“Fugitiva relinquere et æterna captare”: abandonar as realidades fugazes e procurar capturar o eterno.

Nesta expressão da carta que o vosso Fundador dirigiu ao Abade de Reims, Rodolfo, está encerrado o núcleo da vossa espiritualidade.[1] 

Ou seja, o forte desejo de entrar em união de vida com Deus, abandonando todo o resto, tudo aquilo que impede esta comunhão, e deixando-se capturar pelo amor imenso de Deus, para viver só deste amor. 

Caros irmãos, vós encontrastes o tesouro escondido, a pérola de grande valor (cf. Mt 13, 44-46); respondestes com radicalidade ao convite de Jesus: “Se quiseres ser perfeito, vai, vende os teus bens, distribui-os aos pobres e terás um tesouro no Céu. Depois, vem e segue-Me!” (Mt 19, 21).

Cada mosteiro – masculino ou feminino – é um oásis em que, com a oração e a meditação, se cava incessantemente o poço profundo do qual haurir a “água viva” para a nossa sede mais profunda. 

Mas a Cartuxa é um oásis especial, onde o silêncio e a solidão são conservados com cuidado particular, segundo a forma de vida iniciada por São Bruno e que permaneceu inalterada ao longo dos séculos. “Habito no deserto com irmãos”, é a frase sintética que escrevia o vosso Fundador.[2]

A visita do Sucessor de Pedro a esta Cartuxa histórica tenciona confirmar-vos não só a vós, que viveis aqui, mas toda a Ordem na sua missão, mais atual e significativa do que nunca no mundo de hoje.

Hoje as pessoas vivem imersas numa dimensão virtual

O progresso técnico, nomeadamente no campo dos transportes e das comunicações, tornou a vida do homem mais confortável, mas também mais agitada, às vezes até desordenada.

As cidades são quase sempre ruidosas: nelas raramente há silêncio, porque um barulho de fundo permanece sempre, em algumas áreas até de noite.

Além disso, nas últimas décadas o desenvolvimento dos mass media difundiu e amplificou um fenômeno que já se perfilava nos anos 60: a virtualidade, que corre o risco de dominar a realidade.

Cada vez mais, mesmo sem se dar conta, as pessoas vivem imersas numa dimensão virtual, por causa de mensagens audiovisuais que acompanham a sua vida, desde a manhã até a noite.

Os mais jovens, que já nasceram nesta condição, parecem desejar encher com músicas e imagens cada momento vazio, como se tivessem medo de sentir, precisamente, este vazio.

Trata-se de uma tendência que sempre existiu, especialmente entre os jovens e nos contextos urbanos mais desenvolvidos, mas hoje ela alcançou um nível tal, que se chega a falar de mutação antropológica.

Algumas pessoas já não são capazes de permanecer por muito tempo em silêncio e em solidão.

Quis referir-me a esta condição sociocultural, porque ela põe em relevo o carisma específico da Cartuxa, como um dom precioso para a Igreja e para o mundo, um dom que contém uma mensagem profunda para a nossa vida e para a humanidade inteira.

Eu resumi-lo-ia assim: retirando-se no silêncio e na solidão, o homem, por assim dizer, “expõe-se” à realidade na sua nudez. 

Expõe-se àquele aparente “vazio” ao qual me referia antes, para experimentar ao contrário a Plenitude, a presença de Deus, da Realidade mais real que existe, e que se encontra para além da dimensão sensível. 

Trata-se de uma presença perceptível em cada criatura: no ar que respiramos, na luz que vemos e que nos aquece, na relva, nas pedras…

Deus, Creator omnium, atravessa tudo, mas vai mais além e, precisamente por isso, é o fundamento de tudo.

Deixando tudo, o monge por assim dizer “arrisca”: expõe-se à solidão e ao silêncio para não viver a não ser do que é essencial, e precisamente ao viver do essencial encontra também uma profunda comunhão com os irmãos, com cada homem.

União com a Realidade essencial e profunda

Alguém poderia pensar que é suficiente vir aqui, para fazer este “salto”. Mas não é assim. Esta vocação, como cada vocação, encontra resposta num caminho, na busca de uma vida inteira. 

Com efeito, não é suficiente retirar-se num lugar como este para aprender a estar na presença de Deus.

Assim como no matrimônio, não basta celebrar o Sacramento para se tornar efetivamente um só.

Mas é necessário deixar que a graça de Deus aja e percorrer juntos a cotidianidade da vida conjugal, também o tornar-se monge exige tempo, exercício e paciência, “numa vigilância divina perseverante – como afirmava São Bruno – à espera da volta do Senhor, para Lhe abrir imediatamente a porta”[3]

E precisamente nisto consiste a beleza de cada vocação no seio da Igreja: dar tempo a Deus, para agir com o seu Espírito, e à própria humanidade para se formar, para crescer em conformidade com a medida da maturidade de Cristo, naquela particular condição de vida.

Em Cristo encontra-se tudo, a plenitude; quanto a nós, temos necessidade de tempo para fazer nossa, uma das dimensões do seu mistério. 

Poderíamos dizer que se trata de um caminho de transformação, em que se realiza e se manifesta o mistério da Ressurreição de Cristo em nós, mistério para o qual nos interpelou esta tarde a Palavra de Deus, na Leitura bíblica tirada da Carta aos Romanos.

Com efeito, o Espírito Santo, que ressuscitou Jesus dos mortos, e que dará vida também aos nossos corpos mortais (cf. Rm 8, 11), é Aquele que realiza também a nossa configuração com Cristo, segundo a vocação de cada indivíduo, um caminho que vai desde a pia batismal até à morte, passagem para a Casa do Pai.

Às vezes, aos olhos do mundo, parece impossível permanecer durante a vida inteira num mosteiro, mas na verdade toda uma vida é apenas suficiente para entrar nesta união com Deus, naquela Realidade essencial e profunda, que é Jesus Cristo.

A Igreja necessita de vós, e vós precisais da Igreja

Estimados Irmãos que formais a Comunidade Cartuxa da Serra San Bruno, foi por isto que vim aqui!

Para vos dizer que a Igreja tem necessidade de vós, e que vós precisais da Igreja.

O vosso lugar não é marginal: nenhuma vocação é marginal no Povo de Deus: somos um único corpo, em que cada membro é importante e tem a mesma dignidade, e é inseparável do todo.

Também vós, que viveis em isolamento voluntário, estais realmente no coração da Igreja, e fazeis correr nas suas veias o sangue puro da contemplação e do amor de Deus.

Stat Crux dum volvitur orbis – assim recita o vosso lema. A Cruz de Cristo é o ponto firme, no meio das mudanças e dos transtornos do mundo. A vida numa Cartuxa participa da estabilidade da Cruz, que é a de Deus, do seu amor fiel.

Permanecendo solidamente unidos a Cristo, como ramos à Videira, também vós, Irmãos Cartuxos, estais associados ao seu mistério de salvação, como a Virgem Maria, que junto da Cruz stabat, unida ao Filho na mesma oblação de amor.

Assim, como Maria e juntamente com Ela, também vós estais profundamente inseridos no mistério da Igreja, Sacramento de união dos homens com Deus e entre si.

Nisto vós estais também singularmente próximos do meu ministério. Por conseguinte, vele sobre nós a Santíssima Mãe da Igreja, e o santo Padre Bruno abençoe sempre do Céu a vossa Comunidade.

 

Excerto da Homilia na Celebração das Vésperas, Cartuxa da Serra São Bruno, 9/10/2011.

[1]  Cf. Carta a Rodolfo, n.13.
[2] Carta a Rodolfo, n.4.
[3] Carta a Rodolfo, n.4.