Na lista dos inúmeros perigos que nossas matas tropicais abrigam, os ofídios ocupam, sem dúvida, os primeiros lugares.
Certas serpentes possuem veneno próprio para levar um homem à morte em poucas horas; outras cobras, mais corpulentas, preferem sufocar impiedosamente suas presas.
Umas e outras nos convidam, naturalmente, a manter distância.
Apesar de nos causar certo choque, a imagem da serpente – evocada pela Liturgia na festa da Exaltação da Santa Cruz – é rica em simbolismo.
Com efeito, trata-se de um animal perigoso e que, curiosamente, está relacionado à medicina, sendo emblemático do poder curativo.
Seu veneno é letal, mas também possui propriedades terapêuticas que, uma vez trabalhadas, são utilizadas como remédio.
Eis a vida e a morte sintetizadas num mesmo animal, qual pedra de escândalo: quem sabe aproveitá-lo obtém elementos para a restauração da saúde; quem se descuida, morre.
Para os israelitas castigados, único meio de sobrevivência
A primeira leitura da Liturgia da Exaltação da Santa Cruz, extraída do Livro dos Números (21, 4-9), aborda um episódio da travessia do povo judeu no deserto rumo à Terra Prometida: “Os filhos de Israel partiram do Monte Hor, pelo caminho que leva ao Mar Vermelho, para contornarem o país de Edom” (Nm 21, 4).
Era uma marcha penosa, por ser um terreno árido, inóspito e sem água.
Além disso, o povo se enfastiara com o maná, o “pão vindo do céu” (Sl 104, 40), que Deus lhes concedia para sustento, fazendo-o chover junto com o orvalho (cf. Nm 11, 9).
E o texto relata que o povo não manifestou apenas inconformidade com a precariedade material, mas “se pôs a falar contra Deus e contra Moisés” (Nm 21, 5a).
Dirigindo-se ao profeta, cobravam-lhe aquilo que exigiriam do próprio Deus, caso O encontrassem: “Por que nos fizestes sair do Egito para morrermos no deserto? Não há pão, falta água e já estamos com nojo desse alimento miserável” (Nm 21, 5b).
Deus, porém, não tolera que haja revolta contra seus mediadores, a ponto de tomar as murmurações do povo como reclamações feitas a Si próprio.
Para castigar os filhos de Israel, o Senhor mandou terríveis serpentes que infestaram o acampamento. Sua venenosa picada causava febre altíssima que matava em pouco tempo, tendo sido grande o número de vítimas.
Depois de ter morrido “muita gente em Israel” (Nm 21, 6), o povo reconheceu nessa calamidade um castigo divino; e, afinal, o medo, que nem sempre propicia a conversão, os levou ao arrependimento. E era este o objetivo de Deus.
Foram eles pedir a intercessão de Moisés, admitindo que o pecado cometido tinha duplo alcance, pois ofendera o Altíssimo e seu representante: “Pecamos, falando contra o Senhor e contra ti” (Nm 21, 7).
Deus respondeu aos rogos de Moisés com a seguinte recomendação: “Faze uma serpente de bronze e coloca-a como sinal sobre uma haste; aquele que for mordido e olhar para ela, viverá” (Nm 21, 8). E não eliminou as serpentes, permitindo que elas continuassem suas investidas contra os hebreus.
Moisés cumpriu a determinação divina, estabelecendo-se a partir de então uma situação de milagre permanente e incontestável diante de quantos haviam assistido a inúmeras mortes produzidas pelas abrasadoras serpentes.
Quem era picado sabia que não existia remédio para o seu mal, e a única chance de sobrevivência estava junto a Moisés, pois o profeta sempre levava consigo o cajado em cuja extremidade fixara a serpente de bronze.
Assim, Deus manifestava empenho em manter o princípio de mediação e fazia os israelitas comprovarem não só sua onipotência e bondade, como também os benefícios de ter um profeta que os guiasse e interviesse em favor deles.
O Divino Mestre utiliza a mesma figura
À luz do Evangelho de São João proposto pela Liturgia desta festa, a imagem da serpente de bronze se reveste de novo colorido, apresentando-se como prefigura da ação redentora de Jesus Cristo na Cruz:
Naquele tempo, disse Jesus a Nicodemos: “Ninguém subiu ao Céu, a não ser Aquele que desceu do Céu, o Filho do Homem. Do mesmo modo como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que o Filho do Homem seja levantado, para que todos os que n’Ele crerem tenham a vida eterna” (Jo 3, 13-15).
Deus quis que este mesmo animal, por cuja sugestão o pecado e a morte se introduziram no mundo, se transformasse em sinal de cura para os filhos de Israel.
Representa, desse modo, o Divino Redentor, que nos traria a verdadeira vida, como se lê no Livro da Sabedoria: “Quem se voltava para ele era salvo, não em vista do objeto que olhava, mas por Vós, Senhor, que sois o Salvador de todos” (16, 7).
Ao contrastarmos a figura com a realidade, veremos que Deus também poderia ter operado a Redenção, eliminando para sempre o pecado e seus efeitos, por uma simples deliberação, sem o concurso de nenhum intercessor.
Todavia, permitiu que os homens continuassem pecáveis, deixando à disposição de todos a possibilidade de encontrar o perdão junto ao “mediador da Nova Aliança” (Hb 12, 24), Nosso Senhor Jesus Cristo.
Por aí se entende por que Simeão, quando recebeu nos braços o Menino Jesus, proclamou que Ele seria pedra de escândalo, pois serviria para a salvação ou condenação de muitos (cf. Lc 2, 34).
Ele é, de fato, divisor. Quem é tocado pelo pecado e O olha, encontra o remédio para seus males. Mas, ai de quem procura a solução fora d’Ele!
Cada um escolhe a serpente que quer
Procurar a solução fora d’Ele… um problema que se agrava entre os homens de hoje.
A bem dizer, é mais comum que se procure a solução tão somente no dinheiro, na fama, nas vãs alegrias mundanas, na paz falsa e ateia – tão pregada e defendida –, na tecnologia – entre outros ídolos de nosso tempo –, do que na Cruz do Redentor.
O Divino Crucificado, a verdadeira serpente de bronze exposta ao olhar de todos há tantos séculos, está para curar almas e corpos; mas hoje é trocada por tantas outras “serpentes” que não podem trazer senão curas falsas ou temporárias.
Entretanto, “Stat crux dum volvitur orbis – Enquanto o mundo gira, a Cruz permanece de pé”. Permanece e permanecerá sempre ostentando a salvação do mundo, Cristo Crucificado.
Como foi outrora a serpente de bronze para os judeus, a Cruz é e será sempre “spes unica” de salvação.