Encravado entre altas montanhas na região aurífera de Minas Gerais, não muito distante de Belo Horizonte e de Ouro Preto, está o bicentenário Colégio do Caraça, tombado pelo Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, e ponto de convergência de peregrinos e turistas de todo o Brasil.

A origem do nome Caraça se deve ao formato semelhante ao de um rosto, de uma das montanhas da serra.

Sua história tem vínculo com a agitação provocada pela corrida do ouro e o rápido enriquecimento, desde o fim do século XVII, e a concomitante reação das almas sedentas de religiosidade, contemplação e desapego, movimentos que marcam a formação da província mineira.

Recuemos até aqueles tempos coloniais, pouco depois de os bandeirantes paulistas terem descoberto, em abundância, o metal precioso que tanto procuraram.

A situação de Minas Gerais no séc. XVIII

Quando correu a notícia da descoberta do ouro, Minas Gerais recebeu uma verdadeira avalanche de homens, de modo nunca visto antes no Brasil.

Aos poucos, formaram-se arraiais que mais tarde deram origem às primeiras cidades mineiras: Vila do Carmo, Vila Rica, Vila Real de Sabará e São João del Rey, por exemplo. Nessa época foram erigidas as primeiras das inúmeras igrejas barrocas que até hoje existem.

Mas o ambiente selvagem das minas e escavações, somado à “fome do ouro”, levou aquela gente a afastar-se cada vez mais dos preceitos do Evangelho.

Para agravar a situação, havia também a falta de pastores. Muitos religiosos haviam abandonado seus conventos em outras províncias para correr atrás do precioso metal e acabaram se envolvendo nos frequentes tumultos e rebeliões dos aventureiros.

Então, o rei de Portugal proibiu a atuação de ordens religiosas em Minas, apesar de a maioria de seus membros ter permanecido fiel à sua missão.

A ambição, o roubo, o luxo excessivo e a libertinagem surgiam por toda parte, e o clero local pouco podia fazer para frear esses desmandos. 

Porém, nem todos se resignavam com essa situação decadente. De todas as regiões começaram a surgir homens inconformados, ansiosos por se libertarem dos grilhões dessa agitação terrena.

Desejavam para si e para toda aquela caótica sociedade o Reino de Deus, tantas vezes pedido na oração do “Pai Nosso”. Adotaram regimes de vida semelhantes aos dos antigos anacoretas do deserto, do início da Civilização Cristã.

E, como era impossível pôr isto em prática no ambiente comum dos aventureiros, seu primeiro passo foi fugir das incipientes cidades, à procura de um isolamento propício a uma religiosidade ao mesmo tempo mística e ascética.

Surgiram assim os eremitas mineiros, os “irmitoens”, como os chamava o povo, que com suas árduas penitências reparavam perante Deus os pecados dos homens, e com sua vida exemplar substituíam perante os fiéis as ordens religiosas.

O primeiro deles talvez tenha sido o minerador Antônio Pereira, que instalou-se numa gruta-santuário nos arredores de Ouro Preto. Em Macaúbas, Félix da Costa e seus irmãos organizaram o primeiro “recolhimento” para moças.

Em Congonhas do Campo, Feliciano Mendes obteve a cura do corpo e da alma, por meio de um milagre, e passou o resto da vida empenhado em construir o Santuário do Bom Jesus.

Em Caeté, Antônio Bracarena abandonou o mundo, subiu a escarpada Serra da Piedade e edificou no seu topo a ermida de Nossa Senhora.

Entre estes e outros, destacou-se o Irmão Lourenço de Nossa Senhora, vindo da região de Diamantina e do Serro Frio, em busca de refúgio espiritual. 

A serra e o santuário

Algumas léguas ao norte de Mariana eleva-se uma imponente cadeia de montanhas entrecortada por grandes desfiladeiros e numerosas quedas d’água. De seu ponto culminante, o Pico do Sol (2.072 m), pode-se avistar serras e lagos a mais de cem quilômetros.

Na sua base há uma mistura de selva e cerrado onde vivem inúmeros animais, entre os quais gaviões, papagaios, seriemas, lobos-guará, cachorros-do-mato, jaguatiricas, suçuaranas e, às vezes, alguma onça.

Este foi o local escolhido pelo Irmão Lourenço para cumprir seu desejo de construir uma ermida-santuário, onde pudessem viver homens recolhidos, e se formar missionários para evangelizar as cidades.

Primeiro escolheu o terreno, depois recolheu esmolas e conseguiu autorização do Vigário-Geral de Mariana para erigir a igreja. A 10 de agosto de 1774 um padre das redondezas celebrou a primeira Missa naquela região isolada.

O povo começou a ir em peregrinação ao local, e com a ajuda dos romeiros o Irmão Lourenço terminou a igreja, feita de quartzito-cinzento extraído na própria serra. Ele a consagrou a Nossa Senhora Mãe dos Homens.

Por esta época ele já contava com outros companheiros ermitães, que vestiam hábito negro, viviam de esmolas e em castidade perfeita.

Inicialmente, seguiam a Regra de São Francisco, mas depois foi constituída uma irmandade própria, a de Nossa Senhora Mãe dos Homens, com aprovação pontifícia e grande concessão de indulgências.

Junto à ermida foi construído um abrigo, para os romeiros não dormirem “à la belle étoile”.

O zelo e a devoção do fundador transpuseram todos os obstáculos para enriquecer a igreja, e em pouco tempo ela possuía um riquíssimo acervo de paramentos, cristais e pratarias, de tal forma que superava várias matrizes da diocese.

Para decorar os altares, foi contratado o melhor pintor da época, Mestre Athaíde. Em 1792 o Papa Pio VI enviou de presente para a igreja os restos mortais de um soldado romano martirizado, conhecido como São Pio Mártir.

A chegada dessa valiosa relíquia intensificou ainda mais as romarias ao local. Eremitas e fiéis rezavam e se penitenciavam em conjunto, e pediam a Nossa Senhora que tivesse pena daquela pobre humanidade.

Durante longo tempo, Irmão Lourenço pediu ao rei que autorizasse a ida de monges regulares para o Caraça, mas como resposta apenas obteve o silêncio.

No fim de sua vida, a Irmandade havia minguado, os ermitães foram morrendo, as peregrinações tornaram-se raras, só restavam ele e mais dois companheiros.

Pobre Irmão Lourenço! Ele já não era mais que um fraco ancião nonagenário a vagar sozinho pelo claustro abandonado… Em outubro de 1819 estava ele às vésperas da morte e totalmente cego.

O Pe. José Inocêncio, de Catas Altas, o assistiu nos seus derradeiros momentos e descreveu a última noite de vida do velho cenobita:

Desde as 10 horas até quase as 4 da madrugada exclamou o Irmão Lourenço: “É possível que toda a minha vida até agora eu tenha trabalhado para formar este asilo, a fim de virem [monges regulares] missionarem, e eu não tenha podido alcançar [o meu objetivo]… Tudo vai perdido – dinheiro, suor, fadigas e perseguições… Ai, ai, ai, frustradas todas as diligências, perde-se esta obra. Ó Mãe de Deus! Vós conheceis muito bem meus desejos. Por vossa honra e bem da Religião Católica, olhai benigna para esta obra”.

Repetia essas exclamações entre prantos e gemidos. Entretanto, a partir de 4 da manhã ficou em silêncio. No dia seguinte, o Pe. Inocêncio perguntou a ele o que ocorrera à noite. O Irmão lhe respondeu:

Meu pai, meu diretor, […] não ouviu, não percebeu que fiquei calado pelas 4 horas? Falo diante de Deus, que Maria Santíssima me afirmou que não virão os padres [que pedi], mas que hão de vir missionários de outra ordem a serem senhores desta casa.

Pouco tempo depois, faleceu ele, tendo recebido todos os sacramentos, e foi sepultado singelamente naquele vale solitário, onde vivera por mais de quatro décadas, mais perto de Deus que dos homens.

O colégio

Alguns anos antes de morrer, o Irmão Lourenço redigira um testamento doando o Caraça a D. João VI. No ano seguinte ao da morte do eremita, a Congregação da Missão (Lazaristas) recebia do rei a herança.

Numa madrugada chuvosa, partiu do Rio de Janeiro uma caravana com três religiosos destinados a tomar posse do santuário mineiro. Eram eles o Pe. Antô­nio Ferreira Viçoso, o Pe. Leandro Rebêlo de Castro e o Pe. José Mathias.

Durante a viagem um dos burros que levava a bagagem se perdeu da comitiva e morreu atolado, quase pondo a perder o documento real de concessão do Caraça!

Após um penoso percurso cheio de imprevistos, passaram por Mariana, onde receberam a bênção do Bispo D. José da Santíssima Trindade, e pouco depois chegaram ao local, que não era mais que um imenso eremitério abandonado e sem meios de subsistência.

Durante a noite, as aves noturnas faziam assombração nos arredores.

Mas, após receberem uma grande ajuda financeira do Guarda-Mor de Catas Altas, eles decidiram construir lá um educandário com o objetivo de formar homens de valor para a Igreja e para a sociedade.

O Pe. Leandro partiu para o Rio de Janeiro e regressou com a aprovação do ginásio, acompanhado por alguns jovens, mineiros e cariocas, que seriam os primeiros alunos.

Pe. Viçoso, juntamente com Pe. Mathias, organizou os salões e os campos de jogos, e definiu o programa de formação dos rapazes. Nele estavam incluídas muitas aulas, mas também jogos, passeios, natação, montanhismo e, sobretudo, intensa vida de piedade.

Assim nasceu o célebre Colégio do Caraça.

De lá o Pe. Viçoso partiu para outras missões, até ser sagrado Bispo de Mariana. E o educandário crescia cada vez mais, tendo junto a si um florescente seminário.

Décadas mais tarde a velha igreja do Irmão Lourenço ficou pequena para tanta gente, sendo necessário erguer outra maior.

Foi construída então a primeira igreja neo-gótica do Brasil, toda feita com pedras da região: as paredes de arenito, os arcos de pedra-sabão, as colunas de granito, e os altares de mármore de Ouro Preto.

Para abrilhantar as cerimônias, o Pe. Luiz Gonzaga Boavida fabricou um órgão com 700 tubos. E, encantado ao visitar o local, o Imperador D. Pedro II enriqueceu o templo com a doação de um vitral francês. Para completar, importaram-se três rosáceas, também francesas, que foram postas em molduras de pedra sabão. 

Nesse colégio formaram-se milhares de rapazes, dos quais cerca de 500 seriam sacerdotes. Destes, 18 chegaram à sagração episcopal, 2 foram presidentes do Brasil (Afonso Penna e Arthur Bernardes) e vários, governadores de estados.

O desejo do Irmão Lourenço era ter em seu santuário homens que cristianizassem a sociedade. Morreu sem ver seu ideal plenamente realizado, mas Nossa Senhora realizou sobre a obra dele muito além do que ele podia esperar. 

Um incêndio destruiu o colégio em 1968, mas o santuário ainda existe, e quem passa por lá ainda sente o ambiente cheio de bênçãos, no qual, em meio ao canto longínquo das seriemas, soa ainda o sino do vetusto campanário, chamando todos para o Ângelus.