Gildásio, superando muitos percalços, chegou a uma situação de elevado destaque no mundo dos negócios, acumulando uma respeitá­vel fortuna.

Estêvão dedicou-se à religião. Aos olhos de seu antigo colega, seria um fracassado que trocara o “sublime ideal” de mandar pelo de obedecer.

Um dia, vinte anos depois de formados, reencontraram-se casualmente, nascendo daí uma curiosa conversa.

Estêvão: — Oh, Gildásio! como vai você? Quanto tempo…

Gildásio: — Puxa! você se lembra de mim…

E: — Claro que me lembro. É verdade que você está um tanto mais… forte…

G: — É, eu engordei mesmo. Mas é que no tempo da faculdade eu discutia tanto com você que achei que…

E: — Ah! que é isso? Águas passadas não movem moinhos. E depois, você agora é um homem importante, aparece nos jornais. Como poderia eu não me lembrar?

G: — Eh... Não sou tão importante assim ainda... Você sabe, a gente entra nos negócios para enriquecer-se, não é? E nesse campo, não há progresso que satisfaça.

E: — É verdade. A ambição é uma coisa curiosa. Quando mais a gente a alimenta, mais ela cresce…

G: — Puxa, como é que você sabe disso? Porque você, pelo que estou vendo, continua religioso, e até mais do que antes.

E: — Graças a Deus, sim.

G: — E religioso deixa de lado justamente a ambição…

E: — Ao menos é nosso dever.

G: — Como é que você sabe que ela é difícil de contentar, então?

E: — Não há mistério, a resposta é simples…

G: — Desculpe interromper, mas veja que coisa curiosa.

Normalmente, num encontro casual, a gente conversa sobre chuva e bom tempo. Mas com você, basta abrir a boca que sai logo conversa séria. Vou lhe dizer mais.

Há muito tempo estou com esse problema girando na cabeça e estava mesmo desejando me reencontrar com você. Porque por mais que nós discordássemos no passado, eu sabia que, em você, eu podia confiar. 

E: — Ora essa…

G: — E… Olha, já que estamos conversando aqui em particular, vou aproveitar para lhe fazer uma confidência. Isso acontece comigo e com muita gente que conheço: quanto mais a gente sobe, maior a frustração por não encontrar o que esperava. E maior também a ansiedade, o pânico de perder o que conquistou. Porque será isso, Estêvão?

E: — Sabe o que acontece, Gildásio? É que o homem tem um instinto espiritual que o leva a procurar um bem absoluto. Santo Agostinho exprime bem isso naquela famosa frase:

“Fizestes-nos para Vós, Senhor, e nosso coração está inquieto enquanto não repousa em Vós”.

G: — Coração inquieto… Bem absoluto… Curioso, eu sempre notei em você, Estêvão, uma coisa que me faz muita falta. Não sei explicar bem o que era. Seria talvez…

E: — Paz?

G: — Puxa, isso mesmo! É exatamente o que me falta. Paz, paz na cabeça, paz comigo mesmo.

E: — Não é de espantar. No mundo de hoje, uma das coisas que mais falta é a paz interior. Talvez por isso falte tanta paz entre as nações, e até mesmo dentro das famílias.

G: — Sim, mas você tem. 

E: — Graças a Deus.

G: — E eu, por mais que ganhe dinheiro, prestígio e influência, não tenho. Já procurei psicanalistas, terapeutas alternativos, tomo calmantes importados, mas… nada. Como é que a gente faz para… Quer dizer…

E: — Para ter paz? É muito simples.

G: — Mas, olhe, por favor, que esta conversa fique só entre nós, hein? Já pensou se o meu pessoal ficar sabendo que ando pensando nessas coisas?

E: — Ah-ah-ah… Fique tranquilo, Gildásio. Você não é o único a se preocupar com isso. Muito pelo contrário. Mas vamos ao assunto. Você me pergunta como ter paz. Antes de mais nada, é preciso saber o que é a paz. Segundo Santo Agostinho, paz é a tranquilidade da ordem. E esta é a reta ordenação das coisas segundo o seu fim. 

G: — Como é isso mesmo?

E: — Por exemplo, minha mão. Ela está em “paz” porque todos os seus ossos, músculos, nervos, vasos, estão em ordem. Bastava haver um ossinho fora do lugar para emperrar tudo. 

G: — Eu que o diga. Passei um mês com esta mão engessada no ano passado…

E: — Do mesmo modo, para a gente ter paz interior, é preciso que as nossas potências internas estejam ordenadas segundo seu fim…

G: — Potências o quê?

E: — São Tomás de Aquino ensina que o homem tem inteligência, vontade e sensibilidade. Quando a alma está retamente ordenada, a inteligência, iluminada pela fé, governa a vontade, e esta comanda a sensibilidade.

G: — Você podia explicar melhor?

E: — Vou lhe dar um exemplo. Uma pessoa fica com muita raiva de outra. Sua sensibilidade lhe dá um impulso para agredir essa outra.

Sua inteligência, entretanto, lhe mostra que isso é errado. Então, se ela for equilibrada, sua vontade decide não agredir. Ela não agride, procura esquecer o caso e acaba ficando em paz. Se ela não for equilibrada, o caso pode ir acabar na delegacia de polícia…

G: — Homem! é mesmo… Quantos problemas eu teria evitado se soubesse disso!…

E: — Mas não basta saber, Gildásio. Para ter essa ordenação interior, o homem precisa receber uma ajuda divina especial.

Essa ajuda se chama graça. Com a graça, nossa inteligência tem docilidade e compreensão para as coisas da fé, nossa vontade é reforçada pela esperança da salvação eterna, e nossa sensibilidade se transforma, de “inimiga”, numa aliada que nos leva a amar a Deus e ao nosso próximo por amor a Ele.

G: — E como a gente faz para receber essa ajuda?

E: — Basta pedir. “Deus não resiste a um coração arrependido e humilhado”, diz a Sagrada Escritura. Sobretudo se o pedido é feito por meio de Nossa Senhora.

Com a oração e os sacramentos, recebemos a graça de Deus. Auxiliados pela graça, temos condições de praticar as virtudes. Com a prática das virtudes, nosso interior vai se pondo em ordem.

G: — Mas… Mas como a gente faz para ter essa sensação da paz interior?

E: — Antes de mais nada, não se preocupando com ela. Porque na medida em que buscamos obter qualquer coisa movidos pelo egoísmo, perdemos a paz.

G: — E por que isso?

E: — Porque, como lhe disse, a paz é fruto da ordem, e esta é a ordenação das coisas em função do seu fim. E qual é verdadeira finalidade do homem?

G: — Gozar a vida, claro…

E: — Claro que não! A fé nos ensina que a finalidade do homem é conhecer, amar e servir a Deus, e desse modo salvar a sua alma. Por isso Jesus ensinou que devemos procurar primeiro o Reino de Deus e sua justiça, e todo o resto nos será dado por acréscimo.

G: — A paz também?

E: — A paz também. O importante é não pôr obstáculos à ação da graça divina. Cooperando com ela, combatendo nossos defeitos, aos poucos a paz vai se estabelecendo em nossas almas.

G: — Ah! estou começando a entender. Mas há uma coisa que não me ficou clara. Inteligência e vontade, eu percebo bem o que são. E a sensibilidade? No que consiste?

E: — A sensibilidade está muito relacionada com os instintos e as emoções humanas.

G: — Bom, então ela acaba só atrapalhando…

E: — De modo algum. Com a ajuda de Deus e a cooperação pessoal, o homem pode harmonizar todos esses elementos de modo a servir-se da sensibilidade para favorecer o governo da inteligência e da vontade.

G: — Quer dizer que isso é possível?

E: — Tanto é possível que a Igreja sempre procurou realizá-lo.

É por essa razão que ela não se serve apenas da doutrina e da ascese para influenciar a inteligência e a vontade, mas também da música, das artes plásticas, das maravilhas existentes tanto na natureza como nos ambientes engendrados pelo homem. Porque isso tudo está na raiz do funcionamento equilibrado da psicologia humana.

G: — Que interessante…

E: — E note que isso se aplica não só às pessoas individualmente, mas também à sociedade como um todo.

G: — Como assim?

E: — Se os poderes públicos e os meios de comunicação também procurarem favorecer as manifestações culturais que estimulam o sadio desenvolvimento da sensibilidade, facilitarão a prática das virtude.

Desta forma, poderão ajudar as pessoas a ordenarem-se interiormente. À medida em que se forem reordenando, a inteligência irá reassumindo nelas seu importante papel.

Já pensou – para falar só nisso – quanto se economizaria se os homens não se deixassem levar pelos impulsos? Quantos crimes seriam evitados, quantos problemas de saúde decorrentes das drogas e do álcool, quantas divisões familiares? 

G: — Puxa, é verdade! E eu que pensava que religião era coisa para gente velha ou sentimental… Como estava enganado! Isso tudo é lógico e tem consequências práticas.

E: — Tem razão. Estou gostando muito da conversa, Gildásio, mas infelizmente já estou atrasado, por isso vou ter de despedir-me agora. Mas se você quiser, podemos voltar a conversar sobre este assunto. Aqui está meu telefone.

G: — Ah! mas que pena… Tome meu cartão também. Vamos fazer o seguinte: eu lhe telefono amanhã para a gente marcar um almoço…

E: — Está bem, nos reveremos então. Até amanhã, se Deus quiser.

G: — Até lá. E, olha… muito obrigado pela conversa, viu?