São Luís Maria Grignion de Montfort dedicou sua curta vida – faleceu aos 43 anos – a pregar missões à população rural do oeste da França.
Essa grande nação, que outrora brilhara pela piedade mariana, encontrava-se, então, devastada pela heresia jansenista, a qual se empenhava em diminuir o fervor na vida religiosa, sobretudo a devoção à Mãe de Deus.
Nosso Santo percebeu o perigo que isso representava para as almas e, com o coração cheio de ardor verdadeiramente profético, começou a pregar uma terna e fervorosa devoção a Nossa Senhora, como perfeito antídoto a todos os males espalhados pela heresia. E quase ao fim de sua vida pôs, por escrito, a substância do que havia ensinado: o Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem.
Apesar de o autor ser, sobretudo, um missionário popular, esta obra – como as outras por ele escritas no seu pouco tempo livre – tem um altíssimo valor teológico, enraizado a fundo nas Sagradas Escrituras, na Tradição da Igreja, nos Santos Padres e nos grandes teólogos medievais e contemporâneos dele. É, de fato, um livro com notas proféticas.
“São Luís Grignion de Montfort foi, neste processo histórico, um verdadeiro profeta. No momento em que tantos espíritos ilustres se sentiam inteiramente tranquilos quanto à situação da Igreja, embalados num otimismo displicente, tíbio, sistemático, ele sondou com olhar de águia as profundezas do presente, e predisse uma crise religiosa futura, em termos que fazem pensar nas desgraças que a Igreja sofreu durante a Revolução [Francesa], isto é, a implantação do laicismo de Estado, o estabelecimento da ‘Igreja Constitucional', a proscrição do culto católico, a adoração da deusa razão, o cativeiro e morte do Papa Pio VI, os massacres ou deportações de sacerdotes e religiosas, a introdução do divórcio, o confisco dos bens eclesiásticos etc. Mais ainda. Para alento e alegria nossa, o Santo profetizou uma grande e universal vitória da Religião Católica em dias vindouros”.1
A voz dos Papas
A obra de São Luís Grignion contou com o aval e o apoio do Magistério da Igreja, sendo recomendada por diversos Papas.
Cingindo-se apenas aos Sumos Pontífices que aprovaram expressamente a doutrina desse grande santo, o padre Nazario Pérez, SJ, menciona o Bem-aventurado Pio IX, o qual em 1853 declarou "imunes de todo erro"2 a totalidade dos seus escritos. E continua:
"Leão XIII, que o beatificou em 1888, concedeu indulgência plenária a quem, segundo a fórmula do Beato Montfort, fizesse ou renovasse a sua consagração a Jesus por Maria no dia da Imaculada Conceição e no dia 28 de abril, festa do Santo; concedeu também indulgências à primeira Confraria de Maria, Rainha dos Corações, que se fundou em Otawa, em 1899.
"São Pio X teve muita estima pelo Tratado da Verdadeira Devoção e confessou duas vezes [...] que se inspirara nele para escrever a Encíclica mariana Ad diem Illum. Concedeu também ‘muito de coração e com vivo afeto a bênção apostólica a quem lesse o Tratado tão admiravelmente composto pelo Beato Montfort'".3 No discurso pronunciado ao conceder o decreto para a canonização do então Beato Montfort, Pio XII o compara ao seu compatriota São Bernardo, "aludindo sem dúvida, nessa comparação, à doutrina mariana".4
Mesa de trabalho de São Luís Maria Grignion de Montfort - Saint-Laurent-sur-Sèvre (França) |
Mais recentemente, o Beato João Paulo II manifestou-se diversas vezes sobre a excelência da espiritualidade desse grande santo. Narra, por exemplo, como lhe foi valioso o encontro com o Tratado num momento de hesitações: "Foi então que veio em minha ajuda o livro de São Luís Maria Grignion de Montfort, o Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem. Nele encontrei a resposta às minhas perplexidades. Sim, Maria aproxima- nos de Cristo, conduz- -nos a Ele, com a condição de que se viva o seu mistério em Cristo. [...] A essência das verdades teológicas nele contidas é irrefutável. O autor é um teólogo de classe. Seu pensamento mariológico está enraizado no mistério trinitário e na verdade da Encarnação do Verbo de Deus. [...]
Assim, graças a São Luís, comecei a descobrir todos os tesouros da devoção mariana, a partir de um ângulo, de certa forma, novo".5
Uma profecia realizada
Porém, como toda obra de Deus, esse livro encontrou a oposição do demônio. O próprio Santo o havia previsto.
São Luís Grignion escreveu o Tratado na fase final de sua vida. Pouco antes de morrer, entregou o manuscrito ao padre Mulot, a quem escolhera como sucessor e executor testamentário. Este conhecia o tesouro que recebera. Os padres da Companhia de Maria se inspiraram nele para suas missões e pregações, mas "não se sentiram com ânimo de publicá-lo, por ser-lhes necessário solicitar o Privilégio do Rei, indispensável para a publicação de qualquer obra", 6 e havia na Corte de Versalhes personagens de alto poder político, relacionados com os jansenistas e jansenizantes, portanto, hostis à Congregação fundada pelo padre Montfort.
Beato Pio IX |
Sobreveio a tormenta da Revolução Francesa, que se manifestou claramente anticristã. Começaram as perseguições e assassinatos de sacerdotes e religiosas. À vista disso, os padres Montfortianos entregaram os objetos de valor existentes em suas casas, entre os quais o manuscrito de São Luís, a uns camponeses, para serem escondidos. Estes os devolveram quando amainou a tempestade revolucionária, em fins do século XVIII.
No dia 22 de abril de 1842 - 126 anos após a morte do Santo -, o padre Rautureau, montfortiano, procurando material para preparar uma homilia, encontrou um manuscrito numa caixa cheia de livros velhos. Ao lê-lo, percebeu o espírito do padre Montfort e o mostrou ao superior, padre Dalin, o qual reconheceu perfeitamente a letra do fundador da Congregação.7
Em princípios de 1843 saiu a lume a primeira publicação do Tratado. Cumpria-se assim uma profecia nele escrita: "Prevejo que animais furiosos se precipitarão para despedaçar com seus dentes diabólicos este pequeno livro e aquele de quem serviu-Se o Espírito Santo para escrevê-lo, ou ao menos para envolvê-lo nas trevas e no silêncio de uma arca, a fim de evitar sua publicação. Inclusive, atacarão e perseguirão aqueles e aquelas que o lerem e procurarem pôr em prática".8
O manuscrito não está completo. Os editores que o estudaram a fundo para publicar as obras completas de São Luís Grignion calcularam que faltam de 84 a 96 páginas no início, as quais versariam sobre o tema da "Preparação para o Reino de Cristo". Julgam faltar também algumas páginas no fim, onde o Autor teria escrito uma "fórmula de consagração" e a "bênção das correntes".9
Devoção cristológica e trinitária
Os primeiros tópicos do Tratado são já um verdadeiro programa que ele desenvolverá ao longo da obra. Parece-nos interessante ressaltar com o padre Alphonse Bossard, SMM, algumas analogias entre esses pontos, o discurso de Paulo VI no encerramento da terceira sessão do Concílio Vaticano II e a Constituição Dogmática Lumen Gentium.
Leão XIII |
Escreve o padre Bossard: "Montfort primeiro vai fundamentar e explicar uma convicção que ele tem como central: já que Deus quis que Maria nos fosse necessária (cf. Tratado, n.1-59), impõe-se a todos uma verdadeira devoção a Ela".10
"Para Montfort, não se pode tratar de pôr em primeiro lugar o mistério de Maria, mas simplesmente de sublinhar que, sem uma referência à sua Mãe, não é possível ter pleno acesso ao mistério de Jesus e vivê-lo. Isso afirmou Paulo VI no discurso de encerramento da terceira sessão do Concílio Vaticano II, ampliando- o ao mistério da Igreja: ‘O conhecimento da verdadeira doutrina católica sobre Maria constituirá sempre uma chave para a exata compreensão do mistério de Cristo e da Igreja'".11
Pouco antes, no mesmo discurso acima citado pelo padre Bossard, ressaltara Paulo VI que a Lumen Gentium "tem como vértice e coroamento um capítulo inteiro dedicado a Nossa Senhora", acrescentando logo a seguir: "Com efeito, é a primeira vez - e dizê-lo enche-nos a alma de profunda emoção - é a primeira vez que um Concílio Ecumênico apresenta síntese tão vasta da Doutrina Católica acerca do lugar que Maria Santíssima ocupa no mistério de Cristo e da Igreja".12
Nesse sentido, afirma o padre Alberto Rum, SMM: "Com o famoso Capítulo VIII sobre Nossa Senhora, o Concílio Vaticano II parece ter confirmado o valor teológico e ascético da espiritualidade mariana de Montfort".13
Ao contrário do que pensam alguns, Nossa Senhora é tema vivo e atuante para o Concílio, como o é também para São Luís Grignion. Observa com acerto o padre Rum: "Para o Concílio, a doutrina mariana não é uma massa errática no mundo da divina Revelação, nem um sistema fechado em si mesmo na ordem da teologia católica, nem um valor à parte na vida do espírito. A presença de Maria é, ao contrário, uma presença viva no Credo, no pensamento e na vida do Povo de Deus [...]. Tratado e Concílio oferecem assim uma mesma e idêntica mensagem mariana". 14 Continua o mesmo autor: "Poder-se-ia dizer que o Concílio retoma em linguagem moderna o pensamento mariano do santo missionário".15
Beato Pio IX,Leão XIII,São Pio X, Pio XII e, muito especialmente,
o Beato João Paulo II deram o aval pontifício à obra de São
Luís Maria Grignion de Montfort
No trecho acima, o padre Alberto Rum parece ecoar estas palavras da Lumen Gentium: "A Igreja, meditando piedosamente na Virgem, e contemplando-A à luz do Verbo feito homem, penetra mais profundamente, cheia de respeito, no insondável mistério da Encarnação, e mais e mais se conforma com o seu Esposo. Pois Maria, que entrou intimamente na História da Salvação, e, por assim dizer, reúne em Si e reflete os imperativos mais altos da nossa Fé, ao ser exaltada e venerada, atrai os fiéis ao Filho, ao seu sacrifício e ao amor do Pai".16
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