A piedade católica sempre deu a Cristo o título de Rei e, há quase um século, o último domingo do Tempo Comum está destinado a honrá-Lo sob essa invocação.
Ora, cabe perguntar-se, Nosso Senhor é Rei em sentido simbólico ou em sentido real? Trata-se de um simples título honorífico que a devoção dos fiéis Lhe atribui para ressaltar sua grandeza? Ou é uma dignidade merecida e conquistada?
Estas considerações precisam estar claras em nossa mente para conhecermos bem este aspecto da magnificência de nosso Divino Redentor.
Assim crescerá nosso amor para com Ele e poderemos honrá-Lo adequadamente, não só com os lábios, mas também com o coração.
Rei e Sacerdote enquanto Homem
Sabemos pela Sagrada Escritura que Deus é o soberano de todos os povos e nações pelo simples fato de ser o criador, sustentador e governador de tudo quanto existe. “O Senhor é o Altíssimo, o temível, o grande Rei do universo” (Sl 46, 3) – canta o rei e profeta Davi.
Sendo Jesus Cristo Deus, Ele tem, portanto, “soberania sobre todas as criaturas, não arrancada à força, nem recebida de outrem, mas em virtude de sua própria essência e natureza”.1 Não cabe dúvida alguma sobre isto.
Poder-se-ia, entretanto, objetar que Jesus Cristo, sendo Deus, não é com toda propriedade Rei dos homens, pois é próprio de um rei ter a mesma natureza dos seus súditos.
Assim, o leão pode ser rei dos animais, mas não das plantas. Objeção falha, porque Ele assumiu a natureza humana, ao encarnar-Se no seio puríssimo da Virgem Maria. É verdadeiro Deus e verdadeiro Homem.
“Cristo foi constituído Rei e Sacerdote enquanto Homem”,2 explica Santo Agostinho.
E o próprio Verbo Encarnado revelou esta dignidade perante Pôncio Pilatos. “Tu és Rei?”, perguntou o iníquo juiz. “Tu o dizes, Eu sou Rei. Para isto nasci e para isto vim ao mundo, para dar testemunho da verdade” (Jo 18, 37) – respondeu Jesus.
Esta afirmação encerra uma riqueza singular, própria da grandeza do Homem-Deus, que a teologia católica vem explicitando progressivamente ao longo dos séculos.
Rei pela união hipostática
Canta o salmista: “No dia de teu nascimento, já possuis a realeza no esplendor da santidade; semelhante ao orvalho, Eu Te gerei antes da aurora” (Sl 109, 3).
E isto porque Nosso Senhor tem a realeza sagrada desde seu nascimento, como anunciou também o profeta Isaías: “Um menino nos nasceu, um filho nos foi dado; a soberania repousa sobre seus ombros, e Ele Se chama: Conselheiro admirável, Deus forte, Pai eterno, Príncipe da paz” (9, 5).
Vemos aqui a primeira razão pela qual Nosso Senhor Jesus Cristo é Rei.
Desde o momento em que foi concebido, sua humanidade santíssima está unida à Segunda Pessoa da Santíssima Trindade; por esta união, denominada união hipostática, Jesus é Deus e Homem, com duas naturezas e uma só Pessoa.
Como comenta o Doutor Angélico, “a humanidade de Cristo, segundo as condições da sua natureza, não tem a glória ou as honras da divindade; tem-nas, porém, em razão da Pessoa a que está unida”.3
Esta união Lhe confere a primazia sobre todos os homens, bem como a dignidade real.
Explica um antigo escritor grego: “Já que o Verbo Se uniu à carne segundo a hipóstase e experimentou o nascimento carnal de uma Virgem, foi constituído Rei e Senhor de tudo quanto existe no Céu e na Terra”.4
E Santo Agostinho acrescenta: “Verbo de Deus, que domina sobre todos os Anjos, e Verbo que assume nossa humanidade, com o fim de governar todos os homens com vistas a fazê-los reinar com Ele na paz eterna”.5
Rei por direito de conquista
Entretanto, para que fosse completa a glória de Nosso Senhor Jesus Cristo como Filho do Homem, não quis Ele ser Rei somente por sua Encarnação, mas decidiu conquistá-lo por meio da Redenção.6
São Paulo comenta em suas cartas este segundo aspecto da realeza do Divino Redentor:
Aquele que fora colocado por pouco tempo abaixo dos Anjos, Jesus, nós O vemos, por sua Paixão e Morte, coroado de glória e de honra. Assim, pela graça de Deus, a sua Morte aproveita a todos os homens” (Hb 2, 9).
Escreve ainda: “Para isso é que morreu Cristo e retomou a vida, para ser o Senhor tanto dos mortos como dos vivos” (Rm 14, 9).
E na Epístola aos Filipenses encontramos um hino que tem como intenção primordial “afirmar a exaltação de Jesus como Senhor”:7 Cristo,
sendo exteriormente reconhecido como Homem, humilhou-Se ainda mais, tornando-Se obediente até a morte, e morte de cruz.
Por isso Deus O exaltou soberanamente e Lhe outorgou o nome que está acima de todos os nomes, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho no Céu, na Terra e nos infernos.
E toda língua confesse, para a glória de Deus Pai, que Jesus Cristo é Senhor” (Fl 2, 8-11).
Como se vê, aquele Vir dolorum – Varão de dores – que não Se recusou a descer ao mais extremo limite das humilhações, a ponto de ser flagelado, coroado de espinhos e, por fim, pregado na Cruz como um escravo e criminoso.
Ele foi exaltado até o trono de Deus, à direita do Pai, gozando assim do poder judicial sobre todas as criaturas – Ele mesmo que fora injustamente julgado.8
Nosso Redentor nos resgatou do poder da morte, do pecado e do demônio, constituindo-Se Rei e Senhor. O próprio Jesus nos ensina esta verdade numa parábola, afirmando ser Ele o homem forte que amarrou o demônio e conquistou a casa (cf. Mt 12, 29; Mc 3, 27; Lc 11, 22).
A partir desse momento não nos pertencemos a nós mesmos, porque Cristo nos comprou por alto preço. Nossos corpos são membros de Jesus Cristo (cf. I Cor 6, 15-20).
Também São Pedro nos recorda: “Vós sabeis que não é por bens perecíveis, como a prata e o ouro, que fostes resgatados, mas pelo precioso Sangue de Cristo, o Cordeiro imaculado e sem defeito” (I Pd 1, 18-19).
“Deus reinará desde o Madeiro”
Um ponto interessante de se notar neste segundo motivo da realeza de Cristo é que, embora esta seja em ordem de importância menor que a de sua natureza divina, foi a que fez resplandecer esta.
Pois, conforme escreve um teólogo contemporâneo,
o reconhecimento de Jesus como o Senhor, o Cristo, e como o Filho de Deus com poder, foi feito segundo um movimento ascendente, simbolizado no mistério da Ascensão: os olhos da fé seguem a elevação de Jesus de Nazaré, o crucificado-ressuscitado, para junto de Deus.9
Quer dizer, considerando a conquista da realeza por meio da Paixão, Morte e Ressurreição, os homens puderam chegar ao conhecimento certo da realeza por natureza divina.
Como bem observa São Beda, “chegava o tempo em que, redimido o mundo por seu Sangue, [Jesus] seria reconhecido como Rei”.10
E Santo Ambrósio,11 comentando a inscrição INRI (Iesus Nazarenus Rex Iudæorum), explica que ela afirma a condição régia de Jesus, sua divindade e seu poder eterno.
E acrescenta que essa inscrição “encontra-se com toda justiça colocada em cima, pois, embora estando na Cruz, o Senhor Jesus resplandecia sobre ela, graças à sua majestade real”.12
Vemos assim que Nosso Senhor quis, entre os incontáveis frutos de sua Paixão e Morte, conquistar a realeza enquanto Homem para a sua divindade ser mais facilmente compreendida pelos homens, como ensina o Catecismo da Igreja Católica ao afirmar que “o verdadeiro sentido de sua realeza só se manifestou do alto da Cruz”.13
Belamente canta esta realidade um dos mais antigos e comovedores hinos da Igreja:
Avançam os estandartes do Rei. O mistério da Cruz ilumina o mundo. Na Cruz, a Vida sustou a morte e na Cruz a Morte fez surgir a vida.
Do lado ferido pelo cruel ferro da lança, para lavar nossas máculas, água e sangue jorraram. Cumpriram-se então os fiéis oráculos de Davi, quando disse às nações: “Deus reinará desde o Madeiro”.14
Plenitude de graça e de verdade
Assim, como chamas de luz que nascem da mesma fonte inesgotável do Homem-Deus e se fundem harmonicamente, encontramos entrelaçados estes dois aspectos da realeza de Nosso Senhor.
Entretanto, esta fonte tem para nos mostrar outras luzes que, embora menos intensas, são ricas em matizes e colorido. Da pluma do Doutor Angélico, analisaremos a seguir mais algumas delas.
O terceiro motivo da realeza de Jesus é uma consequência da união de sua humanidade à divindade, ou seja, da união hipostática. Sendo verdadeiramente Homem, Ele possuía alma humana.
E se todos os homens, ao serem batizados, recebem a graça de Deus, denominada graça habitual, a fortiori a Alma do Divino Redentor não podia estar desprovida de graça, em grau máximo, desde o primeiro instante de sua existência.
Explica São Tomás15que, assim como quanto mais perto estiver de uma fogueira um objeto mais calor receberá, também quanto mais perto um ser estiver de Deus mais graças receberá.
A Alma de Jesus, estando não apenas perto, mas unida a Deus, possuía a plenitude da graça. Santo Agostinho comenta que
neste Senhor e Salvador nosso, Jesus Cristo, está depositada a excelsitude e plenitude da graça, da qual diz o Apóstolo São João: “E vimos sua glória, a glória que o Filho único recebe do seu Pai, cheio de graça e de verdade” (Jo 1, 14).16
Esta plenitude de graças confere-Lhe a supremacia sobre todos os homens, constituindo-O Rei verdadeiro.17 Jesus “é Aquele sobre quem repousa o Espírito de Deus de maneira única, Aquele que traz a salvação definitiva. Ele é o Pastor de Israel para o fim dos tempos”.18
Ademais, Ele constituiu um rebanho ao qual alimenta e guia mediante a comunicação da graça. Afirma São João no prólogo de seu Evangelho: “De sua plenitude todos nós recebemos graça sobre graça” (1, 16), e aqui encontramos a clave de um novo motivo pelo qual Nosso Senhor é Rei.
Jesus Cristo estabeleceu seu Reino, que é a Igreja, onde Ele transmite a graça aos seus membros, por possuí-la em plenitude.
Ele instituiu a Igreja como seu Corpo Místico, conforme nos ensina São Paulo em suas cartas, que a Constituição dogmática Lumen gentium reúne e explica de modo admirável: Cristo,
comunicando o seu Espírito, fez misteriosamente de todos os seus irmãos, chamados de entre todos os povos, como que o seu Corpo. [...] Deste modo nos tornamos todos membros desse Corpo (cf. I Cor 12, 27) [...].
E assim como todos os membros do corpo humano, apesar de serem muitos, formam no entanto um só corpo, assim também os fiéis em Cristo (cf. I Cor 12, 12).19
dos Arautos do Evangelho, Caieiras (SP)
Cristo é nossa Cabeça
Sendo um Corpo, a Igreja conta com uma Cabeça, Cristo. “Ele é a Cabeça do Corpo que é a Igreja”,20 afirma o Concílio Vaticano II. E, segundo São Tomás,21 Ele o é em virtude de sua natureza humana.
Como toda a Igreja é denominada um único Corpo Místico por comparação ao corpo natural do homem, [...] assim Cristo é denominado Cabeça da Igreja por comparação com a cabeça humana.22
– esclarece o Doutor Angélico.
A graça capital é a graça mais elevada, e anterior à nossa, já que todos nós recebemos a graça em função da graça de Cristo; é a plenitude de todas as graças.
Assim, todos os membros da Igreja recebem a graça de Cristo, pois Ele tem o poder de a conferir.23 Cristo “é nossa Cabeça na medida em que possui a plenitude da graça”.24
Além disso, o Catecismo do Concílio de Trento explica que Nosso Senhor
exerce em sua Igreja com maravilhosa providência o ofício de Rei. [...] Ele a defende da violência e da malícia dos inimigos, Ele lhe prescreve leis, Ele dá-lhe não apenas santidade e justiça, mas também virtude e forças para perseverar.25
Portanto, Cristo é o Senhor supremo e Rei da Igreja. Ele a fundou, a governa, fortalece, expande e a conduz rumo à consumação dos séculos.
Jesus, “como Cabeça do Corpo, como Rei do novo Israel, guiará os seus ao Pai e entregará seu reinado ao Deus Trino”.26
Virá julgar os vivos e os mortos
Vemos assim que Nosso Senhor é efetivamente, e não de modo simbólico, Rei de toda a criação. Rei, mas não apenas por ser Deus, senão também enquanto Homem.
Rei desde o primeiro instante de sua concepção miraculosa no seio puríssimo da Virgem, pela riqueza de dons e privilégios de sua Encarnação, como também pelo mérito de sua Paixão, Morte e Ressurreição.
Rei que governa sua Igreja com sabedoria e amor. Rei que no fim dos tempos estará oferecendo e recebendo a glória do Pontífice cujo sofrimento foi aceito, a glória do Rei cujo governo foi bem-sucedido, e a glória do Profeta que previu o que tinha de ser feito e o realizou.
No último dia, Ele julgará os vivos e os mortos e,
restaurada a criação na sua ordem perfeita, Ele a devolverá ao Pai e dirá: “Aqui está o poder que Eu conquistei. Entrego novamente o universo em vossas mãos”.
E, nesse momento, o nosso Rei terá recebido a plenitude da realeza por direito de conquista,27
já que “sua vinda gloriosa no final dos tempos [...] será a manifestação plena do domínio sobre tudo e da vitória sobre o pecado que já alcançou em sua Morte e Ressurreição”.28
Com todo fervor e confiança, peçamos a Cristo Jesus que se estabeleça na Terra o seu Reino, todos os homens reconheçam e proclamem sua realeza, sigam suas leis imutáveis, abracem suas palavras eternas, e possa assim a humanidade inteira cantar com os Anjos e Santos:
Grandes e admiráveis são as tuas obras, Senhor Deus Dominador. Justos e verdadeiros são os teus caminhos, ó Rei das nações!
Quem não temerá, Senhor, e não glorificará o teu nome? Só Tu és santo e todas as nações virão prostrar-se diante de Ti, porque se tornou manifesta a retidão dos teus juízos (Ap 15, 3-4).
1 SÃO CIRILO DE ALEXANDRIA. In Luc., X, apud PIO XI. Quas primas, n. 11.
2 SANTO AGOSTINHO. La concordancia de los evangelistas. L. I, c. 3, n.6. In: Obras completas. Madrid: BAC, 1992, v. XXIX, p. 204.
3 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, q. 58, a. 3, ad 1.
4 ECUMENIO. Comentario sobre el Apocalipsis, 10, 13, apud WEINRICH, William C.; ODEN, Thomas C. (Ed.). La Biblia comentada por los Padres de la Iglesia. Apocalipsis. Madrid: Ciudad Nueva, 2010, v. XII, p. 412.
5 SANTO AGOSTINHO. La catequesis a principiantes, c. XX, n. 36. In: Obras completas. Madrid: BAC, 1988, v. XXXIX, p. 508.
6 Cf. CLÁ DIAS, EP, João Scognamiglio. Rei da eternidade. In: O inédito sobre os Evangelhos. Città del Vaticano-São Paulo: LEV; Lumen Sapientiæ, 2014, v. IV, p. 537-538.
7 SESBOÜÉ, Bernard. Pedagogia do Cristo. Elementos de Cristologia fundamental. São Paulo: Paulinas, 1997, p. 67.
8 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., q. 58, a. 3; q. 59, a. 3.
9 SESBOÜÉ, op. cit., p. 55.
10 SÃO BEDA. Homiliæ genuinæ. L.I, hom.1: ML 94, 12.
11 Cf. SANTO AMBRÓSIO. Expositio Evangelii secundum Lucam. L. X, n. 112-113: ML 15, 1832.
12 Idem, n. 113.
13 CCE 440.
14 BENEDICTINES OF SOLESMES (Ed.). The Liber Usualis. Tournai-New York: Desclée, 1961, p. 575-576. Hino Vexilla Regis, composto no século VI por São Venâncio Fortunato, Bispo de Poitiers. É atualmente rezado nas Vésperas da Semana Santa e na Festa da Exaltação da Santa Cruz.
15 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma contra os gentios. L. III, c. 95.
16 SANTO AGOSTINHO. Enarraciones sobre los Salmos, XVIII, Sermón 2, n. 2. In: Obras completas. Madrid: BAC, 1964, v. XIX, p. 183.
17 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, op. cit., q. 58, a. 4.
18 SESBOÜÉ, op. cit., p. 43.
19 CONCÍLIO VATICANO II. Lumen gentium, n. 7.
20 Idem, ibidem.
21 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, op. cit., q. 59, a. 2.
22 Idem, q. 8, a. 1.
23 Cf. Idem, ibidem.
24 Idem, a. 5.
25 CATECISMO del Santo Concilio de Trento. Parte I, c. 3, n. 7. Barcelona: Imprenta de Sierra, 1833, t. I, p. 34.
26 ADAM, Karl. Cristo nuestro hermano. 5.ed. Barcelona: Herder, 1963, p. 66.
27 CLÁ DIAS, op. cit., p. 540.
28 LADARIA, Luis F. Jesucristo, salvación de todos. Madrid: San Pablo; Universidad Pontificia Comillas, 2007, p. 122.