Arautos do Evangelho: O papel do Núncio Apostólico é geralmente admirado e respeitado. Mas muitos não conhecem todo o alcance de sua missão. Poderia V. Exa. explicar aos leitores algumas das mais importantes funções do representante do Papa em um país?
Dom Lorenzo Baldisseri: O Núncio Apostólico é um instrumento de comunhão entre a Igreja universal e a Igreja local. Sua função é dupla: ele tem uma função eclesial e uma diplomática.
A função eclesial é a representação do Papa através de uma pessoa – que é o Núncio Apostólico – ante a Igreja local. No nosso caso, a Igreja do Brasil. A outra é a representação oficial da Santa Sé ante o Estado e o Governo; no caso, também do Brasil.
O relacionamento entre o Santo Padre e a Igreja local ocupa cerca de 80% da atividade do Núncio. Isso depende, naturalmente, de cada país. Sobretudo no Brasil, um país católico onde a Igreja Católica está estruturada, o papel do Núncio é principalmente eclesial.
AE: Nessa missão de ser a “voz do Papa”, quais os momentos que se apresentam como mais difíceis? E quais os mais gratificantes?
DLB: Os momentos gratificantes são aqueles em que se pode constatar o desenvolvimento da Igreja na evangelização, no progresso, na conscientização do povo de Deus, na sua espiritualidade, na sua vida integral, seja como cristão, seja como cidadão.
Sobretudo nos contatos com a Igreja local, com os Bispos, os padres e religiosos, os agentes de pastoral. Nesses contatos, o Núncio pode verificar, sentir essa comunhão com o Santo Padre, através dele.
Também quando ele é convidado para celebrações do povo de Deus.
Por exemplo, recentemente, fui convidado a presidir a Celebração Eucarística na 60a Romaria de Nossa Senhora Medianeira de Todas as Graças, em Santa Maria (RS). Foi um acontecimento extraordinário, participaram mais de trezentas mil pessoas. Isso é gratificante.
As coisas mais difíceis são, naturalmente, problemas que podem surgir de dioceses onde se configuram situações de atritos ou tensões. Graças a Deus, são exceções. Aí o Núncio pode desempenhar um papel de mediador para normalizar a situação. Isto, em nível de Igreja.
Também no relacionamento Igreja-Estado, o Núncio tem um papel importante de mediação.
Quando no país há liberdade de expressão, de culto, respeito à moral, às leis que dão todas essas garantias, não há dificuldade, porque o poder político tem seus organismos para resolver os problemas que afetam as leis.
Mas em países ou em períodos difíceis nos quais os governos não respeitam ou não dão suficiente liberdade de expressão ou de culto, de religião, de direitos humanos, pode se constituir uma tensão com a Igreja, que luta pela justiça, pela liberdade, que defende os princípios morais em todos os campos.
Aí podem surgir fricções, problemas, e cabe ao Núncio intervir para mediar um trabalho de solução.
AE: V. Exa. exerceu cargos diplomáticos em vários países. Que peculiaridades vê na religiosidade do povo brasileiro e quais as analogias e contrastes com as igrejas particulares desses outros países?
DLB: Posso garantir que há no Brasil uma religiosidade popular muito profunda. Eu venho da Índia, local de minha missão anterior, um país cujo povo é profundamente religioso. É realmente lindo ver na Índia o patrimônio mundial de espiritualidade.
Mas aqui no Brasil o povo é religioso em todos os níveis. Naturalmente, sempre há uma parte, uma minoria, que classificamos como agnóstica. Mas as pessoas são muito piedosas.
Talvez possamos dizer que é preciso purificar umas tantas expressões de religiosidade, dar-lhes mais conteúdo, menos emoções, mas o conjunto é positivo.
AE: Quais os desafios que a Igreja do Brasil enfrenta na atualidade? Que respostas ela tem dado a esses problemas?
DLB: Os desafios são os da evangelização, frente a problemas que não são apenas brasileiros, mas mundiais: secularização, consumismo e seus efeitos na vida de todos os dias. Para enfrentá-los, a Igreja está atualizando dia após dia, ano após ano, seus programas de evangelização.
Ultimamente, participei da Assembleia da CNBB em Itaici e senti vivamente que os Bispos estão trabalhando, atualizando-se dia a dia, e sentem com o povo de Deus, acompanham com programas que se referem, sobretudo, ao anúncio do Evangelho dentro de um contexto concreto, e tocam todos os aspectos, entre os quais o social, o cultural e o político.
AE: Como V. Exa. sintetizaria os 25 anos do Pontificado do Papa João Paulo II? Quais os traços da personalidade do Papa que V. Exa. pessoalmente mais admira?
DLB: Quanto à História, é certo que ele será declarado João Paulo II, Magno. Isto me parece muito claro.
Podemos dizer que ele chocou profundamente a História nesses 25 anos, com uma personalidade extraordinária, e deu rumo ao terceiro milênio, o qual está sintetizado na sua Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte. Poder-se-ia dizer que ela é a síntese de todo o seu pontificado, projetada no mundo.
Vejamos primeiro o trabalho desenvolvido por ele no campo doutrinário, como mestre: quatorze encíclicas magistrais, nas quais se encontra tudo, além de todas as outras cartas e escritos que ele nos deu.
Uma produção muito vasta de caráter doutrinal. É como numa orquestra, onde todos os instrumentos tocam notas de diferentes acentos de tudo o que é a vida do homem.
Depois, suas viagens. É um Papa evangelizador, que visitou 145 nações de todos os continentes. Ele foi ao Norte, Sul, Leste e Oeste. Impressionante! Ele queria dar muita importância também à sua presença física, por isso viajou tanto.
E, podemos dizer, é o Papa dos Santos, dos Beatos. Ele insiste muito sobre o testemunho dos Santos, que são modelos para os cristãos. Essa focalização do Papa, dando ênfase aos Santos, diz-nos: “Esta é nossa História.”
E não é, então, só Cristo – que é naturalmente o centro de nossa Fé – mas é uma história que continua. O modelo Cristo, e outros modelos que se referem a Cristo, nos encorajam muito mais a viver a fé de Cristo na nossa vida pessoal.
Outro aspecto é o da fé que se incultura. Quando a Igreja nos mostra um Santo, mostra-nos não só uma imitação perfeita de Cristo, mas também a inculturação de Cristo naquele povo, com sua língua, com seus costumes.
Isso é a grandeza da Igreja. E o Santo Padre quer mostrar essa realidade que toca profundamente todos os povos da terra.
AE: O senhor gostaria de dizer uma palavra sobre o aspecto mariano e a devoção eucarística do Papa?
DLB: Em primeiro lugar, ele tem uma devoção muito grande, uma fé profunda na Eucaristia.
Memorável também é o fato de que, a partir de seu primeiro ano de pontificado, ele passou a enviar uma carta toda Quinta-Feira Santa aos sacerdotes do mundo inteiro. Escolheu o dia do sacerdócio, da Eucaristia, o que é muito significativo.
Todo mundo conhece quanto o Santo Padre tem devoção a Nossa Senhora. Uma devoção robusta, vigorosa, fundamentada na Teologia, numa grande espiritualidade, que é, sobretudo, aquela de Grignion de Montfort.
Este aspecto poderia ser interpretado como uma dificuldade para o ecumenismo. Aconteceu exatamente o contrário!
Seu vigor, sua robustez doutrinal e devocional de espiritualidade, deu maior impulso à devoção a Nossa Senhora e foi compreendida melhor por parte de nossos irmãos cristãos que não têm essa devoção.
AE: V. Exa. gostaria de enviar uma mensagem aos leitores de “Arautos do Evangelho”?
DLB: A Boa Nova é o anúncio de Jesus Cristo. Esse anúncio é a proclamação de uma Pessoa, e não de uma filosofia, de uma ideia.
Uma Pessoa humana-divina, que faz história e compreende o homem na sua totalidade, seja como indivíduo, como sociedade, ou humanidade. E entra na História para sempre. É o Filho de Deus Encarnado.
Donde a necessidade de que nós, que recebemos sua mensagem e somos seus discípulos, preguemos a doutrina de Jesus Cristo, e não nossa ideologia, nossa doutrina ou nossa interpretação.
Essa doutrina está contida no Depósito da Fé, vem dos Apóstolos – porque eles foram as testemunhas – até hoje pelo Magistério da Igreja.
Magistério que não é para cortar, diminuir a palavra de Deus, a inspiração do Espírito Santo, mas para ajudar todo o povo de Deus – não só os intelectuais, os teólogos – mas também a gente muito humilde, a guardar, a conservar a fé.
E, dado que a Igreja é uma grande família, é preciso que alguém acompanhe essa família como um pai e que cada um de seus membros seja satisfeito e tenha a fé garantida.
Alguns são mais inteligentes, mais cultos e, naturalmente, podem compreender mais. Outros são menos capazes, compreendem menos.
Por isso a Igreja leva esse patrimônio da fé lentamente, para que ninguém perca a fé, mas, pelo contrário, todos possam conservá-la e ampliá-la por seu conhecimento e sua prática quotidiana.
Às vezes há essa lamentação de que a Igreja deve avançar. Avance… avance, mas respeitando aqueles que têm as pernas mais curtas. Precisamos ir todos juntos.
Essa a importância de que a fé seja conservada. Os apóstolos foram instituídos para esse papel, para serem mestres da fé.
O anúncio de Jesus Cristo deve ser feito com toda a força e o entusiasmo que o cristão – segundo seu carisma, segundo seu ministério – possa desenvolver e possa dar.
Constituirá parte da invenção, da criatividade e da imaginação de cada pessoa, de cada grupo, poder se desenvolver dentro dessa harmonia, que é a própria Igreja, garantindo sempre uma multiplicidade de carismas para a evangelização, junto com os ministérios da fé.
“Que todos sejam um”. A Igreja é uma. Que cada um tenha sua individualidade e seus dons, mas dentro da Igreja, na unidade, em comunhão com os pastores, que são os primeiros responsáveis, e os pastores juntos com o Papa, e aí o povo de Deus caminhando.