Chegam-nos desde algum tempo notícias do Reino da França, outrora famoso e poderosíssimo, mas cuja glória começou a decair devido à proliferação dos maus costumes e ao desaparecimento de insignes virtudes. 

Estamos certamente numa época em que todas elas parecem decair, pois as leis são negligenciadas, a justiça é calcada aos pés, tudo quanto é feio, cruel e de todo miserável permanece impune a ponto de a licenciosidade se ter estabelecido como hábito.

Tudo é dor, nada merece louvor

Faz alguns anos já que, sob o amparo do poder real, nenhuma lei ou autoridade proíbe ou pune qualquer crime, e não faltam homens que, desejando vingar injúrias recebidas, tomam as armas e combatem para fazer justiça pelas próprias mãos.

­Multiplicaram-se, em consequência, as mortes, os incêndios e outras calamidades decorrentes da guerra. 

Tudo é dor, nada merece louvor. E mesmo agora abundam aqueles que, sob o domínio da malícia, como uma doença pestilenta, cometem todo tipo de crimes horrendos e facinorosos.

Nada respeitam de humano ou de divino. Cometem perjúrios, sacrilégios, incestos, até se atraiçoam uns aos outros por qualquer ninharia; vão às cidades vizinhas, encarceram irmãos e extorquem todos os seus bens, fazendo-os terminar a vida na miséria.

Aprisionam os fiéis que voltam de sua peregrinação a Roma e os jogam em cárceres, impondo-lhes os piores tormentos, na expectativa de deles obter resgates acima de suas possibilidades. 

Cabeça e causa de tudo isto é vosso rei, que de fato não é rei, mas sim um tirano incitado pelo demônio. Toda a sua vida está poluída pela vergonha e pelo crime.

Ele governa de forma miserável, infeliz e inútil um povo que deixou solto ao vento do pecado, permitindo tudo quanto é proibido e encorajando, por seu péssimo exemplo, a praticar o mal. 

Se isto não bastasse, deve-se acrescentar a devassidão dos eclesiásticos em adultérios, roubos nefandos, perjúrios e fraudes de toda espécie, coisas que merecem a ira de Deus.

Vosso rei rouba como o pior dos ladrões até aos mercadores que vêm de outros países, atraídos pela boa reputação da França. Ele, que deveria ser o defensor das leis, converteu-se no mais voraz dos depredadores. 

Não é de espantar que, assim agindo, a fama de suas más ações extrapole as fronteiras do reino e cause confusões até fora dos seus domínios. 

Vedes o lobo destroçar as ovelhas

Entretanto, ninguém pode escapar do supremo Juízo. Por isso vos rogamos e admoestamos com sincera caridade: acautelai-vos para não recair sobre vós a imprecação da Escritura: “Maldito quem recusa o sangue à sua espada!” (Jr 48, 10). 

Como bem podeis compreender, ela se aplica ao homem carnal que omite a pregação da Palavra. E vós, irmãos, não estais isentos de culpa.

Longe de resistir com vigor sacerdotal, como propugna o profeta Isaías (cf. Is 61), apoiais tudo quanto acima descrevemos.

Dizemos isto gemendo e a contragosto, muito receando que mereçais por vossa atitude, não a sentença dos pastores, mas a dos mercenários,1 pois vedes com os próprios olhos como o lobo destroça as ovelhas e procurais vos esconder, em lugar de ladrar como cães destemidos.

Tanto mais tememos por vós quanto não vemos qual escusa poderíeis apresentar para tal comportamento, e não encontramos outro motivo para vosso silêncio senão a consciência de estar fazendo o mal ou, pelo menos, uma negligência culposa que vos leva a não vos importar com a perdição dos pecadores. 

Não ignorais que vosso múnus episcopal não vos permite fugir de vossos deveres pastorais.

Laborais em erro se vos preocupais apenas com as formas para vos considerar fiéis, pois podemos afirmar com certeza que quem impede o naufrágio de uma alma pecadora é muito mais fiel do que quem, por omissão, deixa alguém ser devorado pelo pecado. 

Fazei valer o vosso prestígio para advertir o rei

Sobre o temor que vos possa assaltar, devo lembrar que se requer virtude para defender a justiça nas circunstâncias atuais.

Quem corrige de acordo com a justiça expõe-se a perigos que, aliás, são benéficos para a salvação da própria alma. O receio de morrer não vos outorga o direito de não cumprir vossos deveres sacerdotais. 

Em consequência, suplicamos e reiteramos com nossa autoridade apostólica que vos congregueis e, fazendo valer vosso nome e prestígio, vos dirijais ao rei para adverti-lo contra a confusão e o perigo pelos quais passa o seu reino.

Mostrai-lhe quão criminosas são suas ações. Não poupeis argumentos para induzi-lo a mudar de atitude. Pedi-lhe que repare os crimes acima enunciados, pois, como bem o sabeis, causará infinitas discórdias e inimizades se não o fizer. 

Exortai-o a se arrepender de seus atuais delitos, corrigir-se dos vícios adquiridos na juventude e reparar seus males pela contrição; assim agindo, merecerá um reinado digno, justo e glorioso, e sua atitude servirá de exemplo para outros também abandonarem o mal. 

Se ele, por não mais temer a Deus, não vos der ouvidos e, para desgraça de sua alma e de seu povo, persistir no endurecimento do seu coração, não poderemos reter por mais tempo o gládio de nossa repulsa, conforme já advertimos publicamente. 

Neste caso, espero que vós, movidos e obrigados pela autoridade apostólica, ponhais em prática a obediência que deveis à Santa Igreja Romana, Católica e Apostólica, afastando-vos dele e interditando em toda a França qualquer celebração pública do culto divino.

Pois, se não houver outro remédio, desejamos valer-nos desta severidade para, com a ajuda de Deus, salvar o Reino da França. 

Mas se, como tememos, continuardes tão tíbios como até agora, e optardes por permanecer no erro, vos privarei do ofício episcopal por serdes cúmplices de seus crimes.

Deus é testemunha de que agimos com a consciência limpa, na dor profunda de ver tantos súditos de tão nobre reino se perderem por culpa de um só homem.

Não podemos calar nem fingir que não vemos. Lembrai-vos desta advertência da Sabedoria: “O temor dos homens prepara um laço, mas quem confia no Senhor permanece seguro” (Pr 29, 25).

Agi, pois, com reta consciência; sem temer a ruína que possa vos advir dos homens, procurai em Deus a força, como valentes soldados de Cristo, chamados a uma vocação excelsa e à glória futura.

 

São Gregório VII. Carta aos Bispos franceses, 10/9/1074: PL 148, 362-365

1 Cf. Jr 46, 21 (Nota do Tradutor).