Ao amanhecer, saímos de Santiago rumo à cidadezinha de Colina, situada 30 quilômetros ao norte.

Não para um passeio dominical qualquer, mas para participar de uma das mais antigas festividades religiosas populares do país, a Festa do Cuasimodo, uma procissão eucarística realizada anualmente, no domingo seguinte ao da Ressurreição. 

Seu peculiar nome – um pouco estranho para ouvidos brasileiros – é formado pelas duas palavras iniciais da antífona de entrada da Missa desse dia: Quasi modo geniti infantes (como meninos recém-nascidos).

Nesse dia especial, centenas de huasos (cavaleiros típicos da região) montados em belos cavalos equipados com suas melhores selas, saem para correr a Cristo – segundo a pitoresca expressão dos camponeses locais.

Acompanham o Pároco que vai levar a Comunhão aos enfermos e aos idosos que não puderam recebê-la nas celebrações da Semana Santa. 

Quando chegamos, antes das sete da manhã, enormes filas de ginetes cuasimodistas tornavam difícil a movimentação pelas ruas e os policiais já tinham desviado o trânsito nos arredores da Paróquia da Imacula da Conceição, uma das mais antigas do país, instalada em 1576.

A cidade inteira está presente. Ninguém quer perder a saída do Cuasimodo da igreja. As mães comparecem com seus filhinhos trajados de cuasimodistas. Desde a infância, eles começam a participar da procissão, cavalgando ao lado de seus pais e irmãos. 

Suas origens 

Embora a tese mais comumente aceita seja a de que o Cuasimodo teve suas origens na época da colônia, não há fontes escritas precisas que a comprovem.

Só se conhece uma crônica do jornal “El Mercurio”, de Valparaíso, publicada em 1841, na qual se afirma que esta festa já era conhecida no primeiro quartel do século XIX.

De acordo com a tradição oral, originou-se ela do zelo de alguns sacerdotes dominicanos que – montados a cavalo e portando sob o poncho o Santíssimo Sacramento – saíam para levar a Comunhão aos enfermos dispersos pelos campos, durante o tempo de Páscoa.

Os cavaleiros da escolta serviam para indicar os caminhos a percorrer e, eventualmente, proteger o sacerdote de assaltos durante o trajeto. 

O Vestuário

O traje típico do cuasimodista é muito simples. Sobre uma camisa xadrez, uma jaqueta curta enfeitada com fileiras de botões nas mangas e nas costas.

Na cintura, uma faixa de vários metros de comprimento, geralmente de lã vermelha, que cinge o corpo do huaso e termina numa artística ponta em franjas, caindo ao longo da perna.

A calça castellana, negra com listras brancas, e as polainas protegem o cavaleiro dos arranhões nas cavalgadas pelos bosques.

Nos pés, sapatos pretos de salto alto, ao qual se prende a espora de prata, adornada com grandes rodas, as quais o huaso agita com habilidade e maestria, produzindo melodiosos sons.

Como o huaso não usa chapéu, por respeito à Sagrada Eucaristia, ele cobre a cabeça com um lenço de cetim branco com ornamentos dourados.

Sobre as costas e o peito lhe cai uma capa curta das mesmas cores, adornada com o Escudo do Chile ou os símbolos do Santíssimo Sacramento.

Inicia-se a procissão 

Diante da Matriz, uma carruagem de cor creme claro, revestida interiormente de tapeçaria branca, aguarda a chegada do sacerdote com o cibório contendo as Hóstias consagradas para Comunhão dos anciãos e enfermos previamente recenseados pelos mesmos cuasimodistas que indicarão o percurso da coluna de cavaleiros. 

Às sete e meia da manhã, apeiam-se vinte huasos que compõem a guarda pessoal do sacerdote, cada um com uma bandeira chilena na mão, formando rapidamente um arco de bandeiras sob o qual este, depois de saudar a multidão presente, avança em direção à carruagem. 

Neste ano a procissão se encontra a cargo do Pá­roco de Colina, Pe. Sergio de la Maggiora. 

Ao tilintar dos sinos portados pelos cuasimodistas tem início a marcha. Primeiro ao trote, depois ao galope, avançam cerca de 1500 cavalos, fazendo tremer o solo por onde passam, montados pelos corredores de Cristo, os custódios de Jesus Sacramentado.

Saindo pela Avenida San Martín, a grandiosa procissão de cavaleiros faz uma pequena parada na capela Santa Maria, nas imediações da cidade.

Logo retoma a marcha e, sempre a galope, entra no povoado de Esmeralda, cujas ruas estão adornadas com guirlandas de papel branco e amarelo. Uma grande quantidade de fiéis se persigna e se ajoelha à passagem do Santíssimo.

Em cada local onde há enfermos para comungar, está montado um pequeno altar encimado por um arco de folhas de palmeiras em cuja esmerada confecção se revelam o engenho e o fervor dos camponeses.

A procissão se estende por mais de oito quarteirões, é impossível que todos os seus participantes assistam a cada cerimônia de Comunhão.

Assim, eles são divididos em grupos, de acordo com as respectivas irmandades. O grupo que assiste a uma cerimônia passa da frente para o final do cortejo, dando lugar ao grupo seguinte.

É impressionante ouvir o ressoar de todos aqueles cascos sobre a terra e presenciar a fé e devoção com que esses camponeses desempenham seu papel de escoltar Nosso Senhor Sacramentado. Durante todo o percurso, refulge em seus olhos a alegria de ser católico.

A festa do Cuasimodo não tem cânticos próprios, mas sim proclamações de trechos da Liturgia, como os seguintes: 

“Santo, Santo, Santo, é o Senhor Deus dos Exércitos; os céus estão cheios da majestade de sua glória”. – “Glória ao Pai, glória ao Filho, glória ao Espírito Santo”. 

Deixando o povoado de Esmeralda, a procissão segue por precárias estradas rurais até a capela de Rosário Sul, outra localidade próxima. Depois de um pequeno descanso, continua a galopada rumo a numerosos outros lugarejos onde o Rei dos Reis vai ver os lares e os corações de seus filhos anciãos e enfermos.

O dia foi exaustivo para todos os ginetes, e um certo cansaço reflete-se nos seus rostos curtidos pelo sol. Porém, esses homens acostumados ao duro trabalho do campo ainda têm ânimo para encerrá-lo com chave de ouro.

São quase cinco horas da tarde quando a comitiva chega à Medialuna de Colina, ampla esplanada onde se realiza o ato culminante da festa do Cuasimodo: a celebração da Eucaristia, presidida pelo Arcebispo de Santiago, Cardeal Francisco Javier Errázuriz. 

Com a celebração da Missa, terminou a esplendorosa festa. Como os demais participantes, afastamo-nos lentamente, já saudosos dessa manifestação de fervor e beleza.

Assim como o Cuasimodo nos convida a correr a Cristo, proclamando a fé na presença real de Jesus na Eucaristia, corramos nós também para junto d’Ele, busquemo-Lo, acompanhemo-Lo e permaneçamos a seu lado até o dia em que possamos vê-Lo face a face no Céu.


1 Discurso sobre la religiosidad popular y devoción mariana, La Serena, 5/4/1987.