Imaginemos um enfermo que se nega a aceitar sua condição. Se o senso comum mostra-lhe claramente o mal de que sofre, é de se esperar que ele o admita e procure remediar.
Com efeito, um passo fundamental para qualquer pessoa obter a cura é conhecer e reconhecer sua enfermidade, e querer curar-se.
Para os antigos gregos, esse “autoconhecimento” era tão importante que haviam inscrito no célebre templo de Apolo, em Delfos, este aforismo: “Conhece-te a ti mesmo”.
Inspirando-se nele, o filósofo Sócrates dizia a seu discípulo Alcebíades: “O fato com o qual sempre nos defrontamos é este: conhecendo-nos a nós mesmos, poderemos saber como nos cuidarmos melhor”.1
Ora, o cristão, além desse mero conhecer-se psicológico, deve reconhecer-se pecador, como afirma São João:
Se reconhecemos nossos pecados, então Deus Se mostra fiel e justo, para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça.
Se dissermos que nunca pecamos, fazemos dele um mentiroso e sua palavra não está em nós (I Jo 1, 9-10).
Portanto, como nos relembra o Bem-aventurado João Paulo II, “reconhecer-se pecador, capaz de pecar e de ser induzido ao pecado, é o princípio indispensável do retorno a Deus”.2
Foi esta a experiência de Davi, que exclama ao ser advertido pelo Profeta Natã (cf. II Sm 11-12): “Eu reconheço a minha iniquidade, diante de mim está sempre o meu pecado. Só contra Vós pequei, o que é mal fiz diante de Vós” (Sl 50, 5-6).
Um exemplo sobremaneira comovedor de reconhecimento do próprio pecado, encontramo-lo na atitude do filho pródigo: “Meu pai, pequei contra o Céu e contra ti” (Lc 15, 21).
“Não há castigo, Deus não existe”…
Hoje em dia, entretanto, essa salutar atitude de reconhecimento da própria culpa – o velho “conhece-te a ti mesmo” dos gregos – parece não encontrar mais lugar em nossa sociedade, pois esta se assemelha ao suposto doente mencionado acima.
Ela prefere ignorar seu mal e continuar cantando nesciamente: “Tout va très bien, Madame la Marquise – Vai tudo muito bem, Senhora Marquesa”.
Trata-se de uma canção francesa de 1935, na qual se narra com fina ironia a tragédia de uma nobre dama que, tendo se ausentado de seu castelo, chama por telefone cada um de seus criados para perguntar se há novidades, e estes respondem de modo invariável: “Vai tudo muito bem”… e aos poucos a põem a par da calamidade que sobre ela se abateu.
— Alô! Que notícias você me dá?
— Nada de novo, Senhora Marquesa. Tudo vai muito bem, com exceção de uma ninharia: morreu vossa égua cinzenta.
— A égua! Como aconteceu isso?
— Durante o incêndio dos estábulos…
— Os estábulos!! Incendiaram-se?
— Foram atingidos pelas chamas de vosso castelo.
— O castelo!!! Que aconteceu?
— O Senhor Marquês, não suportando a notícia de que estava arruinado, suicidou-se e, ao cair, derrubou uma vela que ateou fogo nas cortinas e incendiou o castelo. Quanto ao mais, porém, vai tudo muito bem…!
Poderíamos talvez perguntar-nos se não haverá uma analogia entre a negligente atitude do mundo atual, ante os perigos que o ameaçam, e a daqueles que, na época de São Paulo, negavam a ressurreição e a vida eterna.
Estes que, e diziam: “comamos e bebamos, porque amanhã morreremos” (cf. I Cor 15, 32); pois, diz o ímpio em sua arrogância: “não há castigo, Deus não existe” (Sl 9, 25).
Esse endurecimento do coração talvez seja o mais sério sintoma da enfermidade do mundo contemporâneo, que consiste em impugnar a própria noção de pecado e suprimir a distinção entre o bem e o mal, ressaibo da velha heresia pelagiana que subsiste ainda larvadamente em muitos ambientes.
A malícia do pecado
Contudo, pela Fé e pela experiência nos damos conta de que o pecado é sem dúvida o maior de todos os males.
“Segundo as Escrituras, é a causa profunda de todo o mal”, afirmou Bento XVI; entretanto, acrescentou, “muitos não aceitam a própria palavra ‘pecado’, porque ela pressupõe uma visão religiosa do mundo e do homem”.3
O pecado é, além disso, uma ingratidão e uma rebelião contra Deus, e prejudica quem o comete, pois o torna seu escravo (cf. Jo 8, 34). O pecado envenena o convívio entre os homens, introduz a concupiscência, a violência e a injustiça, provoca situações sociais e instituições contrárias à bondade divina.4
O pecado acompanha o homem desde os albores de sua existência: “A Revelação dá-nos a certeza de Fé de que toda a História humana está marcada pelo pecado original cometido livremente por nossos primeiros pais”.5
Todos os seus descendentes haveriam de sofrer suas consequências: enfermidade, dor, cansaço e morte. Por isso “na sua sabedoria, a Igreja sempre propôs que se tivesse em conta o pecado original, mesmo na interpretação dos fenômenos sociais e na construção da sociedade”.6
Por fim, o pecado arrebata ao homem a suprema felicidade de ver a Deus, privilégio reservado aos puros de coração (cf. Mt 5, 8), e causa uma forma de cegueira muito grave, que é a da alma.
Com efeito, Deus é visível para quem é capaz de vê-Lo, porque mantém abertos os olhos da alma. Pois embora todos tenham olhos, alguns os têm obscurecidos e por isso não veem a luz do Sol.
Ora, se os cegos não veem, não é porque o Sol deixou de brilhar: sua falta de visão deve ser atribuída a si mesmos e a seus próprios olhos.
Assim também tu tens os olhos da alma toldados por teus pecados e tuas más ações.
O homem precisa ter a alma pura, como um espelho reluzente.
Se o espelho estiver embaçado, o homem não poderá contemplar nele o seu rosto; da mesma maneira, se houver no homem o pecado, ele não será capaz de ver a Deus”.7
Consciência e senso do pecado
Ressoa no santuário interior do homem uma voz que aponta para uma lei superior não imposta por ele a si mesmo, mas à qual deve obedecer.
E esta o adverte que ele “deve amar e praticar o bem, e fugir do mal”. Esta voz é a consciência que fala ao homem “na intimidade de seu coração”.8
Entretanto, pode acontecer na História que essa voz pareça apagar-se. De fato, não é difícil constatar que “o homem contemporâneo vive sob a ameaça de um eclipse da consciência, de uma deformação da consciência e de um entorpecimento ou de uma ‘anestesia’ das consciências”.9
Quem não escuta a voz de sua consciência nem reconhece o pecado, tampouco se lamentará por tê-lo cometido; qualquer pedido de perdão lhe parecerá desnecessário e até mesmo absurdo.
É o que, segundo o Beato João Paulo II, acontece com o homem hodierno, o qual, mais do que nunca, “parece encontrar dificuldade em reconhecer os seus próprios erros”, além de ter grande relutância em dizer “arrependo-me” ou “tenho muita pena”.10
Segundo o mencionado Pontífice, esse endurecimento do coração “corresponde àquela realidade a que chamou Cristo ‘pecado contra o Espírito Santo’”.11
Agora, é precisamente na consciência onde se localiza o senso do pecado, o qual se caracteriza como uma “fina sensibilidade e uma perspicaz percepção dos fermentos de morte que estão contidos no pecado”12 e se manifesta à maneira de um vivo e intenso sentimento de culpa quando ouvimos a voz da consciência que nos acusa de ter ofendido nosso Pai, Criador e Senhor.
Não é uma opressiva sensação de temor ou de angústia, nem tampouco um mero conhecimento intelectual ou psicológico, mas um profundo e sereno pesar por não ter correspondido ao amor misericordioso de Deus.13
Mas quando se extingue a consciência moral, se obscurece o senso do pecado, como também o senso de Deus: “A debilitação da experiência de Deus se manifesta hoje no desaparecimento da experiência do pecado e vice-versa: o desaparecimento desta consciência afasta o homem de Deus”.14
Por este motivo, a Fé em Deus está hoje ameaçada.
Em vastas áreas da Terra a Fé corre o perigo de se extinguir como uma chama que deixa de ser alimentada.
Estamos diante de uma profunda crise de Fé, de uma perda do senso religioso que constitui o maior desafio para a Igreja de hoje.15
O pecado de nosso tempo: a perda do senso do pecado
Esta lamentável situação levou o Papa Pio XII a declarar, com palavras que se tornaram quase proverbiais, que “o pecado do século é a perda do senso do pecado”.16
Este fenômeno foi favorecido por diversas correntes intelectuais e ideologias de índole materialista e até militantemente anticristãs, bem como pelo ateísmo prático no qual vivem muitos católicos:
A perda do senso do pecado é uma forma ou fruto da negação de Deus: não só da ateia, mas também da secularista.
Pecar não é apenas negar a Deus; pecar é também viver como se Ele não existisse, é apagá-Lo da própria existência diária.17
Um fator que, segundo o Beato João Paulo II, contribuiu não pouco para a deterioração do senso do pecado radica-se nos erros e desvios em matéria de Fé e moral que surgiram no seio da Igreja.18
Afirmava o Pontífice que se passou do extremo de apontar o pecado em tudo ao extremo oposto de não percebê-lo em parte alguma.
Com efeito, prega-se um amor a Deus que exclui toda justa sanção; pratica-se um suposto respeito à consciência individual que evita o dever de dizer a verdade.
O Sacramento da Reconciliação foi rebaixado a um aspecto puramente comunitário ou esvaziado de seu conteúdo, pela negação da realidade do pecado e de suas consequências, e até reduzido a uma mera consulta psicológica.
Assim, não se insiste na necessidade da conversão, da prática da virtude e do combate ao vício.
Somem-se a tudo isso a confusão e o escândalo ocasionados em inúmeras almas pela discrepância de opiniões e de ensinamentos na teologia, na pregação, na catequese, na direção espiritual e até mesmo na Confissão, sobre sérias e delicadas questões do dogma e da moral.
E isso, com a agravante do divórcio entre a Fé e a vida, a incoerência entre a doutrina e a prática, que se espalha entre os pastores e os fiéis e que o Concílio qualifica como “um dos mais graves erros de nossa época”.19
Eclipse de Deus
O obscurecimento da Fé e do senso de Deus poderia ser comparado a um dos mais assombrosos acontecimentos cósmicos, o eclipse do Sol.
O filósofo Martin Buber o aplica a nossos dias, quando escreve que a “hora histórica que o mundo atravessa” assemelha-se à de um “eclipse da luz do céu”, de um “eclipse de Deus”.20
Valendo-se dessa analogia, Bento XVI observa que a cultura atual tende a excluir Deus ou a considerar a Fé como um assunto privado, sem repercussão na vida social.
E isto ocasiona o “eclipse de Deus”, o qual não é apenas um olvido, mas “uma verdadeira rejeição do Cristianismo e uma negação do tesouro da Fé recebida”.21
Esse eclipse de Deus ameaça destruir a própria existência do homem, pois, apagando-se o senso do pecado e o senso de Deus, que o fundamenta, o homem naufraga em seu egoísmo.
Crescem sem freios a ambição e a crueldade, extinguem-se os sentimentos de compaixão e afeto, o ter passa a valer mais que o ser, o bem-estar material e o prazer – mesmo o ilícito – se convertem no fim supremo da vida.
Assim, tudo se reduz à eficiência econômica e ao consumo desordenado, e são relegados os valores mais profundos da existência – espirituais, morais e relacionais.22
Por fim, obscurecendo-se o senso de Deus, apaga-se também o próprio senso do homem: “Sem o Criador, a criatura não subsiste. […] Antes, se se esquece Deus, a própria criatura se obscurece”.23
Os lamentáveis efeitos do eclipse de Deus e da perda do senso do pecado ensombrecem nossa época, pois, como adverte o Catecismo, “ignorar que o homem tem uma natureza lesada, inclinada ao mal, dá lugar a graves erros no campo da educação, da política, da ação social e dos costumes”.24
“Ó feliz culpa, que mereceu tal e tão grande Redentor!”
Nesta hora dramática, contudo, não devemos nos desanimar; brilha ainda a esperança em nosso mundo enfermo: “O povo que andava nas trevas viu uma grande luz; sobre aqueles que habitavam uma região tenebrosa resplandeceu uma luz” (Is 9, 1).
Essa luz é Jesus Cristo, o qual nos ensina que quem necessita de médico são os enfermos, não os sadios. E para isso Ele, nosso Divino Médico, veio ao mundo: para salvar-nos, a nós, pecadores, e levar-nos à conversão (cf. Mc 2, 17).
“Ó feliz culpa, que mereceu tal e tão grande Redentor!”, cantamos na Vigília Pascal, porque, se são terríveis o pecado e suas consequências, imensamente mais é o que Cristo para nós conquistou com sua morte e gloriosa Ressurreição, de maneira que “onde abundou o pecado, superabundou a graça” (Rm 5, 20).
Por isso a Igreja, constituída por Cristo como “sacramento universal de salvação”,25 não cessa de instar aos pecadores que reconheçam seus pecados e acorram à fonte inesgotável da misericórdia.
Que façam, tal como o fizeram o filho pródigo e o bom ladrão, ou como aquela ditosa mulher que por sua compunção mereceu ouvir estas consoladoras palavras: “Seus numerosos pecados lhe foram perdoados, porque ela tem demonstrado muito amor” (Lc 7, 47).
Não esqueçamos, entretanto, esta doce advertência: “Vai e não tornes a pecar” (Jo 8, 11).
Esse perdão misericordioso de Deus manifesta-se de modo especial no Sacramento da Reconciliação. Ali o próprio Jesus, na pessoa do sacerdote, espera para brindar-nos a mancheias sua bondade e sua clemência. Só uma coisa é necessária: reconhecer com humildade que pecamos.
Quem confia em si mesmo e nos próprios sentimentos está como que cego pelo seu “eu” e o seu coração se endurece no pecado. Ao contrário, quem se reconhece frágil e pecador confia em Deus e d’Ele obtém graça e perdão.26
Mas se, apesar de tudo, a recordação da enormidade de nossos pecados nos perturba, em nossa consciência as culpas nos envergonham e a justiça de Deus nos faz estremecer, não nos deixemos abater pela angústia nem caiamos no abismo do desespero.27
Pelo contrário, recorramos sem demora a Maria Imaculada, Mãe do Senhor e nossa Mãe amantíssima, e Lhe supliquemos: “Rogai por nós, pecadores, agora e na hora de nossa morte”, com a certeza de que quem confia em seu poderoso auxílio nunca será abandonado.
Paulo Extramuros, Roma