Assim como o Divino Mestre, quantos não foram os homens que detiveram a sua atenção sobre um lírio? E por que isso? Muitos diriam que é pelo fato de ele ser belo. Mas, se perguntássemos o que é o belo, muitos não saberiam responder. Embora ao longo dos tempos abundantemente se tenha escrito sobre a beleza, entretanto, não é tarefa fácil explicá-la.
O Doutor Angélico define a beleza com poucos vocábulos: "pulchra enim dicuntur quae visa placent"1. Aquilo que visto, agrada. Com efeito, o belo naturalmente atrai a atenção humana, agrada o intelecto e cativa a vontade. Na Suma Teológica o Aquinense mostra três características fundamentais do pulchrum: claridade, integridade e proporção. "Para a beleza são requeridas três coisas: primeiro, a integridade ou perfeição, pois o que é inacabado, por ser inacabado, é feio. Também se requer a devida proporção ou harmonia. Por último, é necessária a claridade, e daqui decorre que aquilo que tem nitidez de cor seja chamado belo".2
Pulchrum transcendental
No Universo existem graus de bondade e de verdade. Onde há bondade, existe beleza3, bem como verdade4, pois o bonum, o verum e o pulchrum sempre se encontram unidos por serem propriedades transcendentais do ser5.
O pulchrum possui valor transcendental que resulta de sua ligação com o bonum e o verum, pois essas características frequentemente não se encontram separadas6. Elas estão intrinsecamente ligadas ao ser7 e com ele se convertem8. Poder-se-ia dizer que essas propriedades formam como que um arco gótico. Um vértice é o verum, o outro é o bonum, e tal união dá origem ao pulchrum9. Garrigou-Lagrange afirma que o belo é o esplendor de todas as propriedades do ser reunidas: "O belo na ordem criada é o esplendor de todos os transcendentais reunidos, do ser, do uno, do verdadeiro e do bem; ou, mais particularmente, é o fulgor de uma harmoniosa unidade de proporção na integridade das partes (splendor, proportio, integritas, cfr. I, q. 39, a. 8)".10
Ao comentar a beleza no plano ontológico, Molinaro retoma as características dadas pelo Doutor Angélico para explicar por que o pulchrum é uma propriedade transcendental do ser. Segundo este autor, a beleza é uma propriedade transcendental pela perfeita convertibilidade "da unidade como integridade, da bondade como proporção e da verdade como claridade"11. Sendo o ente considerado belo apenas quando é "uno e íntegro, bom e proporcionado, verdadeiro e claro".12 Mondin, ao fazer uma resenha sobre a doutrina da beleza em São Tomás, conclui dizendo que, apesar do Aquinense não haver dedicado uma obra para explicitar que o pulchrum seja um transcendental, pode-se chegar a tal conclusão baseandose em diversos comentários do Angélico sobre o tema: "São Tomás não dedica à beleza a mesma atenção que reserva aos transcendentais da unidade, da verdade e da bondade. De qualquer forma, das suas indicações fragmentadas, é possível reconstruir um quadro muito articulado, claro e definido, do qual resulta que a beleza é uma propriedade transcendental do ser, distinta da verdade e da bondade; está presente universalmente, mas se ensina analogicamente, primeiro de Deus e depois das criaturas; tem como fonte última e universal a Deus, o qual, porém, a distribui também às suas criaturas, e realiza isso de duas maneiras: fazendo-as belas e doando a algumas dessas o poder de produzir coisas belas".13
Das criaturas ao Criador
A respeito da beleza, Platão já discorrera em seu tempo. Para ele, o princípio de uma ascensão à ideia divina de Beleza tem como ponto de partida o amor. É por meio deste sentimento que o homem poderá contemplar as criaturas corpóreas e dar um passo rumo à beleza moral. Atingindo essa beleza posta nos costumes, o homem poderá ascender aos belos ensinamentos - que outra coisa não são, senão a beleza intelectual - para assim chegar à consideração da Beleza em si mesma - a Beleza enquanto tal - da qual as demais belezas particulares não são senão mera participação14. Assim sendo, segundo o fundador da Academia, o homem ascende através de diversos graus que o levam a encontrar e a conhecer belezas superiores, até chegar à Beleza em si mesma15. Ele chega a afirmar que toda participação de beleza contida no Universo tem como modelo essa "Beleza imutável": "O amor conduz o filósofo até a única ciência verdadeira, que consiste na contemplação da Beleza em si, que é uma realidade subsistente, objetiva, transcendente, eterna, imutável, que não nasce e nem morre, autossuficiente, simples, incorpórea, divina e que diviniza ao homem que a possui, vínculo de toda a realidade, modelo do qual participam todas as coisas belas".16
Esse pensamento de Platão é um primeiro esboço, ainda que não inteiramente nítido, da relação da beleza participada com a Beleza subsistente por si mesma. Ao discorrer acerca do pulchrum, Jolivet procura mostrar que nos diversos seres que compõem o Universo existe uma beleza que, necessariamente, possui uma causa única, pois se não existisse uma fonte absoluta de onde ela proviesse, os seres teriam a pulchritude em razão de sua própria natureza. Entretanto, ele diz ser isso impossível, pois se encontram neles diversos graus de beleza. Por isto, conclui-se que necessariamente existe a Beleza em si, que não participa dessa hierarquia das criaturas pelo fato de existir acima delas, sendo a Beleza total, infinita e incriada17: "... os seres que possuem graus desiguais de perfeição não têm em si mesmos a razão última desta perfeição, e esta não pode explicar-se senão por um Ser que a possui absolutamente e essencialmente, enquanto que todo o resto a possui apenas por participação".18
As belezas contidas no Universo nos falam de uma Beleza maior, imutável, mas da qual emanam todas as demais pulchritudes19. Essas belezas mutáveis são apenas reflexos de uma matriz de Beleza de onde elas provêm. Pois toda e qualquer forma de beleza existente no universo só é considerada bela enquanto possui uma certa semelhança com a beleza divina. Se algo no mundo é considerado belo, o é de alguma maneira por ser imagem da beleza do Criador, que ao criar deixou sua divina marca nas criaturas20. Assim como um artista, que ao pintar um quadro ou realizar uma obra de arte, deixa de alguma forma em seu trabalho a marca de sua personalidade, da mesma forma o Divino Artista deixou em suas obras sua divina marca, fazendo que todas as criaturas refletissem, cada uma a seu modo, diversos aspectos de seu Criador.
Desta forma, por meio dos atrativos bons, belos e verdadeiros encontrados na natureza material, podemos elevarnos Àquele que é propriamente o Bem, a Beleza e a Verdade por excelência. O Criador não é belo como as criaturas são belas, pois nelas a beleza se encontra apenas como forma de participação21. Entretanto, nele está de modo irrestrito, substancial e essencial22.
A beleza encontrada na criação convida o homem a pensar nas coisas celestes, leva-o a se interrogar de onde surgem essas maravilhas que encantam os inocentes, e despertam a curiosidade dos sábios. Contemplando a beleza existente no mundo, tendemos naturalmente a transcender a aparência material das criaturas, pois, como nos diz o livro da Sabedoria: "... a grandeza e a beleza das criaturas fazem, por analogia, contemplar seu Autor" (Sb 13,5), "pois foi a própria fonte da beleza que as criou" (Sb 13,3). Não é sem razão que Santo Agostinho, em um de seus sermões dizia: " Interroga a beleza da terra, interroga a beleza do mar, interroga a beleza do ar dilatado e difuso, interroga a beleza do céu, interroga o ritmo ordenado dos astros; interroga o sol, que ilumina o dia com fulgor; interroga a lua, que suaviza com seu resplendor a obscuridade da noite que segue ao dia; interroga os animais que se movem nas águas, que habitam a terra e que voam no ar [...] Interroga todas essas realidades. Todas elas te responderão: Olha-nos, somos belas. Sua beleza é um hino (confissão) de louvor. Quem fez essas coisas belas, ainda que mutáveis, senão a própria Beleza imutável?"23
Notas:
1 S. Th. I, q.5, a.4. 2 S. Th. I, q. 39, a. 8. 3 Cf. S. Th. I, q. 5, a. 4. 4 Cf. STORK YEPES, Ricardo e ECHEVARRÍA ARANGUREN, Javier. Fundamentos de antropologia: um ideal da excelência humana. Tradução de Patrícia Carol Dwyer. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência "Raimundo Lúlio", 2005. p. 215. 5 Cf. BALTHASAR, Hans Urs Von. Gloria: una estética teológica. Madrid: Encuentro,, 2007. p. 318-319. 6 Cf. MELENDO, Tomás. Metafísica da realidade: as relações entre filosofia e vida. Tradução de João Roberto Costa e Silva. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência "Raimundo Lúlio", 2002. p.89. 7 Cf. MARITAIN, Jacques. Sete lições sobre o ser e os primeiros princípios da razão especulativa. 3a. ed. Tradução de Nicolás Nyimi Campanário. São Paulo: Loyola, 1996. p. 73. 8 Cf. São Tomás de Aquino. De veritate, q. 1 a. 1 s.c. 2. 9 Cf. MOLINARO, Aniceto. Metafísica: curso sistemático. Tradução de João Paixão Netto e Roque Frangiotti. São Paulo: Paulus, 2002. p. 90. 10 GARRIGOU-LAGRANGE, Reginald. Perfections Divines. Paris: Beauchesne, 1936. p. 299. Cf. também ELDERS Leo J. La metafisica dell'essere di san Tommaso d'Aquino in una prospettiva storica. v. I. Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 1995. p. 167. 11 MOLINARO, Op. Cit., p. 92. 12 Ibid. 13 MONDIN, Battista. Dizionario enciclopedico del pensiero di San Tommaso D'Aquino. 2a. ed. Bologna: Studio Domenicano, 2000. p. 98. 14 Cf. PLATÃO. Fédon, XLIX, 100. Citado por MANDOLFO, Rodolfo. O pensamento antigo: história da filosofia greco-romana I. T. 1 y 2. 2a. ed. Tradução de Lycurgo Gomes da Motta. São Paulo: Mestre Jou, 1966. p. 13. 15 Cf. PLATÃO. O banquete. Citado por FRAILE, Guillermo, O. P. Historia de la filosofía I: Grecia y Roma. 5a. ed. Madrid: Católica, 1982. p. 354-355. 16 Ibid., p. 326-327. 17 Cf. JOLIVET, Régis. Curso de filosofia. 8ª ed. Tradução de Eduardo Prado de Mendonça. Rio de Janeiro: Livraria Agir, 1966. p. 301. 18 Ibid. 19 Cf. JOLIVET, Régis. Tratado de Filosofia III: Metafísica. 2ª ed. Tradução de Maria da Glória Pereira Pinto Alcure. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1972. p. 260. 20 BRUYNE, Edgar de. L'Esthétique du Moyen Age. Louvain: L'Institut Supérieur de Philosophie, 1947. p. 10. 21 Cf. CLÁ DIAS, João Scognamiglio, E.P. La fidelidad a la primera mirada: un periplo desde la aprehensión del ser hasta la contemplación de lo absoluto. São Paulo, 2008. Tesis de pósgraduación (Humanidades). PUCMM. Facultad de Ciencias y Humanidades.p.148. 22 Cf. TERLIZZI, Padre Francisco M. Breve curso de philosophia: para o uso da mocidade. Roma: Propaganda, 1912.p. 265. 23 Santo Agostinho, Sermão 241, 2.