Noite de verão na Cidade Eterna. Enquanto todos dormem, um peregrino aproxima-se pé ante pé da entrada da grandiosa Praça de São Pedro.
Na quietude as duas colunatas, que simbolizam os braços abertos da Madre Igreja,[1] parecem mais acolhedoras do que nunca… De repente, o silêncio é interrompido.
Duas vozes, graves e amáveis, se fazem ouvir. Uma diz: “Por acaso pode alguém amar aquilo que não conhece?” A outra responde: “Ama ut intelligas! – Ama e entenderás!”
Quem são os que assim falam?
Dois belíssimos vidros de um mesmo vitral
Na entrada do Vaticano, as balaustradas das duas colossais colunatas dóricas são coroadas com imagens de cento e quarenta Santos que marcaram a História da Igreja.
As duas que fecham esse magnífico cortejo de acolhida são: São Tomás de Aquino, o Doutor Angélico, e São Boaventura, o Doutor Seráfico.
Foram eles contemporâneos, amigos que estudaram na mesma época na Universidade de Paris, e frades de duas Ordens mendicantes fundadas no mesmo século: os dominicanos e os franciscanos.
A Igreja, que tudo realiza com perfeição, com isso quis significar que os dois Doutores – representando um a cabeça pensante da Igreja, e o outro seu coração amante – complementam-se e juntos formam a base da sabedoria que sustenta o edifício da Teologia Católica.
Como explicou Dr. Plinio Corrêa de Oliveira, cada alma “possui uma individualidade pela qual tende a compreender melhor determinadas perfeições de Deus”, e essa excelência “é o objeto do amor especialmente terno, ardente e intenso do homem”.[2]
Assim, cada Santo constitui como que um fragmento de vidro iluminado por determinada perfeição de Deus, enquanto o conjunto de todos eles forma o vitral das excelências divinas, completando assim o “Cristo Total” – segundo a conhecida expressão de Santo Agostinho –, como membros de um só Corpo Místico.
Considerados nessa perspectiva, São Tomás e São Boaventura contemplavam o mesmo Deus, mas por prismas diferentes.
Enquanto o Doutor Angélico olhava para o Criador como a Suprema Verdade cujo conhecimento desabrocha no amor, o Doutor Seráfico O considerava enquanto o Sumo Bem que provoca o nosso amor.
Para o dominicano, o amor nada mais é que a consequência do conhecimento e, portanto, o coração vê-se impulsionado pela mente; para o franciscano, o conhecimento está a serviço do amor.[3]
O amor que vê
Mas, se ninguém pode amar aquilo que não conhece, como pode o conhecimento estar subjugado ao amor?
A essa pergunta, responderia o Doutor Seráfico: quando se trata de realidades que provocam o amor, o próprio ato de conhecer nasce da exigência do amor e, à sua maneira, é uma forma de amor.[4]
Apreender um princípio científico difere de conhecer a pessoa a quem se ama. Neste último caso, o conhecimento resulta tanto mais profundo quanto maior seja o amor, porque o que ama quer conhecer aquele a quem ama.
Tal asserção de nenhum modo nega o valor da razão. Há certos cumes no conhecimento que o intelecto nunca terá a coragem de galgar se não for movido pelo amor.
Por isso os franciscanos, seguindo o exemplo de seu fundador, São Francisco de Assis, e de seu grande Doutor, São Boaventura, podem adaptar o famoso dito de Santo Anselmo – “credo ut intelligam”[5] – e afirmar: amo ut intelligam – amo para entender!
Resumindo, podemos considerar São Tomás como a inteligência que ama, e São Boaventura como o amor que vê!
Até o próprio fim último do homem é considerado pelos dois Doutores por prismas diferentes.
Para São Tomás, a meta suprema para a qual fomos criados consiste em ver a Deus e, nesta visão, encontrarmos a felicidade perfeita. Para São Boaventura, o destino último do homem está em amar a Deus, unir seu amor ao nosso.[6]
Para o Doutor Seráfico, portanto, o homem é um ser destinado a dar uma resposta de amor a Deus em nome de todo o universo.[7]
Essa ideia tem profundas consequências para toda a sua Filosofia. As conclusões que dela tira para a Metafísica, a Antropologia e a Ética escapam ao escopo deste artigo. No entanto, podemos tentar pelo menos vislumbrar algo sobre o método que ele utiliza.
A exemplaridade e a analogia
Para facilitar a compreensão, recorramos ao inspirado pincel de Rafael Sanzio, na sua celebre obra A escola de Atenas, que nos convida a uma reflexão sobre o pensamento humano.
Nela as figuras de Platão e Aristóteles aparecem em destaque entre os grandes mestres da Filosofia grega. Platão, com a mão direita levantada, aponta com o dedo para o mundo do alto, enquanto Aristóteles olha para seu mestre com a mão estendida para as coisas visíveis.
Essas duas atitudes representam duas escolas de pensamento que, sobrenaturalizadas, são como as duas asas com que o homem voa para contemplar a Deus e sua obra: a visão exemplarista e a visão analógica.
Enquanto a primeira, representada no quadro por Aristóteles, visa explicar as realidades do alto a partir da consideração das terrenas, a segunda, tendo Platão por modelo, visa dar razão às realidades terrenas com as do alto.
Embora as duas escolas não sejam excludentes – além de ambas serem características da síntese escolástica –, São Tomás focaliza mais na visão analógica, e São Boaventura, na exemplarista.
Para entender a visão própria ao Doutor Seráfico, convidamos o leitor a uma reflexão,[8] iniciando, segundo seu costume, in principio primum principium: “Começo por invocar o primeiro Princípio, isto é, o Eterno Pai, Pai das Luzes, fonte de todo conhecimento, de toda dádiva boa e de todo dom perfeito”.[9]
Fonte e medida de toda ciência humana
Imaginemos um artista que principia sua obra-mestra. Ele primeiro concebe na mente a cena que deseja pintar. Do mesmo modo, o modelo da obra de arte da criação está no “quadro mental” de Deus Pai.
Mas este não é outro que seu Filho Eterno, porque o Pai, pelo conhecimento que tem de Si mesmo, gera o Verbo, que é a sua perfeita Imagem, em que Ele expressa a Si mesmo totalmente.[10]
Assim como na imagem mental concebida pelo artista está o quadro que ele vai pintar, assim também tudo o que é criado – e tudo o que poderia ter sido criado, mas não foi – existe nesse conhecimento que o Pai tem de Si mesmo, que é o Verbo, sua Arte Eterna conforme a belíssima expressão de São Boaventura,[11] como os exemplares segundo os quais Deus modelou a criação.
É esse Verbo Divino que Se fez carne e habitou entre nós (cf. Jo 1, 14). Por isso, o Doutor Seráfico[12] considera Cristo como a fonte e a medida de toda a ciência humana.
Nas últimas conferências proferidas na Universidade de Paris, ele exprime o fundo de seu pensamento a esse respeito: “Nosso propósito é demonstrar que em Cristo ‘estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência de Deus’ (Col 2, 3)”.[13]
Ninguém pode pretender conhecer nada do que foi criado, se não começa por Aquele por quem tudo foi feito (cf. Jo 1, 3): “Se alguém deseja alcançar a sabedoria cristã, deve começar por Ele”.[14]
A própria consideração das criaturas, para São Boaventura, não pode ser feita sem esse fundo do quadro.
Ele contempla o universo como um livro em que cada criatura é uma palavra que nos fala de Deus, como cópias dos arquétipos encerrados na Arte Eterna, e por isso somente podem ser entendidas no seu conjunto.
Enquanto o filósofo pagão se deixa encantar pela beleza das criaturas, o filósofo cristão as considera como sinais que apontam para a mão criadora de Deus.[15]
Segundo o Santo, portanto, a verdadeira Filosofia não pode começar sem Cristo, que é seu objeto, e não pode terminar sem Ele, porque é seu fim.
Embora ciente da distinção, ele não concebe a possibilidade de uma Filosofia separada da Teologia.
E os grandes mestres da Teologia e de todas as ciências humanas são Cristo, nosso Senhor,[16] e Maria, a Mãe de Deus.[17]
São Tomás adotou o caminho inverso da demonstração filosófica, partindo da observação das realidades visíveis. Com esse objetivo, ele assimilou a filosofia de Aristóteles e logrou com grande êxito explicar as teses da Revelação cristã apoiando-se nessa base racional.
São Boaventura, porém, não aprovou esse método e, certa vez, disse a seu amigo dominicano que este diluía o vinho puro do Evangelho com a água da Filosofia pagã. Respondeu o Doutor Angélico que, na realidade, ele estava transformando a água em vinho.
Por sua vez, conta-se que numa visita a São Boaventura, São Tomás lhe perguntou qual era o livro que ele consultava para produzir tais maravilhas de pensamento. O humilde frade franciscano apontou para um crucifixo.[18]
diante do crucifixo”, por Francisco de Zurbarán
O príncipe dos místicos
No quarto dia da criação “Deus fez os dois grandes luzeiros” (Gn 1, 16) para presidir o dia e a noite. Assim também, no século XIII, Ele iluminou o dia da razão e a noite da contemplação com dois grandes luminares, cujos fulgores atravessaram a História e esclarecem a Teologia católica até os nossos dias.
Enquanto a teologia de São Tomás visa mostrar a demonstrabilidade das teses da Revelação pela luz da razão, São Boaventura é mais ousado em suas pretensões.
Deixemos o Seráfico Doutor explicar o seu programa no início da sua obra-mestra, o Itinerário da mente para Deus:
Convido, pois, o leitor primeiramente ao gemido da oração, feita em nome de Jesus crucificado, cujo Sangue nos purifica das manchas dos nossos pecados.
Que não venha a crer que baste a leitura sem a unção, a meditação sem a devoção, a indagação sem a admiração, a atenção profunda sem a alegria do coração, a atividade sem a piedade, a ciência sem a caridade, a inteligência sem a humildade, o estudo sem a graça divina, o espelho sem a luz sobrenatural da divina sabedoria.[19]
Por sua vez, ele conclui o escrito com estas palavras de fogo:
Se agora procuras saber como isto acontece, pergunta-o à graça e não à ciência, ao desejo e não à inteligência, ao gemido da oração e não ao estudo dos livros, ao esposo e não ao mestre, a Deus e não ao homem, à escuridão e não à clareza.
Pergunta-o não à luz, mas ao fogo que tudo inflama e transfere a Deus com uma unção que arrebata e um afeto que devora. Este fogo é Deus e sua fornalha está em Jerusalém. É Jesus Cristo que o acende com o fervor de sua ardentíssima Paixão.[20]
A teologia de São Boaventura não se separa da contemplação, e por isso poucos têm a coragem de seguir os passos do príncipe dos místicos, na feliz afirmação de Leão XIII.[21]
Com efeito, o Doutor Seráfico recorda, citando o profeta Daniel (cf. Dn 9, 23), que ninguém pode entrar por esse caminho sem ser um “vir desideriorum – um varão de desejos”.[22]
Irmãos gêmeos em Cristo
A despeito de uma aparente contradição, São Tomás e São Boaventura contribuíram juntos para elaborar a síntese perfeita entre razão e Fé que é a glória da Escolástica medieval.
Se o amor à doutrina da Fé os unia, ele não impedia que ambos discordassem nos seus métodos para contemplar a verdade. As discussões entre os dois, porém, cessaram devido a um fato singular.
Certa vez São Tomás fez uma visita a São Boaventura para tratar de alguns pontos de doutrina. Ao chegar, encontrou o frade franciscano em êxtase diante do Crucificado.
Sangue jorrava do costado de Nosso Senhor para a boca de São Boaventura, que o bebia. Desde então, o Angélico nunca mais discutiu com seu amigo, não porque estavam de acordo, mas por respeito a Cristo.[23]
Ambos tinham uma missão profética na História da Igreja: deixar as bases teológicas e filosóficas da doutrina católica, para esta atravessar todas as procelas até o fim do mundo.
Ainda em nossos dias as filosofias modernas e ateias, antes mesmo de nascerem, encontram a sua refutação já escrita pelas sábias penas desses dois grandes Doutores da Escolástica medieval.
Afinal, tal era a união entre ambos que Deus os levou para junto de Si no mesmo ano de 1274. Assim, neste 2024 celebramos setecentos e cinquenta anos da entrada deles na eternidade.
Na bula da proclamação de São Boaventura como Doutor da Igreja Universal, o Papa Sisto V declarou que ele e São Tomás são como “as duas oliveiras e os dois candelabros que se mantêm diante do Senhor” (Ap 11, 4), que juntos “iluminam a Igreja inteira” como “irmãos gêmeos em Cristo”.[24]
E escreve Gilson que
a filosofia de São Tomás e a de São Boaventura se complementam como as duas interpretações cristãs do universo mais abrangentes, e precisamente porque se complementam, não podem nem excluir-se nem coincidir.[25]
De fato, como observa Dr. Plinio, os dois “se completam como as duas partes de uma ogiva”,[26] as quais sustentam a catedral da sabedoria cristã.
(Espanha); ao fundo, interior da Catedral de Notre-Dame, Paris