de executar ali mesmo o venerável ancião, que permanecia de pé no alto da escadaria.
Em volta dele todos se agitavam, devido a um fato imprevisto: o carrasco também era cristão… e havia fugido para não ser obrigado a decapitar o seu Bispo!
Em extremo enfurecido, o alto magistrado procurava um substituto para a inglória tarefa, mas todos se esquivavam. Por fim, seu olhar pousou sobre Tubaldo:
— Tu engoles espadas, sabes servir-te delas?
— Não é meu oficio, senhor – respondeu ele.
— Que importa? É uma ordem!
— Sou um homem livre.
Rubro de cólera, Fescemio gritou aos guardas:
— Peguem esse cão, e, se ele não obedecer, pendurem-no na primeira árvore e matem-no a golpes de lanças!
Os guardas precipitaram-se sobre Tubaldo e o arrastaram até o alto da escadaria. Ele sentia contra si todo o formidável poder do Império Romano. Parecia-lhe estar num pesadelo.
Via a fisionomia de medo de sua esposa, olhava para o respeitável ancião com a cabeça sobre o cepo de madeira, sentia a fúria de Fescemio…. Mas… se não matasse, seria ele quem morreria!
Uma voz encolerizada fez os guardas cercarem-no com suas lanças, prontos para lhe desferirem os golpes mortais, caso não cumprisse imediatamente a ordem recebida.
Tubaldo, então, deu o golpe fatal. Com os olhos arregalados, viu jorrar o sangue, acompanhou a cabeça do mártir que rolava pelo chão.
— Aí está para você! – disse Fescemio, jogando-lhe uma bolsa cheia de moedas.
Conversão de Tubaldo
O carrasco improvisado não pegou a bolsa. Largou a espada e pôs-se a correr, detendo-se apenas ao chegar à sua casa. Lá, caiu de joelhos, com as mãos ainda tintas de sangue.
— Matei um justo! Matei um Santo!
Por fim, sua esposa conseguiu acalmá-lo e, muito comovido, ele contou-lhe tudo. Avançava já a noite, e o infeliz não cessava de lamentar-se:
— Matei um justo! Serei castigado!
De repente, fez-se ouvir na casa uma suave e doce melodia, vinda de fora. Admirados, os dois aproximaram-se da janela e viram, ao longe, uma tênue luz que avançava em direção à casa. Para surpresa de Laércia, seu esposo empalideceu, deu um passo para trás e gritou:
— É ele! Serei castigado!
O que estava acontecendo era, ao mesmo tempo, terrível e maravilhoso. Avançava pelo campo uma figura humana, cercada de luz. Aproximando-se da casa, sem ninguém lhe abrir a porta, ela entrou na sala, que ficou repentinamente iluminada.
Os dois caíram ao chão.
Diante deles estava de pé o corpo do Bispo Dionísio, segurando nas mãos sua cabeça decepada, com os olhos fechados como num repousante sono. Então, seus lábios se abriram e proferiram estas palavras:
— Tubaldo, eu te perdôo!
Depois o Bispo deu mais alguns passos, depositou sua cabeça aos pés da coluna que servia de oratório a Laércia e, finalmente, deitou-se como um morto.
Naquele mesmo instante ressoou na casa uma alegre melodia. Voltando-se comovido para sua esposa, Tubaldo disse:
— Eu também quero ser cristão!
— Eu há muito sou cristã e rezei tanto pela tua conversão… Que a paz seja contigo! – exclamou Laércia, transbordante de emoção e contentamento.
Apressaram-se os dois em enterrar na sua própria casa o bispo mártir.
No ano de 650 o Rei Dagoberto fez construir nesse lugar uma basílica chamada Saint Denis (São Dionísio). A colina onde foi decepada sua cabeça passou a chamar-se “Le Mont des Martyrs”, atual Montmartre, em Paris.