A monumental imagem de Nosso Senhor que preside um dos mais belos cartões-postais do Brasil, longe de possuir uma finalidade meramente estética, nos remonta a altíssimas noções teológicas.

O Coração à mostra, as chagas expostas e os braços abertos justificam o título sobremaneira apropriado que a estátua leva: Cristo Redentor.

Com efeito, o Coração e as chagas simbolizam o infinito amor de um Deus que tomou sobre Si nossas dores, e por cujas chagas nós fomos curados (cf. Is 53, 4-5).

Os braços, perpetuamente estendidos para o homem redimido, manifestam a disposição contínua de nosso Salvador para perdoar e acolher o pecador arrependido, quaisquer que sejam suas faltas.

Além disso, a imagem se encontra no alto, à vista de todos, como que a representar a universalidade da Redenção, de cujos frutos todos podem se beneficiar.

Os Evangelhos o comprovam: Jesus veio ao mundo para salvar. Não é outro o ensinamento que se recolhe de parábolas como as do filho pródigo, da ovelha desgarrada e da dracma perdida (cf. Lc 15), ou de passagens como a da mulher surpreendida em flagrante adultério, a respeito da qual o Divino Juiz não pronunciou outro decreto senão o da misericórdia: “Eu também não te condeno. Vai e não tornes a pecar” (Jo 8, 11).

Diante de tal evidência, não podemos senão transbordar de gratidão para com nosso amantíssimo Redentor. Pois, o que mais Ele poderia ter feito por amor a nós?

De fato, a única condição requerida pela justiça divina para que o pecador encontre misericórdia é o sincero arrependimento de suas faltas: “Um coração arrependido e humilhado, Deus nunca despreza” (cf. Sl 50, 19).

Entretanto, igualmente frequentes são as passagens em que podemos vislumbrar a inexorável justiça de Nosso Senhor e a radicalidade exigida a seus seguidores:

Se teu olho direito é para ti causa de queda, arranca-o e lança-o longe de ti, porque te é preferível perder-se um só dos teus membros a que o teu corpo todo seja lançado na geena (Mt 5, 29).

Haverá então uma contradição nos Evangelhos? Não. Todas essas noções são harmônicas e constituem um só todo divinamente arquitetônico, embora alguns trechos possam nos causar certo sobressalto uma que outra vez, devido à nossa parva compreensão a respeito de seu autêntico significado.

“Não alcançará perdão”

Nesse sentido, os Evangelhos sinópticos registram uma passagem misteriosa, que parece contradizer outros ensinamentos do Divino Mestre.

São Marcos escreve:

Todos os pecados serão perdoados aos filhos dos homens, mesmo as suas blasfêmias; mas todo o que tiver blasfemado contra o Espírito Santo jamais terá perdão, mas será culpado de um pecado eterno (3, 28-29).

São Mateus refere termos semelhantes:

Todo pecado e toda blasfêmia serão perdoados aos homens, mas a blasfêmia contra o Espírito não lhes será perdoada.

Todo o que tiver falado contra o Filho do Homem será perdoado. Se, porém, falar contra o Espírito Santo, não alcançará perdão nem neste século nem no século vindouro (12, 31-32).

Por fim, narra o Evangelista São Lucas: “Todo aquele que tiver falado contra o Filho do Homem obterá perdão, mas aquele que tiver blasfemado contra o Espírito Santo não alcançará perdão” (Lc 12, 10).

Ora, não foi o próprio Jesus quem ensinou a Pedro que para o perdão não há limites (cf. Mt 18, 21-22)? Como então pode existir uma espécie de pecado que seja, de si, imperdoável?

O tema é desenvolvido de forma brilhante por São Tomás de Aquino, em cujas obras encontramos uma minuciosa explanação aliada à visão teológica ampla e claríssima, tão característica deste gigante do pensamento cristão.

Tema versado em diversas obras

A blasfêmia contra o Espírito Santo é temática recorrente em diversos escritos do Doutor Angélico: em seu Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo, nas Questões disputadas sobre o mal, nas Questões de Quodlibet e no Comentário ao Corpus Paulinum.

Ademais, diversos pensamentos de Padres da Igreja e autores cristãos sobre o assunto são recolhidos em sua Catena Áurea.

Por fim, a célebre Suma Teológica, sobre a qual deteremos em particular nossa atenção, abriga a peculiar explanação metódica e elucidativa que o leitor habituado ao contato com esta obra tão bem conhece.[1]

Dedicada propriamente à blasfêmia contra o Espírito Santo, a questão 14 da Secunda secundæ se insere no Tratado sobre a fé, e é antecedida por considerações a respeito da blasfêmia em geral, na questão 13.

Nesta o Aquinate[2] afirma que a blasfêmia em sua extrema manifestação, ou seja, a infidelidade acompanhada da aversão da vontade que detesta a honra divina, constitui o mais grave dos pecados.

Partindo desse pressuposto, podemos então considerar aquele que, entre os mais graves pecados, logra ser o mais funesto.

Para São Tomás,[3] a blasfêmia contra o Espírito Santo pode ser considerada por três prismas, a um só tempo diversos e correlatos, decorrentes das opiniões dos Padres da Igreja e de outros autores a respeito do tema.

Jesus discute com os escribas, por Adriaen
van Nieulandt - Museu Calvet, Avignon (França)

Blasfêmia, impenitência e malícia

Em primeiro lugar, diz-se que há pecado contra o Espírito Santo quando contra Ele é proferida, literalmente, uma blasfêmia, quer seja considerando Espírito Santo como nome próprio da Terceira Pessoa da Trindade Santíssima, quer seja atribuindo-o como nome essencial de toda a Trindade, da qual cada Pessoa é espírito e é santa.

É por isso que a Sagrada Escritura distingue a blasfêmia contra o Espírito Santo da blasfêmia contra o Filho do Homem. Pois Nosso Senhor Jesus Cristo praticava atos próprios à humanidade, como se alimentar, pelos quais os judeus O injuriaram com calúnias, dizendo que Ele Se excedia no comer e no beber (cf. Mt 11, 19).

Tal ofensa constituiu pecado contra o Filho do Homem, Jesus, no que se refere à sua humanidade santíssima.

Todavia, o Redentor praticava também atos próprios à sua divindade, como expulsar os demônios e ressuscitar os mortos.

E foi por terem blasfemado contra Cristo enquanto Deus que os escribas pecaram contra o Espírito Santo, pois atribuíram ao demônio o que pertence ao Criador, ao afirmarem: “É pelo príncipe dos demônios que Ele expulsa os demônios” (Mc 3, 22).

Sobre esta distinção, o Doutor Angélico[4] menciona ainda um exemplo muito esclarecedor, tomado de Santo Atanásio.

Explica: Enquanto caminhavam rumo à Terra Prometida, os filhos de Israel murmuraram repetidas vezes contra Moisés e Aarão pela falta de pão e de água, mas o Senhor suportou pacientemente essa falta, pois nela havia a desculpa da fraqueza da carne.

Quando, porém, o mesmo povo fabricou um ídolo de metal fundido e a ele atribuiu os benefícios divinos – “Eis, ó Israel, o teu Deus que te tirou do Egito” (Ex 32, 4) –, Deus o puniu com severidade, permitindo que milhares de homens caíssem mortos no acampamento e ameaçando-os com um castigo futuro (cf. Ex 32, 34).

Numa segunda acepção, desta vez originária de Santo Agostinho, o pecado contra o Espírito Santo pode ser entendido como a própria impenitência final, pela qual alguém persiste na falta até a morte.

E por que tal pecado levaria este nome? Porque é justamente pelo Divino Paráclito, Amor do Pai e do Filho, que a remissão dos pecados é operada. Assim, ao rejeitar o perdão divino, o pecador rejeita quem lho oferece: o próprio Deus.

São Tomás apresenta ainda um terceiro modo de se entender este gravíssimo pecado, mas sem mencionar o nome dos mestres aos quais se atribui o desenvolvimento do assunto.

Eis a explicação: assim como ao Pai é próprio o poder e ao Filho a sabedoria, ao Espírito Santo é própria a bondade.

Em decorrência, podemos elencar também três categorias de pecado, cada qual dirigida especialmente a uma Pessoa da Santíssima Trindade: os de fraqueza, em oposição ao poder, contra o Pai; os de ignorância, em oposição à sabedoria, contra o Filho; e por fim os de malícia, em oposição à bondade, contra o Espírito Santo.

Pecar contra a bondade e, portanto, contra o Paráclito, é pecar por malícia, por livre eleição do mal, ou seja, escolhendo-o conscientemente sem escusa alguma de fraqueza da carne ou ignorância da mente.[5]

Um pecado de ódio a Deus

Resta, porém, a dúvida: por que o pecado contra o Espírito Santo é tido por irremissível e imperdoável? Para respondê-la, analisemos ainda esta falta sob a terceira acepção enunciada por São Tomás.

Se consideramos que o pecado de malícia é cometido pelo desprezo consciente dos efeitos do Espírito Santo na alma humana,[6] chegamos à grave conclusão de que quem assim procede odeia a Deus.

Cabe aqui uma distinção. O mal do pecado consiste no afastamento de Deus, e isso pode dar-se de dois modos.

De forma relativa, como ocorre nos pecados de luxúria ou de gula, nos quais o homem apetece um prazer desordenado que traz consigo o afastamento do Senhor como consequência necessária.

De forma voluntária e direta, como no caso do ódio a Ele. Assim, pela malícia que essa falta supõe, “o ódio contra Deus é por excelência o pecado contra o Espírito Santo”.[7]

Espécies de pecado contra o Espírito Santo

Por sua vez, este pecado se divide em seis espécies,[8] relacionadas com os meios de que o homem pode se servir para evitar as faltas ou para nelas permanecer.

Assim, o que primeiramente nos livra do pecado é a realidade do juízo divino, contra a qual dois erros se levantam: o desespero, contrário à esperança na misericórdia de Deus, e a presunção, que presume alcançar a glória sem méritos nem penitência das faltas e se opõe ao temor da divina justiça, que pune os pecados.

Podem também nos afastar do pecado os dons de Deus, como o conhecimento da verdade, contra o qual se levanta a impugnação da verdade, ou seja, a negação da verdade de Fé conhecida como tal, com o objetivo de se pecar mais livremente.

igualmente o precioso auxílio da graça interior, eliminado pela inveja da graça fraterna, ou seja, daquela que age em nossos irmãos.

Com efeito, este é um pecado eminentemente diabólico, que leva o homem a se entristecer não só pelos benefícios espirituais concedidos a seu próximo, como pelo aumento da graça de Deus no mundo.

Por fim, a consideração do pecado pode servir ao homem como meio de afastamento do mal, seja por sua vileza e horror, que o apartam de Deus, seja pela mesquinhez dos bens transitórios que se alcançam através dele, o que deveria dificultar a fixação da vontade no pecado.

Mas à consideração da miséria do pecado e da aversão de Deus se opõe a impenitência do coração, entendida como propósito deliberado de jamais se arrepender das faltas.

Entretanto, contra a meditação das exíguas vantagens do pecado, se levanta a obstinação, pela qual o homem se apega firme e cegamente às próprias faltas e seus desprezíveis deleites.

Assim, a questão enunciada linhas acima encontra resposta adequada: a blasfêmia contra o Espírito Santo não é chamada de “irremissível” pelo fato de não poder ser perdoada jamais, mas sim por excluir efetivamente os meios que podem levar o homem a se arrepender e pedir perdão, do mesmo modo como uma doença que priva o enfermo das condições favoráveis à sua cura é dita incurável.[9]

Afirma o Aquinate:

O pecado contra o Espírito Santo obstrui o caminho da graça, motivo pelo qual, se permanece o pecado contra o Espírito Santo, não há capacidade para a graça da parte de quem peca.[10]

 

O beijo de Judas - “Grandes Horas de Ana
da Bretanha”, Biblioteca Nacional da França, Paris

Vigilância e confiança!

Sirva-nos a consideração deste gravíssimo pecado – o pior dentre todos – para que cresçamos na vigilância e na confiança.

Vigilância, pois nada de grande se opera em um instante. Sucessivas infidelidades, dureza de coração, desprezo pela prática da Religião… Tudo isso pode, com o passar do tempo, levar qualquer homem a cometer os mais graves pecados.

E confiança porque, nas palavras do Doutor Angélico,

o pecado contra o Espírito Santo diz-se irremissível por sua natureza, enquanto exclui os meios que levam à remissão dos pecados.

Entretanto, isso não fecha a via do perdão e da cura pela onipotência e misericórdia de Deus, pela qual, às vezes, quase miraculosamente tais pecadores são espiritualmente curados.[11]

Se nem o pior dos pecados consegue pôr limites à bondade do Todo-Poderoso, como podemos desconfiar de seu amor por nós?

Mas também não podemos nos iludir, julgando que todos os homens são bons e alcançam o perdão das próprias faltas sem o devido arrependimento de seus pecados.

Os impenitentes não alcançarão nem perdão, nem a vida eterna. Pelo contrário, pagarão por sua iniquidade nas chamas eternas, pois ninguém se salva sem que o deseje. Aquele que quer permanecer no pecado não pode almejar a glória futura.

 

 

 

Notas
[1] A respeito do tema, conferir: SÃO TOMÁS DE AQUINO. Comentário às sentenças de Pedro Lombardo. L.II, dist.43; Questões disputadas sobre o mal, q.2, a.8, ad 4; Quodlibet II, q.8, a.1; Comentário à Epístola aos Romanos, c.II; Catena Aurea. Evangelho segundo Mateus, c.XII, v.31-32; Evangelho segundo Marcos, c.III, v.23-30; Suma Teológica. II-II, q.14.
[2] Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. II-II, q.13, a.3.
[3] Cf. Idem, q.14, a.1.
[4] Cf. Idem, a.3.
[5] Cf. Idem, I-II, q.78, a.1.
[6] Cf. Idem, II-II, q.14, a.2.
[7] Idem, q.34, a.2, ad 1.
[8] Cf. Idem, q.14, a.2.
[9] Cf. Idem, a.3.
[10] SÃO TOMÁS DE AQUINO. Comentário às sentenças de Pedro Lombardo. L.II, dist.43, q.1, a.4, ad 1.
[11] Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. II-II, q.14, a.3.