Na conclusão do Grande Jubileu da Encarnação, João Paulo II assinou, na basílica de São Pedro, a sua Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte.
A meu ver, ela está destinada a exercer na Igreja, que inicia o novo milênio, a mesma influência da Evangelii Nuntiandi nas últimas décadas.
Um teólogo denominou a Novo Millennio Ineunte a carta constitucional dos crentes no novo milênio.
Nesta carta, o Papa coloca os pilares da ação evangelizadora e pastoral da Igreja no novo milênio: a contemplação do rosto de Cristo, o primado da graça, a arte da oração e a espiritualidade de comunhão.
A contemplação do rosto de Cristo
Ela não é só o primeiro pilar, mas também o ponto de partida. A contemplação do rosto de Cristo leva à descoberta do seu mistério. Por isso mesmo, só é possível pela ação da graça.1
Em Jesus de Nazaré, Deus não somente nos falou pelo seu Filho. Mostrou também um rosto, que lhe permite ser reconhecido: “Quem me vê, vê o Pai” (Jo 14, 9).
Contemplar o rosto de Cristo implica também aceitar a sua centralidade. Não existe um só fragmento da realidade indiferente a Cristo, fora do âmbito de sua centralidade.
A cristologia delineada pelo Papa a partir da contemplação do rosto de Cristo é uma cristologia espiritual. É a cristologia que precisamos neste novo milênio.
O primado da graça
O segundo pilar da ação evangelizadora e da pastoral da Igreja é o primado da graça. Trata-se, segundo o Papa, de um princípio essencial da visão cristã da vida. 2
Primado da graça significa que Deus é o primeiro agente, o primeiro trabalhador. Nós somos apenas seus colaboradores, inclusive na evangelização e na ação pastoral. Daí provêm diversas consequências no campo prático:
a) O Espírito Santo precede, acompanha e segue, com sua ação, todo empenho da ação evangelizadora e pastoral. O dom do Espírito, como mostra o evento de Pentecostes, é o pressuposto da missão.
Antes de Pentecostes, a comunidade dos discípulos não tinha iniciativa. Estava fechada dentro de casa. Com o dom do Espírito Santo, tudo fica repleto de vida. A Igreja começa a caminhar em direção de todos os povos, de todas as culturas.
b) Os resultados da ação pastoral não dependem, antes de tudo, da nossa capacidade de programar, de elaborar projetos, de agir. Sem a ação da graça, podemos produzir muitos papéis, mas nenhum efeito prático, que leve à conversão e à salvação.
c) Somos colaboradores. Nossa colaboração não é algo paralelo à ação da graça. Na realidade, é a graça que possibilita a nossa colaboração.
d) O primado da graça tem também uma dimensão ética. Dela deriva o acolhimento, que é uma resposta à oferta gratuita do amor de Deus.
Ele nos amou por primeiro. Portanto, devemos nos amar uns aos outros.3 A iniciativa de amar o próximo, de respeitar a sua dignidade, é uma consequência do primado da graça. Mais ainda: um imperativo desse primado.
A carta apostólica de João Paulo II recorda e nos leva a valorizar os canais da graça: a escuta da Palavra, a oração e os sacramentos, sobretudo, o sacramento da reconciliação e a Eucaristia.
A arte da oração
O terceiro pilar é a arte da oração. Na terceira parte da Novo Millennio Ineunte, o Papa dirige a toda a Igreja um insistente convite à santidade.
Na sequência deste convite, ele se refere a um cristianismo que deve brilhar pelo dom e pela arte da oração.4 Todos os evangelhos, mas sobretudo o de S. Lucas, mostram que a oração está no centro da intimidade de Jesus com o Pai.
A oração foi também a fonte de onde Jesus enquanto homem tirou a força para o seu agir e para suas decisões. Todas as grandes decisões de Jesus foram precedidas pela oração. Às vezes, por noites inteiras de oração.
A oração é dom, pois o seu artífice primeiro e supremo é o Espírito Santo. É ele que desperta em nós o desejo de orar.
A oração é também arte. Expressa a beleza da luz do Espírito que envolve o coração do orante. A beleza da alegria que o Espírito infunde naquele que ora. Uma alegria interior, profunda, até mesmo no sofrimento.
A oração, enquanto arte, deve ser aprendida. Jesus é o modelo do orante. Nossa oração é um prolongamento da sua. Ele é o Mediador da nossa oração.
Na Novo Millennio Ineunte, João Paulo II se refere à dimensão litúrgica da oração. A liturgia é um “sacrum commercium”: diálogo de palavras e ações entre Deus e o seu povo. Como ensina o Vaticano II, ela é a fonte e o cume de toda a vida eclesial.
A oração pode atingir uma tal profundidade, até o ponto de desembocar na experiência mística. A mística é uma união amorosa com Deus.
De certo modo, o místico já começa a viver, nesta terra, aquilo que será a nossa condição definitiva: a comunhão com a Santíssima Trindade. O Papa ousa fazer a proposta da experiência mística a todos os cristãos. E com muita razão.
Vivemos em sociedades que não mais oferecem uma garantia para a vida religiosa.
Só uma vida orante, com dimensão mística, poderá garantir a fidelidade aos valores do Evangelho e aos mandamentos de Deus.
Daí o apelo do Santo Padre para que nossas comunidades se tornem escolas de oração.
Espiritualidade da comunhão
O quarto pilar é aquilo que, com muita propriedade, João Paulo II denomina a espiritualidade da comunhão.5 Eis o desafio que lança a Igreja que está iniciando o novo milênio: “tornar-se uma casa e uma escola de comunhão”. 6
Para isso, são necessários os instrumentos de comunhão. Alguns já existem. Foram criados ou sugeridos pelo Concílio Ecumênico Vaticano II.
Mas, para que esses instrumentos atinjam seu objetivo, o pressuposto é a espiritualidade de comunhão. Sem ela, esses instrumentos seriam se melhantes a corpos sem alma.
A espiritualidade de comunhão tem um duplo fundamento, indicado pela carta apostólica: a Trindade e a Igreja como Corpo Místico de Cristo.
A Novo Millennio Ineunte tira diversas consequências práticas da espiritualidade de comunhão. Em primeiro lugar, ela cria espaço para o irmão, evitando as tentações egoístas que geram competição, suspeitas, ciúmes, arrivismos.7 Leva a olhar o que existe de positivo no outro.
Para terminar, recordo que é na Eucaristia que a Igreja realiza plenamente a sua essência de mistério de comunhão. É nela que a Igreja, segundo a doutrina de São Paulo, torna-se em plenitude o Corpo de Cristo.8
A Igreja no Brasil possui uma tradição pastoral que tem, como ponto de referência próximo, o Concílio Vaticano II. A eclesiologia de comunhão, própria do Concílio, envolve todos os planos de pastoral de conjunto e de ação evangelizadora.
A Igreja no Brasil iniciou o novo milênio, procurando colocar em prática um novo projeto, em continuidade com o projetos anteriores: Ser Igreja no Novo Milênio.
Este projeto está baseado no livro que registra a primeira história da missão: os Atos dos Apóstolos. Creio que o objetivo principal do projeto é aprofundar a consciência missionária de nossas comunidades.
A Novo Millennio Ineunte veio providencialmente completar o projeto. Oferece a ele uma fundamentação espiritual e mística. Não só a ele, mas também a todos os projetos que serão elaborados neste século. Todos eles, certamente, terão como ponto de referência obrigatória essa carta apostólica.
Conclusão
Quero recordar um tema que deve estar presente em todo plano de ação pastoral e evangelizadora: o desenvolvimento da consciência missionária de nossas comunidades. Comunidades missionárias são comunidades de envio.
Estamos, aqui no Brasil, acostumados a ver o missionário como aquele que chega. O missionário é, antes de tudo, aquele que parte enviado por uma comunidade.
Quando se afirma isso, vem logo a objeção: como podemos enviar, se somos comunidades pobres em pessoas e em recursos humanos?…
Comunidades missionárias são aquelas que se sentem responsáveis pela missão da Igreja universal. Sacrificam-se pelas missões. Oram pelas missões. Colaboram com suas experiências eclesiais e com recursos materiais e pessoas na medida do possível.
Recordemos o exemplo de Santa Terezinha, padroeira das missões. No interior de seu Carmelo, em Lisieux, tornou-se uma grande missionária. Sacrificava-se e orava continuamente pelas missões.
Comunidades missionárias, sobretudo, são aquelas que oram pela santificação dos missionários. Sem santidade de vida, não existe missão.
Como escreveu o Papa na Ecclesia in America, os grandes missionários foram grandes santos. Sem santidade, a missão não passa de propaganda, de proselitismo.
1 Carta apostólica Novo Millennio Inenunte, nº 20.
2 Cf. Novo Millennio Ineunte, nº 37.
3 Cf. 1Jo 4,11.
4 Cf. Novo Millennio Ineunte, nº 32.
5 Cf. Novo Millennio Ineunte, nº 43.
6 Cf. ibidem.
7 Cf. ibidem.
8 Cf. 1Cor 10,17.