O estudo piedoso da doutrina católica, mesmo quando todos os esforços da razão humana se vejam superados pela elevação e profundidade dos mistérios divinos, é uma ocasião de progredir na vida espiritual, uma fonte de alegria neste vale de lágrimas e um utilíssimo meio de nos unirmos mais a Deus.
Por isso, no intuito de compreender melhor um tema tão importante como a Transubstanciação, um leitor nos solicitou o esclarecimento de uma dúvida relativa ao artigo O milagre que mais estremece a ordem do universo, publicado na edição de dezembro de 2013, p.18-24, desta Revista.
Tendo em vista que pelas palavras da Consagração toda a substância do pão e do vinho se converte, respectivamente, em toda a substância do Corpo e do Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, pergunta o leitor:
se o termo filosófico de substância compreende também o de matéria-prima, por que permanecem na Eucaristia os elementos físicos e químicos do pão e do vinho, tais como moléculas, átomos, partículas, carboidratos, etc.? Acaso não correspondem eles à matéria-prima, conforme pareceria à primeira vista?
A dúvida é compreensível. De fato, se realizarmos uma análise científica das espécies eucarísticas antes da Transubstanciação, e outra depois, não encontraremos nenhuma diferença entre ambas.
Nelas inclusive permanecem os efeitos próprios à substância do pão e do vinho, pois o primeiro continua a alimentar e o segundo, tomado em grandes quantidades, ainda pode inebriar. Como se justifica isso?
A matéria-prima: fundamento do edifício metafísico
Para responder adequadamente à questão, precisemos antes o significado filosófico de matéria-prima. Uma tarefa complexa…
Explicar o que não se pode ver ou apalpar, ou conhecer por meio dos outros sentidos, seria mais ou menos como um cego de nascença descrever as cores de um belo amanhecer a outra pessoa na mesma situação.
Ou, com toda franqueza, como procurarmos definir a matéria-prima, talvez o conceito filosófico mais difícil de se atingir, por ser tão genérico e abstrato.
Não obstante, se buscarmos com fins didáticos uma analogia, poderíamos dizer que ela, em certo sentido, se assemelha aos fundamentos de um edifício: apesar de não serem visíveis nem separáveis do resto do prédio, sua existência é inegável, pois eles sustentam toda a construção.
A matéria-prima, com efeito, é o alicerce de todos os seres do universo físico, o primeiro elemento de sua composição.
Unida a uma forma substancial, constitui as substâncias materiais – portanto, conforme o leitor acertadamente observou, o conceito filosófico de substância compreende o de matéria-prima, e também o de forma substancial.
Por outra parte, do mesmo modo como as colunas e as paredes de um edifício se erguem do solo tendo os fundamentos como sustentáculo, sobre a substância são acrescentados os acidentes para constituir os seres tais como os encontramos na natureza.
Por exemplo, lembremos que a substância homem não consiste só na alma (a forma substancial), nem apenas no corpo (o qual possui como fundamento a matéria-prima), mas no composto de ambos os elementos.
E, além disso, cada pessoa possui características particulares e não essenciais (os acidentes), como estatura, idade, peso, e assim por diante.
Verifiquemos, a seguir, se há alguma contradição em afirmar que a matéria-prima não permanece após a Consagração, embora não haja no pão nem no vinho alguma mudança de efeitos ou constituição física e química.
Não há contradições na doutrina da Transubstanciação
Pode-se dizer que os elementos químicos – as moléculas, os átomos com suas respectivas partículas, e também os carboidratos, as proteínas, e as gorduras no caso dos seres vivos – constituem a matéria-prima de um objeto?
É compreensível que mais de um leitor, à primeira vista, assim o tenha julgado. Porém, a resposta é negativa.
Alguns autores, com o louvável objetivo de demonstrar a atualidade da filosofia de Aristóteles e de São Tomás, procuraram aproximar os conceitos metafísicos aos da ciência contemporânea.
Entretanto, esse esforço tão bem intencionado não deixou de ser inapropriado, pois a metafísica e a física conformam duas áreas de conhecimento diferentes, embora não haja contradição entre elas.
Seria como tentar vincular a alma humana – uma forma substancial – a algum órgão corpóreo, ou procurar analisá-la sob um microscópio.
Na metafísica, conforme o diz a palavra, estamos diante de realidades além da física, fora do alcance de nossos sentidos, as quais, contudo, não deixam de ser verdadeiramente existentes.
Como os fundamentos de um edifício concluído – os quais só podem ser conhecidos pela análise e pelo exercício da razão, por estarem embaixo da terra –, a matéria-prima não é accessível aos nossos sentidos nem à análise de um laboratório.
Um carboidrato, por exemplo, é algo definido – uma molécula – que possui características e efeitos próprios.
Em sentido diverso, a matéria-prima não tem nenhuma qualidade definida, nem pode ser delimitada ou identificada dentro de um ser; não é sem razão que Santo Agostinho a definiu como “quase nada”.1
Em síntese, não há contradição alguma na doutrina eucarística por se constatar que os elementos químicos do pão e do vinho continuam sem nenhuma alteração depois da Transubstanciação, visto que eles não correspondem à matéria-prima.
Resta-nos verificar, finalmente, como é possível que as espécies eucarísticas continuem com os efeitos próprios da substância do pão e do vinho.
A permanência dos acidentes do pão e do vinho na Eucaristia
Conforme nossos sentidos testemunham, os acidentes do pão e do vinho permanecem na Eucaristia.
Ora, assim como a matéria-prima não pode existir sem estar unida a uma forma substancial e a formas acidentais, também os acidentes não podem subsistir sem uma substância como sujeito ou fundamento.
De fato, quem conseguiria separar um objeto de seu tamanho? Quando muito, é factível alterar suas dimensões ao acrescentar ou diminuir-lhe alguma coisa, mas ficar com o objeto numa mão e seu tamanho na outra é impossível!
Como então se explica a permanência dos acidentes do pão e do vinho sem suas substâncias naturais após a Transubstanciação?
A resposta é simples: por um milagre divino. Ouçamos a explicação do Doutor Angélico:
Os acidentes do pão e do vinho, que os sentidos percebem permanecerem neste Sacramento depois da Consagração, não têm por sujeito a substância do pão e do vinho, que não permanece. […]
Além do mais, é evidente que tais acidentes não têm por sujeito a substância do Corpo e Sangue de Cristo.
Pois, estes acidentes não podem de modo nenhum afetar a substância do corpo humano, como também é impossível que o Corpo de Cristo, que existe de modo glorioso e impassível, se altere para receber tais qualidades. […]
Daí se segue que os acidentes neste Sacramento permanecem sem sujeito. Isso pode ser feito pelo poder divino.2
Entretanto, os prodígios operados na Consagração não terminam com a permanência dos acidentes do pão e do vinho na Eucaristia, pois este Sacramento estremece ainda mais a ordem do universo.
Com efeito, a virtude onipotente de Deus, que primeiro opera o milagre de conservar as espécies eucarísticas após a Transubstanciação, concede aos acidentes a possibilidade de continuar exercendo a ação natural de suas respectivas substâncias:
Na Consagração, assim como a substância do pão se converte milagrosamente no Corpo de Cristo, também por milagre se concede que os acidentes subsistam, o que é próprio da substância, e portanto, que possam fazer tudo e serem passíveis de tudo quanto a substância poderia fazer e ser passível, se aí estivesse.
Por isso, sem um novo milagre podem embriagar e nutrir, apodrecer, serem incinerados, segundo o mesmo modo e a mesma ordem, como se estivesse presente a substância do pão e do vinho.3
Assim como Deus formou o Corpo de Nosso Senhor no seio virginal de Maria Santíssima sem o concurso de um varão, seu poder infinito também pode produzir os efeitos próprios dos seres criados, sem a ação destes.4
É deste modo que os acidentes do pão e do vinho permanecem de maneira milagrosa na Sagrada Eucaristia, continuando a exercer os efeitos de sua respectiva substância.
“Começa, avança, persiste!”
Caro leitor, esperamos que o presente artigo lhe seja útil para esclarecer dúvidas sobre a doutrina da Sagrada Eucaristia. Contudo, também estamos conscientes de que ele pode ter gerado mais interrogações do que respostas…
De fato, os princípios filosóficos e as explicações teológicas servem para nos demonstrar que não há contradições nas verdades da Fé, permitindo-nos aprofundar nossos conhecimentos a seu respeito.
Mas nunca poderão rasgar todos os véus que cobrem os olhos de nosso entendimento, os quais são incapazes de vencer a grandeza e a luminosidade dos mistérios divinos.
É o que nos diz o Espírito Santo através do Eclesiástico: “A ti foram reveladas muitas coisas que ultrapassam o alcance do espírito humano” (Eclo 3, 25).
Entretanto, isso não deve ser motivo para desanimarmos de estudar a doutrina sagrada. Pelo contrário! Esta impossibilidade, tal como as demais adversidades na vida, deve servir-nos de estímulo para progredir, conforme nos aconselha o Doutor Angélico:
No campo das mais altas realidades, é uma imensa alegria poder, humilde e fracamente, perceber alguma coisa. Esta opinião é confirmada pela autoridade de Santo Hilário, o qual, em seu livro sobre a Trindade, escreve a propósito desta verdade:
“Em tua fé, começa, avança, persiste. Por certo, não chegarás ao termo, eu bem sei, mas me alegrarei pelo teu progresso. Quem procura com fervor a verdade infinita, progride sempre, mesmo sem conseguir alcançá-la”.5