Ao nascer o Divino Infante e avisados de sua chegada, os pastores que vigiavam os rebanhos nos arredores de Belém viram uma multidão de Anjos entoando: “Glória a Deus no mais alto dos Céus e na terra paz aos homens, objetos da benevolência divina” (Lc 2, 14).

Entrementes, uma misteriosa estrela guiava os Reis do Oriente, que vinham adorar o Menino Jesus com seus camelos carregados de ricas oferendas.

Quanto esplendor, quanta magnificência, quanta pompa celeste inundou aquele nascimento bendito!

Trinta anos depois, porém, ao iniciar Nosso Senhor sua vida pública, não quis ser Ele anunciado por Anjos, nem ser apresentado por um mestre da Lei ou por alguma figura de grande prestígio na sociedade.

Escolheu como Precursor um varão austero, que vivia no deserto, vestia-se de pelo de camelo e se alimentava de gafanhotos e mel silvestre (cf. Mc 1, 6). Por que quis proceder assim a Divina Sabedoria? Porque os homens olham as aparências, o Senhor, o coração…

João, o Batista, era íntegro, intolerante com o mal e, ao mesmo tempo, repleto de humildade. Estava convicto de que devia atrair os corações para Cristo e não para si, numa atitude oposta à dos vaidosos fariseus que guiavam o povo eleito.

Enquanto João brilhava como paradigma da virtude da restituição, eles retratavam com perfeição o pecado de orgulho, paixão malfazeja que se manifestou nos anjos decaídos, antes mesmo do pecado de nossos primeiros pais. 

O primeiro de todos os pecados: orgulho

Non serviam! – Não servirei! Este odioso brado de revolta proferido nos Céus por Lúcifer, o anjo que portava a luz, foi a matriz de todos os gritos de rebeldia que se alastraram pelo mundo como uma peste ao longo da História. 

Há, sem dúvida, uma estreita semelhança entre a revolta dos espíritos angélicos e a subsequente caída dos homens.

O pecado de nossos primeiros pais foi diabólico, pois, na sua essência, foi idêntico ao dos anjos maus. E isso pode ser dito também do vício de orgulho, pelo qual somos levados a amar-nos mais a nós mesmos do que a Deus.1

Autores de peso, como Tertuliano, São Basílio e São Bernardo, afirmam que, antes de sua queda, fora revelado aos Anjos, como uma prova, que o Verbo Eterno Se uniria hipostaticamente à natureza humana, tão inferior sob o ponto de vista natural à dos espíritos celestes.

O homem seria, assim, elevado até o trono do Altíssimo e uma Mulher receberia o inimaginável privilégio de ser a Mãe de Deus: “Tornar-se-ia Medianeira de todas as graças, seria exaltada por cima dos coros angélicos e coroada Rainha do Universo”.2

Tal revelação produziu um frêmito de espanto entre os Anjos e uma parte deles se revoltou contra os desígnios divinos. “Pecaram por orgulho; manifestaram-se, ipso facto, desejosos de se nivelar com Deus, pois Lhe negaram a plena e suprema autoridade”.3

Entretanto, o Arcanjo São Miguel, levantando-se como uma labareda de fidelidade ao Criador, invectivou: Quis ut Deus? – Quem como Deus?

E “houve uma batalha no Céu. Miguel e seus Anjos tiveram de combater o Dragão. O Dragão e seus anjos travaram combate, mas não prevaleceram. E já não houve lugar no Céu para eles” (Ap 12, 7-8).

Arrastando consigo a terça parte dos espíritos angélicos, Lúcifer foi precipitado no inferno, tornando-se o príncipe das trevas. Eis o castigo do orgulho!

São Miguel, por sua vez, foi elevado à mais alta hierarquia dos Anjos, tornando-se o condestável dos exércitos celestes, o baluarte da Santíssima Trindade. Eis o prêmio da humildade! 

Uma virtude oposta à hipocrisia e à soberba

“Deus resiste aos soberbos, mas dá sua graça aos humildes” (Tg 4, 6). Nas Sagradas Escrituras, numerosas são as passagens que salientam como esta estupenda virtude torna os homens agradáveis aos olhos do Senhor e os orna de verdadeira grandeza.

À guisa de exemplo, recordamos mais algumas: “A sabedoria do humilde levantará a sua cabeça e o fará sentar-se no meio dos grandes” (Eclo 11, 1); “O orgulho de um homem leva-o à humilhação, mas o humilde de espírito obtém a glória” (Pr 29, 23).

“Os humildes salvais, os semblantes soberbos humilhais” (Sl 17, 28); “O Senhor ama o seu povo, e dá aos humildes a honra da vitória” (Sl 149, 4).

Contudo, o que vem a ser exatamente a humildade?

Poderíamos defini-la como a virtude que nos leva a reconhecer que o homem, decaído pelo pecado, de próprio apenas possui misérias, e quando ele faz algo de bom é por iniciativa divina e com auxílio da graça: “É Deus quem, segundo o seu beneplácito, realiza em vós o querer e o executar” (Fl 2, 13). 

No mesmo sentido, todavia com uma precisão de grande teólogo, o Fr. Antonio Royo Marín explica que ela “nos inclina a coibir o desordenado desejo da própria excelência, dando-nos o conhecimento acertado de nossa pequenez e miséria, sobretudo em relação a Deus”.4

A humildade, além de ser o extremo oposto do orgulho, o é da hipocrisia. Ela é

luz, conhecimento, verdade; não é fingimento nem negação das boas qualidades que se recebeu de Deus. Por isso dizia admiravelmente Santa Teresa que a humildade é “andar na verdade”.5

Quem possui esta virtude carrega como que uma tocha acesa, deitando seus fulgores sobre a própria alma; os soberbos, diz Santo Afonso Maria de Ligório, “pelo contrário, como estão privados de luz, apenas se veem em sua baixeza”.6

Nossa Senhora o santificou com sua voz

O fato de a virtude da humildade ter refulgido de modo muito especial na alma de São João Batista não contradiz o ter sido ele o maior “entre os nascidos de mulher” (Lc 7, 28).

Sua concepção e nascimento, também narrados por São Lucas no início de seu Evangelho, já revelavam a grandeza de sua missão futura. 

Zacarias, seu pai, era sacerdote da classe de Abias. Ele e sua esposa, Isabel, eram justos, mas não tinham filhos por ser ela “estéril e ambos de idade avançada” (Lc 1, 7).

Certo dia, cabendo a Zacarias entrar para oferecer o sacrifício no altar dos perfumes, o Arcanjo São Gabriel lhe apareceu e profetizou o nascimento de seu filho (cf. Lc 1, 13-17).

O sacerdote, porém, desconfiou das palavras do Anjo e, por sua falta de fé, ficou mudo até que aquelas profecias se realizassem.

Algum tempo depois Isabel concebeu e Maria Santíssima, tomando conhecimento da notícia por meio do mesmo São Gabriel na Anunciação, apressou-Se em visitá-la.

Ao entrar na casa de sua prima, portando em seu seio puríssimo o Divino Salvador, e cumprimentar Isabel, esta ficou cheia do Espírito Santo, estremecendo o Precursor de alegria no ventre materno (cf. Lc 1, 44).

Comentam alguns teólogos que, neste momento, a vida divina foi transmitida a São João Batista pela excelência arrebatadora da voz da Mãe de Deus.

O ter ele saltado no ventre de Santa Isabel significaria, portanto, haver-lhe apagado a mancha do pecado original, “como se ele houvesse sido batizado”.7

Humílimo anunciador de Cristo, o Batista foi, assim, santificado por Nossa Senhora ainda antes de nascer, recebendo pelo timbre da voz virginal de Maria a graça que n’Ela há “em plenitude e superabundância”.8

Tornava-se ele, já desde o claustro materno, a voz que haveria de anunciar a presença da Palavra entre os homens.

Preparando os caminhos do Senhor

Era costume entre o povo judeu dar ao recém-nascido, na cerimônia de circuncisão, um nome igual ao do pai ou ao de algum dos seus ancestrais.

Os vizinhos e parentes do Precursor demandavam que fosse seguida esta tradição.

Isabel, no entanto, insistia que ele se chamaria João. Como replicassem não haver tal nome na família, foram perguntar a Zacarias, que pediu uma tabuinha e nela escreveu: “João é o seu nome” (Lc 1, 63).

Imediatamente sua língua se soltou e, tomado pelo Espírito Santo, começou a louvar o Senhor e a prenunciar a vocação do filho: “Tu, menino, serás chamado profeta do Altíssimo, porque precederás o Senhor e Lhe prepararás o caminho, para dar ao seu povo conhecer a salvação, pelo perdão dos pecados” (Lc 1, 76-77).

Chegado o tempo determinado pela Providência para cumprir sua altíssima missão, o Batista, “dócil ao sopro do Espírito Santo, tomou o caminho do deserto, dando extraordinário exemplo de flexibilidade à voz da graça”.9

Ali vivia na solidão e no recolhimento, fazendo a mais austera penitência.

Quando iniciou sua pregação, foi muito bem acolhido pelo povo. “Saíam para ir ter com ele toda a Judeia, toda Jerusalém” (Mc 1, 5).

Batizava muitos no Rio Jordão, com um batismo que, apesar de não conferir a graça, proporcionava as boas disposições de alma necessárias para levar uma vida de integridade e virtude.

Percorria o deserto da Judeia conclamando à conversão: “Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas” (Lc 3, 4).

E a todos anunciava a vinda do Salvador: “Eu vos batizo na água, mas eis que vem outro mais poderoso do que eu, a quem não sou digno de Lhe desatar a correia das sandálias” (Lc 3, 16).

Um dos mais belos encontros da História

Soara, afinal, a hora de seu caminho se cruzar com o d’Aquele há tanto esperado, Jesus Cristo, a quem os profetas haviam anunciado e por quem ele, João, tinha exultado antes mesmo de nascer.

Estando às margens do Jordão, batizando e pregando a palavra de Deus, eis que vê ao longe aproximar-Se alguém…

As pedras do chão pareciam estremecer de contentamento por Lhe servirem de tapete, as aves do céu, as águas e tempestades do oceano obedeciam à sua voz, e as multidões ansiavam por, ao menos, tocar na orla de seu manto: era o Messias que vinha ao encontro de seu Precursor!

Podemos imaginar que João estivesse proferindo um de seus calorosos discursos, quando divisou o Homem-Deus caminhando em sua direção.

Ao se cruzarem os dois olhares, o Batista cai de joelhos e oscula os pés de seu Senhor, adorando-O. Com muita afabilidade, o Mestre o levanta e pede-lhe o batismo.

A princípio, João recusa, mas ­Jesus lhe responde: “Deixa por agora, pois convém cumpramos a justiça completa” (Mt 3, 15). O Precursor cede e, ao sair Jesus das águas, o Céu se abre fazendo ouvir uma voz: “Eis meu Filho muito amado, em quem ponho minha afeição” (Mt 3, 17).

Por que quis Nosso Senhor, o próprio Deus, ser batizado sem necessidade e por alguém infinitamente inferior a Si?

Entre outras razões, “Jesus quis recebê-lo por humildade”,10 e foi com este ato que o Salvador chancelou a missão do Batista; foi também por meio da mesma virtude que João demonstrou, ao longo de sua vida, um dos mais admiráveis traços de sua fidelidade a Jesus.

Seus discípulos passaram a seguir Jesus

O Evangelho nos revela que os primeiros Apóstolos de Cristo eram discípulos do Precursor. Numa das cenas narradas no Evangelho o vemos dizendo a André e a outro de seus seguidores:

“Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo. É este de quem eu disse: Depois de mim virá um Homem, que me é superior, porque existe antes de mim” (Jo 1, 29-30).

Indo atrás de Nosso Senhor, André e seu companheiro ficaram com Ele naquele dia.

No dia seguinte, estavam com João outros dois de seus discípulos. Vendo mais uma vez ­Jesus aproximar-Se deles, novamente dá testemunho: “Eis o Cordeiro de Deus” (Jo 1, 36). E também estes seguiram o Redentor, tornando-se seus Apóstolos.

O Batista poderia ter ficado triste pela perda dos discípulos que passaram a seguir Jesus… Nada mais longe de suas cogitações!

Ele bem sabia que quando o simbolizado está presente, o símbolo se torna desnecessário.

No ponto em que cessou o antigo e teve início o novo, ali estava João; não é de estranhar que, por desígnio do Criador, como já alhures demonstrado, do ocaso da Lei e dos profetas surgiu o Reino de Deus, através da pregação de João,11

afirma Tertuliano.

“Sou todo vosso e em Vós”

O Batista, ao longo de toda a sua pregação, não cessou um instante sequer de exaltar Nosso Senhor.

Agora, ele afirmava com voz profética que atingira o auge de seu ministério. Na reta final de sua existência cabia-lhe praticar, com o maior dos heroísmos, a virtude da “restituição, a qual consiste essencialmente em atribuir a Deus os dons d’Ele recebidos”.12

Ao ser decapitado por Herodes, calava-se nesta terra a voz que clamava no deserto. Ela partia para a eternidade como formidável modelo de santidade, desapego e restituição.

A missão ímpar do Precursor estava concluída: “Importa que Ele cresça e que eu diminua” (Jo 3, 30). “João, decapitado, diminuiu; Cristo, levantado na Cruz, cresceu”,13 comenta Santo Agostinho.

Não obstante, ela não chegava ao fim com sua morte. Sua figura grandiosa e humilde permanece na Igreja indicando onde se encontra a verdadeira Luz.

Se prestarmos ouvidos à sua voz, no ocaso desta vida terrena poderemos fazer nossas as inspiradas palavras de São Francisco de Sales, proclamando com todas as fímbrias da alma:

Vosso sou, Senhor, e não devo pertencer senão a Vós; minha alma é vossa, e não deve viver senão para Vós; minha vontade é vossa, e não deve amar senão por Vós; meu amor é vosso, e não deve tender senão a Vós.

Devo amar-Vos como meu primeiro princípio, pois vim de Vós; devo amar-Vos como meu fim e meu repouso, pois sou para Vós; devo amar-Vos mais do que a meu ser, pois este subsiste por Vós; devo amar-Vos mais do que a mim mesmo, pois sou todo vosso e em Vós.14

 


1 SOLERA LACAYO, EP, Rodrigo Alonso. Foram Adão e Eva enganados pela serpente? In: Arautos do Evangelho. São Paulo. Ano XI. N. 131 (nov., 2012); p. 22.
2 MORAZZANI ARRÁIZ, EP, Pedro Rafael. Quem como Deus? In: Arautos do Evangelho. São Paulo. Ano VI. N. 69 (set., 2007); p. 19.
3 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. O adversário. In: Dr. Plinio. São Paulo. Ano V. N. 56 (nov., 2002); p. 30.
4 ROYO MARÍN, OP, Antonio. Teología de la perfección cristiana. 6.ed. Madrid: BAC, 1988, p. 612.
5 Idem, p. 613.
6 SANTO AFONSO MARIA DE LIGÓRIO. Selva de materias predicables. P. II, plática 6. In: Obras Ascéticas. Madrid: BAC, 1954, v. II, p. 248.
7 CLÁ DIAS, EP, João Scognamiglio. A arrebatadora excelência da voz de Maria. In: O inédito sobre os Evangelhos. Città del Vaticano-São Paulo: LEV; Lumen Sapientiæ, 2012, v. V, p. 76.
8 Idem, ibidem.
9 CLÁ DIAS, EP, João Scognamiglio. Fazei penitência! In: O inédito sobre os Evangelhos. Città del Vaticano-São Paulo: LEV; Lumen Sapientiæ, 2014, v. III, p. 36.
10 CLÁ DIAS, EP, João Scognamiglio. No Batismo, Ele lavou nossas misérias. In: O inédito sobre os Evangelhos, op. cit., v. V, p. 168.
11 TERTULIANO. Adversus Marcionem. L. IV, c. 33: PL 2, 441.
12 CLÁ DIAS, EP, João Scognamiglio. O Precursor e a restituição. In: Arautos do Evangelho. São Paulo. Ano IV. N. 37 (jan., 2005); p. 8.
13 SANTO AGOSTINHO. Sermo CCXCIII A, n. 6. In: Obras Completas. Madrid: BAC, 1984, v. XXV, p. 208.
14 SÃO FRANCISCO DE SALES. Traité de l’amour de Dieu. L. X, c. 10. Paris: J. Gabalda et Cie, 1934, t. II, p. 237.