Foi-nos dada a graça de ouvir hoje a parábola do fariseu e do publicano (cf. Lc 18, 9-14). Os dois sobem ao Templo para rezar. O fariseu e o publicano não são eles. Somos nós. E rezar não é para beatos e beatas de trazer por casa.

Rezar é para militares e militantes. Rezar é um ato de verdade e de coragem, que implica o máximo risco. Trata-se, no fortíssimo dizer de Jeremias, de “empenhar [ou penhorar] o coração” (Jr 30, 21).

A linguagem é, infelizmente, bem nossa conhecida. Estamos empenhados. E muitos portugueses já têm a casa e o carro e outros bens penhorados. Sim, mas rezar é ainda mais difícil, e mais belo. Trata-se de penhorar o coração, de “pôr o coração no prego”.

Bem se vê que penhorar o coração é como subir a um poste de alta tensão, onde vemos escrito: “perigo de morte”. É, pois, nesta situação-limite, que são colocados os dois homens de hoje, e nós também.

Esta situação dá às coisas uma seriedade imensa e intensa. Podem ser os últimos cinco minutos da nossa vida.

A oração do fariseu desfaz-se contra as paredes da sua arrogância

Rezar é tanto! O fariseu que há em nós desperdiça esse tempo. Não pede auxílio, não estende a mão; antes, julgando-se o centro do mundo, procede a um estranho ritual de autoincensação, e debita faturas a Deus e insultos aos outros.

A balança do deve e haver com Deus, pensa o fariseu que há em nós, está claramente desequilibrada a seu favor. Aí estão as faturas que Deus terá de me pagar, diz o fariseu que há em mim: “Jejuo ­duas vezes por semana [a lei mandava jejuar uma vez], e pago o dízimo de todos os meus rendimentos” (Lc 18, 12).

Julga o fariseu que há em nós que tem muito crédito acumulado face a Deus.

E, por isso, até se dá ao luxo de dar graças (eucharistéô) a Deus por não ser como os outros, que são ladrões, injustos e adúlteros, nem como este reles publicano (cf. Lc 18, 11), estes, sim, cheios de dívidas para com Deus.

Convenhamos que esta é uma estranha forma de dar graças a Deus, isto é, de “fazer eucaristia”! A oração do fariseu que há em nós não atravessa as nuvens, como a do humilde (cf. Eclo 35, 21). Desfaz-se contra as paredes da sua arrogância.

Ao perdoar, Deus cria um homem novo

Ao fundo, sempre ao fundo, da cena, vislumbra-se um verdadeiro e assumido pecador. Coisa tão rara e, por isso, tão cara.

Sim, este pecador, este publicano, leva a sério a situação-limite que é rezar, que requer a verdade toda. Não vale a pena mentir à beira da morte!

Sim, é um publicano, um cobrador de impostos, coletor de dinheiro público, daí o publicano [do latim publicanus], é um traidor à pátria judaica, um vendido aos invasores romanos, um ladrão. Mas tem ainda coração. Por isso, bate com a mão no peito, e pede a Deus a esmola do perdão.

Conclui Jesus de forma solene: “Eu vos digo: ‘este desceu justificado para sua casa; o outro não’” (Lc 18, 14). Este justificado, no modo passivo, chamado passivo divino ou teológico, diz-nos que esta justificação é obra de Deus, não nossa.

Na verdade, justificar significa transformar um pecador em justo. Então, justificar é perdoar. E, neste profundo sentido bíblico, justificar e perdoar são ações que só Deus pode fazer: “quem pode perdoar os pecados senão Deus somente?” (Lc 5, 21).

Transformar um pecador em justo é igual a criar ou recriar um homem novo. E da ação de criar também só Deus é sujeito em toda a Escritura.

A oração do humilde atravessa as nuvens

O precioso Livro de Ben-Sirá,1 que uma vez mais temos a graça de folhear, ler e escutar, diz-nos que a oração do humilde atravessa as nuvens (cf. Eclo 35, 15-22).

Belíssima expressão que cruza a oração com a palavra fecunda de Deus que, como a chuva, diz-nos Isaías, atravessa as nuvens para baixo, para fecundar a nossa terra (cf. Is 55, 10-11).

Diz ainda o sábio que a viúva, o pobre, o órfão, o humilde não dão descanso ao seu coração em oração, enquanto Deus não olhar para eles com um olhar de bondade (cf. Eclo 35, 21).

É exatamente o modo como reza o publicano: “ó Deus, olha para mim com a bondade do perdão”, com olhar maternal.

Reza então, meu irmão. Como vês, rezar não é para beatos ou beatas de trazer por casa. Rezar é para militares e militantes, pois requer a coragem das situações-limite, podendo, de fato, mudar a nossa vida inteira.

Possamos nós, caríssimos militares, meus irmãos, dizer como São Paulo, na reta final da sua vida: “Combati o bom e belo combate, terminei a carreira, guardei a fé” (II Tim 4, 7). 

 

Excerto de Homilia de 27/10/2013, por ocasião do Dia do Exército – Texto original fornecido pela Diocese – Subtítulos nossos

1 Livro do Eclesiástico, conhecido também como a “Sabedoria de Jesus, filho de Sirac”, por causa do seu autor (nota do editor).