Não é raro surgirem discussões, às vezes acaloradas, em torno de alguma notícia publicada pela imprensa diária. Uns afirmam ser ela inteiramente falsa, outros asseguram o contrário, os mais moderados opinam que nem tanto assim... Mesmo a propósito de fatos ocorridos ontem, é difícil estabelecer com segurança o limite entre a realidade e a imaginação.
Muito maior é a dificuldade quando se trata de acontecimentos que se deram há séculos. Onde termina o fato histórico e começa a lenda? A propósito de inúmeros episódios registrados pela História, os estudiosos se debruçaram à procura de resposta para essa pergunta, nem sempre com sucesso. Um dos mais interessantes é o dos 72 sábios de Alexandria: um fato real, sem dúvida alguma, mas, em vários de seus pormenores, envolto numa prestigiosa neblina de mistério.
Uma biblioteca de 500 mil livros... incompleta
Três séculos antes da vinda do Messias, os gregos haviam levado a irradiação de sua cultura - e por vezes de suas armas - aos mais diversos pontos da bacia do Mediterrâneo. Nem mesmo o antiqüíssimo reino dos faraós se furtou a essa influência. Eis que até no trono do Egito veio sentar-se um monarca de origem macedônica e educação grega. Seu nome era Ptolomeu II.
A ele se deveu a expansão da monumental Biblioteca de Alexandria, onde se entesourava quase todo o arcabouço de sabedoria da Antiguidade. De fato, o rei se orgulhava de ter mais de 500 mil livros ou rolos de pergaminho em sua formidável coleção, entregue aos cuidados de um sábio de grande fama, Demétrio de Fálaro.
Em uma de suas freqüentes visitas à biblioteca, o rei indagou a Demétrio se faltava à coleção alguma obra de valor para ela ser de fato completa. Este respondeu que faltava o livro da lei dos judeus. "Os que o conhecem referem-se a ele com assombro, pela sabedoria nele contida", informou. E arrematou opinando ser da maior importância a biblioteca real ter em seu acervo tão afamada obra, a qual, inexplicavelmente, ainda não havia sido traduzida para o grego.
72 sábios postos à prova: "São homens inspirados!"
Ptolomeu II ordenou que sem tardança se organizasse uma embaixada a Jerusalém, a fim de obter da mais segura fonte as escrituras sagradas do Povo Eleito, bem como homens capazes de traduzi-las para o grego. Partiu sem demora uma caravana, levando, de acordo com os costumes orientais, suntuosos presentes e uma carta do rei. O historiador Flávio Josefo descreve tudo isso com abundância de detalhes, mas a nós basta saber que após longa viagem os enviados reais chegaram à Cidade Santa, onde o sumo sacerdote Eleazar os recebeu com todas as honras cabíveis.
Este assim agiu movido simplesmente pela forte impressão que lhe causou a portentosa embaixada, ou também por ter intuído no fato algum desígnio sobrenatural? Não se sabe. O certo é que ele deu ordens para atender com presteza e exatidão o pedido do soberano egípcio. Para esse fim escolheu seis dos mais cultos anciãos de cada uma das doze tribos de Israel, dando-lhes o encargo de traduzir para o grego as Escrituras Sagradas.
Por facilidade de expressão, esses 72 sábios passaram a ser chamados de os "Setenta". Partiram eles para Alexandria, levando de presente para Ptolomeu um riquíssimo exemplar dos Livros Santos artisticamente ornamentado.
O soberano recebeu com mostras de grande deferência os ilustres sábios e lhes ofereceu um suntuoso banquete, não só para lhes prestar as convenientes homenagens, mas também como boa ocasião para pôr à prova seus conhecimentos. O rei e eminentes mestres egípcios e gregos tiveram oportunidade de questionar os recémchegados a respeito dos mais intrincados problemas das ciências humanas. As respostas dadas por eles a todos assombraram, tanto pela sua profundidade quanto pela sutileza dos pensamentos expostos.
"São homens inspirados!" - comentavam muitos, tomados de profundo respeito e admiração pelos 72 sábios israelitas.
Trabalho feito no isolamento
Passados alguns dias, Ptolomeu II mandou alojar os doutos tradutores no lugar reservado para seu trabalho: na orla marítima, uma estreita faixa de terra que se alargava mar adentro, formando quase uma ilha. O historiador Flávio Josefo, quase sempre muito prolixo, dá poucos detalhes sobre a construção ali existente. Alguns escritores dizem ser o famosíssimo Farol de Alexandria, uma das maravilhas do mundo antigo. De qualquer maneira, imaginar o imenso farol de mármore branco, rodeado pelas águas azuis do Mediterrâneo, soprado por brisas marinhas e banhado à noite pela luz prateada da lua, certamente comporia um quadro digno para os veneráveis anciãos ocupados em tão ilustre tarefa.
Temeroso de que os Setenta pudessem combinar entre si e subtrair partes de seu livro sagrado ao conhecimento de não-judeus, o soberano egípcio exigiu que eles trabalhassem isolados uns dos outros. Assim, em alojamentos separados, todos eles se debruçaram com zelo sobre os respectivos pergaminhos.
Uma prodigiosa concordância de textos
Ao cabo de um tempo extraordinariamente curto para a conclusão do árduo trabalho, 72 dias - coincidência? - cada um apresentou ao rei sua versão. Era um momento solene. Em companhia de vários mestres e filósofos, Ptolomeu fez uma minuciosa comparação das diversas traduções. Para grande pasmo daquele seleto grupo de eruditos, não se encontrou sequer uma discrepância relevante!
Os próprios sábios israelitas encheram- se de admiração e, vendo nesse prodigioso fato a mão de Deus que os guiara, puseram-se de imediato a render graças ao Altíssimo. E os supersticiosos pagãos foram tomados por um misto de respeito e temor pelo misterioso Deus dos judeus.
Cumprida sua missão, os 72 sábios partiram de regresso à sua pátria, cobertos de honras e veneração. E nada mais se soube deles. Saíram da História do mesmo modo que entraram: envoltos nas prestigiosas brumas do mistério...
Onde termina o fato e começa a lenda?
Acontecimento real ou lenda? No que tem de essencial, fato histórico sem qualquer sombra de dúvida, pois ninguém nega a existência da tradução feita pelos Setenta. Mas, nos pormenores, onde termina o fato histórico e começa a legenda áurea com que ao longo dos séculos o povo admirado e piedoso foi recobrindo esse episódio?
É muito difícil responder com precisão. Mesmo os mais insignes historiadores manifestam- se com prudência a esse respeito, não se arriscando a cortar com uma rude lâmina uma divisão exata, a qual eles bem sabem que sofreria contestações de outros estudiosos. Basta dizer que até mesmo dois grandes luminares como São Jerônimo e Santo Agostinho discordam nessa matéria!...
Um desígnio de Deus: preparar a vinda do Messias
Pode-se perfeitamente, porém, deixar de lado a controvérsia dos sábios e eruditos, e deter-se numa consideração a respeito da qual não há discussão.
Em sua Sabedoria infinita, desde toda a eternidade Deus preparou com incomparável esmero e divino amor a vinda do Messias à terra. Por mais que se sobressaia a portentosa figura de São João Batista, seria mesquinho imaginar que o momento auge da História, a Encarnação do Verbo, tenha tido como preparação somente o envio do Precursor.
Parece evidente que a tradução das Escrituras Sagradas para o grego obedeceu a desígnios divinos. Durante séculos a palavra de Deus havia sido privilégio exclusivo dos filhos de Abraão. Mas já não estava tão distante o momento de se abrirem as portas dos ensinamentos salvíficos a todos os povos, como veio anunciar o Salvador: "Ide, pois, e ensinai a todas as nações; batizai- as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo" (Mt 28,19).
Após a providencial obra dos Setenta, as Santas Escrituras espalharam-se rapidamente por todas as nações, pois o grego era a língua mais difundida no mundo civilizado. Dessa forma, mesmo aos pagãos passaram a ser cada vez mais familiares as idéias e normas morais do Antigo Testamento. A figura de um Messias que um dia viria para salvar o mundo foi pouco a pouco pervadindo os corações...
Nesse sentido, os Setenta tiveram a maravilhosa missão de colaborar na preparação da vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo. A tradução feita por eles foi utilizada pelos próprios Evangelistas. Citando essa versão, palmilharam as estradas os primeiros missionários, e com ela nos lábios enfrentaram a morte os primeiros mártires.
Das páginas da História para as brumas do mito
A tradução dos Sábios de Alexandria foi amplamente aceita pela Sinagoga no tempo anterior a Nosso Senhor Jesus Cristo. Logo, porém, que a Igreja começou a se expandir, vendo que dela se valiam os cristãos em suas disputas teológicas com os escribas e fariseus, estes decidiram desacreditá- la e promover uma nova versão que fosse mais favorável aos seus pontos de vista. Incumbiu-se dessa tarefa um filósofo de nome Áquila, que chegou a receber o Batismo, mas, algum tempo depois, renegou a Fé e tornou-se discípulo do intransigente rabi Akiba.
Uma das novidades foi podar vários livros da Bíblia: Baruc, Eclesiástico, Sabedoria, Tobias, Judite e os dois dos Macabeus, além de parte do livro de Daniel.
Concluída a obra, a tradução dos Setenta passou a ser cada vez mais abandonada pela Sinagoga, ao mesmo tempo que mais usada e estimada pelos cristãos. Em seus estudos e em suas luminosas obras, os Padres da Igreja tinham-na em grande consideração, designando-a pelo nome de Septuaginta ou simplesmente LXX (70, em algarismos romanos).
Após um período durante o qual foi relegada a certo esquecimento, volta agora a versão dos Setenta a adquirir crescente interesse nos meios católicos, ganhando novas traduções e edições um pouco por toda parte.
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Estando de tal modo associados à obra da Salvação, não é surpreendente que os 72 sábios de Alexandria se recusassem a permanecer nas secas páginas da História e cruzassem os umbrais do mistério para desaparecer majestosamente nas brumas da legenda. (Revista Arautos do Evangelho, Out/2005, n. 46, p. 34 à 36)