A maioria dos povos não teria história se não fossem os atos lendários, transmitidos de geração em geração. O mesmo se dá com as devoções.
É de tradicional crença que São José, querendo deixar à posteridade uma lembrança de sua venerável esposa, esculpira em madeira uma imagem da Virgem de Nazaré, a qual foi ter nas mãos do monge grego Ciríaco, que a entregou a São Jerônimo.
Este mandou-a para seu amigo Santo Agostinho. Assim, através de mãos santas, ela chegou a um mosteiro na Espanha, de onde foi levada para Portugal por um monge de nome Romano.
Em terras lusas a devoção se espalhou rapidamente, e transpôs o Atlântico por obra de zelosos jesuítas. Em 1700, uma cópia dessa imagem foi encontrada, em Belém do Pará, por Plácido José de Souza, sobrinho de Ayres de Souza Chicorro, um dos primeiros capitães-gerais do Grão-Pará.
Durante uma caçada, ele deparou-se com a pequena imagem, com seu manto de seda brilhante, sem qualquer marca do tempo. Surpreso e maravilhado, levou-a para casa, causando um alvoroço em toda a sua gente e vizinhança.
Na manhã seguinte, para assombro geral, a imagem havia desaparecido. Voltara miraculosamente para o lugar do achado. Tornaram a levá-la para a casa de Plácido, mas à noite ela retornou ao seu nicho natural.
A notícia do milagre correu célere. Por todos os lados só se falava do prodígio. O burburinho chegou ao governador. Este, querendo uma prova concreta do acontecido, mandou buscar a imagem, trancou-a no palácio, com guardas a postos. Ao romper da aurora, abriram a prisão da Santa, e a encontraram vazia!
A primeira procissão deu-se em 1793. Dela pouco se sabe.
Em 1800, na véspera da solenidade, o Governador do Grão-Pará, que já era devoto da Virgem de Nazaré, adoeceu. Remédio melhor não encontrou que apelar para Ela, prometendo, caso melhorasse, levar a imagem ao palácio e ali mandar rezar uma Missa.
Em seguida a levaria de volta à ermida. Tendo melhorado, como pedira, caminhou à frente de uma multidão de mais de 10 mil devotos da Virgem, levando um grande círio aceso.
Assim nasceu o Círio! Quase não se fala em procissão. É o Círio! Cada cidade do Estado tem seu Círio na festa do Padroeiro.
O Círio de Nossa Senhora de Nazaré, em Belém do Pará, é a maior procissão religiosa do mundo. Reúne, por vezes, até dois milhões de pessoas, vindas dos mais diferentes lugares.1
A procissão do Círio é realmente monumental. Numa palavra, é amazônica! O número de romeiros só faz aumentar com o tempo!
À frente do imenso cortejo vai a imagem de São João Batista, evocando o milagre feito por Nossa Senhora de Nazaré, em 1846, quando afundou-se no Atlântico o veleiro que levava o nome do Precursor.
Doze náufragos, agarrados a um escaler, após muita oração e promessas, conseguiram chegar a Caiena, na Guiana Francesa. Não cabendo dúvida de que deviam sua salvação à Virgem de Nazaré, prometeram levar nas costas o barco, no próximo Círio.
Mas as autoridades não autorizaram. Pouco tempo depois, grassou uma epidemia de cólera-morbo em Belém. Logo a vox populi começou a espalhar que era em consequência da promessa não cumprida.
Segue-lhe o Anjo Custódio, que serviu à Virgem em Nazaré da Galileia. Ele precede um conjunto de carruagens, sendo a primeira a Berlinda de Nossa Senhora de Nazaré.
É um carro majestoso, talhado em madeira, com laterais de cristal, anjos barrocos e uma coroa no alto, imitação dos carros usados pelas mais distintas senhoras de Berlim. Daí o nome!
No interior desse carro, sobre almofadas de rosas, pousam os pés da Virgem, mais virginais que as flores.
Coisa que os fiéis não concebem é ver sua Rainha sem o manto ricamente ornado, que lhe confere a majestade por eles proclamada nas ruas. Cada ano seus devotos confeccionam um manto, sempre procurando superar em beleza o anterior.
Em meio ao majestoso séquito da Rainha da Amazônia, flutuam dezenas de estandartes coloridos, com um corpo de cavalaria soando clarins.
O carro dos milagres testemunha os benefícios da Virgem de Nazaré. No seu bojo leva figuras em cera, simbolizando as mais variadas enfermidades: braços, mãos, dedos, pés, pernas, cabeças… provas da solicitude desta bondosa Mãe.
Nesse carro ergue-se um cavalo montado por D. Fuas, um dos primeiríssimos miraculados.
Trata-se de um irmão de D. Afonso Henriques, o primeiro rei de Portugal, salvo de cair num abismo ao gritar: “Minha Nossa Senhora!”
Em seguida vem todo o bom povo de Deus, cada qual a seu modo. É uma devota velhinha com um tijolo na cabeça; um pescador com seus remos e tarrafas; um vaqueiro com seu laço…
Em 1947, estimou-se a procissão em 200 mil devotos; em 1987 um milhão; no ano 2000, em comemoração dos 300 anos do achado da imagem, a estimativa arredondou os números para 2 milhões. Em 2001 voltou-se a falar em 1 milhão e meio. Este ano, uns falam em mais de um milhão, outros em um milhão e meio de romeiros.
Quando alguém alega exagero nesses números, os fiéis dizem que, em se tratando da Virgem de Nazaré, se o número de devotos humanos não é o que se publica, os anjos descem do céu para completar!
A imagem original, encontrada por Plácido, nunca sai do seu grandioso Palácio, a Basílica de Nazaré, onde ela passa todo o ano na Glória, nome dado ao seu nicho alto, acima do altar-mor.
Na véspera do Círio, numa cerimônia simples mas densa de bênçãos, o Arcebispo faz com que ela desça da Glória, para passar todo o tempo das festividades bem pertinho dos seus filhos, no presbitério, rodeada de flores e fiéis que rezam.
Aí, bem perto dela, há uma presença sobrenatural sensível, quase palpável.
Certo dia, de manhãzinha, ajoelhei-me aos pés dela para rezar apenas 3 Ave-Marias, mas uma força acolhedora, materna, suave, nada impositiva, me reteve. Quando me dei conta, já havia rezado o Rosário inteiro!
É como se naquele perímetro, em torno dela, não houvesse o tempo, com seu corre-corre, suas impaciências!
O Círio é em tudo original. Às vezes se tem a impressão de que o rio Amazonas, em sua massa imensa, invadiu a Avenida Nazaré. Jornais de 1900 falam de uma verdadeira maré humana que se condensa num aperto aflitivo. Há de tudo.
Gente ajoelhada nas calçadas, ou no alto dos prédios lançando papel picado, acotovelando-se nas ruas transversais, e até trepada em árvores, como Zaqueu! Tudo se move como um imenso bloco, nada tendo de militar, de disciplinado.
Quem não é da terra, os chamados juízes de fora, julgam mal, chamando isto de desordem. Não é! Trata-se de uma ordem superior.
Nesse dia, parece que Nossa Senhora de Nazaré harmoniza todos os corações. Tanto que a polícia, ali presente, está para prestar honras à Rainha desta ordem, e não para reprimir desordeiros.
O Círio não se reduz apenas a uma procissão. É uma festa popular de um mês de duração: festa nas igrejas, nas famílias e nas ruas; ocasião de reunir familiares, alguns vindos de longe, em torno de exóticos manjares regionais.
No Círio de 1885, o carro que conduzia a imagem, puxado por juntas de bois, caiu em um atoleiro. Os fiéis arrastaram-no com cordas. Deste então, elas foram incorporadas ao Círio.
Em torno da Berlinda, a multidão disputa o privilégio de “puxar a corda”; tudo num clima de cordialidade devota.
Muitos se perguntam o que leva tanta gente, na maioria descalça, a empreender essa romaria. Que graça terão alcançado esses devotos para se oferecerem de tal forma à Mãe do Céu?
Só Deus, a Virgem, e os próprios agraciados o sabem. Há gente que faz o percurso de joelhos! Outros, saídos de dentro das matas ou de cidades do interior, percorrem a pé, em espírito de romaria, distâncias superiores a 100 quilômetros.
E porque descalços? Em 1854, o Papa Pio IX concedeu indulgência plenária a quem acompanhasse o Círio descalço, “com o coração contrito e arrependido de suas faltas, confessando-se, comungando e orando segundo as intenções da Igreja Católica”.
Certo é que o espetáculo religioso do Círio já ultrapassou as fronteiras do Pará, atraindo gente de todo o país e até do exterior.
Na Amazônia, onde os rios fazem parte da vida, os paraenses teriam que inventar um Círio fluvial. É este que dá oportunidade às populações ribeirinhas de louvar sua Rainha no próprio ambiente onde vivem o seu cotidiano.
Centenas de embarcações de todos os tipos e tamanhos acompanham a romaria nas águas. É uma cena que impressiona pela quantidade de fiéis que, nessa ocasião, prestam homenagem à Senhora de Nazaré, seja a bordo de suas canoas, seja nas margens de onde a contemplam.
1 Cf. “Cirios de Nazaré”, nº 2.