Perguntemos aos homens de nossos dias o que mais anseiam para si e para o mundo, e a maioria certamente responderá: a paz!
Já afirmava Santo Agostinho ser ela “um bem tão nobre que, mesmo entre as coisas mortais e terrenas, não há nada mais grato ao ouvido, nem mais doce ao desejo, nem superior em excelência”.[1]
Entretanto, em especial no último século, o desejo da paz tanto aumentou que tomou contornos diversos.
Bem anelado, mas não alcançado
As duas guerras mundiais deixaram profundas sequelas nos homens, devido à sua violência e capacidade de destruição. Como se não bastasse, terminada em 1945 a mais terrível delas, o comunismo soviético continuou a amedrontar muitos dos povos eslavos e orientais, e o mundo assistiu a novos enfrentamentos, sobretudo na Ásia e na África.
No período que ficou conhecido como Guerra Fria, apesar da aparente ausência de um embate formal, Estados Unidos e União Soviética disputaram uma corrida armamentista que apontava para, mais cedo ou mais tarde, um conflito nuclear de drásticas proporções. Algo semelhante deu-se no limiar do terceiro milênio, com o aparecimento do terrorismo em grande escala.
Não assusta, pois, que o ideal de paz aflorasse como um objetivo a ser alcançado entre os homens, cansados de sangue, morte e destruição.
Que resposta o mundo poderia dar a tais calamidades? Tratados, acordos entre Estados e reuniões dos maiores poderes da terra, com o compromisso de preservar a paz, foram e continuam sendo realizados.
Esses esforços trouxeram, além de alentadora promessa, uma cruciante interrogação: se alcançariam os resultados esperados? Ou seriam vãs tentativas de realizar uma quimera?
Não muito tempo após o início desses fatos, pessoas como o conceituado teólogo dominicano Pe. Victorino Rodríguez já dariam resposta negativa a tais perguntas:
A ONU se constituiu para garantir a paz entre as nações. O ano de 1986 foi proclamado Ano Internacional da Paz.
Contudo, não se alcança a desejada paz; nem a paz messiânica em que germinou o Evangelho, nem a paz octaviana na qual se desenvolveu o Direito; nem quando o poder dissuasório da defesa nuclear parecia bastar para que os homens deixassem de fazer ou fomentar a guerra.[2]
Tamanha era a preocupação mundial, que deram à paz até novos significados, afastados do verdadeiro. Na década de 1960, por exemplo, o movimento hippie ecoava seu mais conhecido lema: “peace and love”.
Habilmente manipulado, tal slogan fazia crer que sua realização consistia na pura ausência de guerra e na plena satisfação dos prazeres carnais.
Diante desse quadro, cabe indagarmos: afinal, como entender a verdadeira concórdia? Como conquistá-la? Deus Nosso Senhor disse: “Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz. Não vo-la dou como o mundo a dá” (Jo 14, 27). Qual é a paz que Cristo nos concede e que o mundo não pode oferecer?
Paz, tranquilidade e ordem
Santo Agostinho define a paz como “a tranquilidade da ordem”.[3] Esses dois elementos se conjugam de maneira estreitíssima. A bem dizer, ambos estão de tal forma vinculados que são praticamente inseparáveis; se dissociados, tendem a tornar-se uma caricatura de si mesmos.
A ordem é a reta disposição das coisas de acordo com a sua natureza e fim. Encontramos uma imagem desse princípio na rica e complexa organização do corpo humano.
Nele todos os sistemas possuem uma finalidade, segundo os órgãos que os compõem; estes, por sua vez, dependem do bom funcionamento dos tecidos e células. Dizemos, portanto, que o corpo humano é ordenado porque suas partes têm uma função e finalidade, que concorrem para o bem do conjunto.
A ordem deve favorecer a tranquila liberdade das partes. Por exemplo, em uma nação na qual os cidadãos são vigiados constantemente e onde o cumprimento da lei é alcançado sob a sombra do medo, há uma ordem violenta e, por isso mesmo, instável. Ela não gera paz, pois lhe falta a tranquilidade.
A verdadeira tranquilidade pode ser definida como a quietude e sossego do ente que se compraz na situação em que está, não por indolência, comodismo ou estagnação, mas porque nela cumpre sua finalidade.
Assim se passa com a inteligência quando conhece a verdade, com a vontade ao possuir o bem, ou com a criança nos braços da mãe, pois “sabe” que suas necessidades serão supridas pelo cuidado materno.
Para constituir genuína paz, a tranquilidade deve provir da verdadeira ordem. Não é à toa que Santo Agostinho definiu a paz como a tranquilidade da ordem. Caso contrário, busca-se a tranquilidade em função de si mesmo e, com frequência, se encontra a tranquilidade na desordem.[4]
Trata-se de uma segurança espúria, uma tranquilidade enganosa, a falsa paz de que falam as Escrituras: a dos pecadores empedernidos que já não sentem a mordedura dos remorsos (cf. Sl 72, 4-9) e exclamam “‘Paz, paz!’, quando não há a paz” (Jr 6, 14).
É este ilusório sossego que reina, por exemplo, numa família em que os pais cedem a todos os caprichos do filho com o mentiroso pretexto de que assim poderão “ter um pouco de paz”[5] ou, no eloquente exemplo dado por Dr. Plinio Corrêa de Oliveira, a pseudopaz do pântano onde, na aparente quietude da água estagnada e podre, regurgitam todo tipo de organismos deletérios.
de São Marcial, Angoulême (França)
A verdadeira paz é fruto do Espírito Santo
A paz autêntica – e, portanto, cristã – só pode ser entendida à luz da divina Revelação. A Santa Igreja sempre recordou a existência dos frutos do Espírito Santo, mencionados por São Paulo na Carta aos Gálatas: “O fruto do Espírito é caridade, alegria, paz, paciência, afabilidade, bondade, fidelidade, brandura, temperança” (Gal 5, 22-23).
Ao agraciar a alma batizada com as virtudes infusas e os dons sobrenaturais, Deus espera dela obras dignas do Céu, o que só é possível com o auxílio do Paráclito. À medida que o batizado deixa-se modelar por Ele, “então se dirá que a ação do homem é fruto do Espírito Santo”.[6]
Emprega-se o termo na Teologia por analogia com a natureza. Assim como o fruto de uma árvore é o que de melhor e mais prazeroso ela produz, da mesma forma o fruto do Espírito Santo é o ato humano que provém do influxo divino e traz consigo certo deleite.[7]
Entre tais frutos, o Apóstolo enumera a paz, antecedida, porém, pela caridade e pela alegria. Qual é a razão dessa sequência?
Frutos dos quais procede a paz
A caridade é a mais importante das virtudes e o primeiro dos frutos, a “fonte e o termo de sua prática cristã. A caridade assegura e purifica nossa capacidade humana de amar, elevando-a à perfeição sobrenatural do amor divino”.[8]
Longe de ser um mero sentimento, ela implica a ordenação do homem para Deus, numa atitude de submissão filial e obediência dócil, conforme ensina Nosso Senhor: “Se Me amais, guardareis os meus preceitos” (Jo 14, 15).
À caridade sucede a alegria pois, segundo o Doutor Angélico, é próprio desta última ser “causada pelo amor, ou porque aquele que amamos está presente, ou porque ele está em posse de seu bem próprio e o conserva”.[9]
Ora, São João afirma em sua primeira epístola: “Quem permanece no amor, permanece em Deus e Deus nele” (4, 16). Pela caridade o Senhor Se faz presente naquele que O ama e lhe concede, assim, a posse do maior dos bens. Logo, a alegria espiritual, fruto do Espírito Santo, deflui naturalmente do amor a Deus.
Só alcançaremos a alegria perfeita no Céu, onde “haverá o gozo completo de Deus, no qual obteremos também tudo quanto poderá ser objeto de nossos desejos acerca dos outros bens”.[10]
Não obstante, nesta vida a felicidade que vem do Espírito Santo dá ao batizado um prelúdio do gáudio eterno. E quando a alegria é plena – na medida em que é possível nesta terra – então se obtém a paz, por duas razões.
Só em Deus o coração humano encontra repouso
Em primeiro lugar, porque a paz supõe “o descanso da vontade na posse estável do bem desejado”.[11] Com efeito, não tem gáudio completo quem está insatisfeito com o objeto que o alegra, e desse descontentamento advém a inquietação interior.
É natural ao homem ter desejos, e nesta vida nunca estaremos livres deles. A experiência cotidiana demonstra que o ser humano nunca se satisfaz com aquilo que tem, seja em relação ao dinheiro, à saúde física ou ao prazer.
Esta situação o põe diante de um dilema: buscar sempre mais os bens terrenos, na ilusão de encontrar o que procura, ou amar o único Ser – eterno e infinitamente bom – capaz de atender em plenitude a todos os seus anseios.
É o que expressa a consagrada frase de Santo Agostinho: “Fizeste-nos para Ti, Senhor, e inquieto está nosso coração até que repouse em Ti”.[12]
Já Isaías aconselhava os seus a esse respeito, dirigindo-lhes as seguintes palavras da parte de Deus:
Por que despender vosso dinheiro naquilo que não alimenta, e o produto de vosso trabalho naquilo que não sacia? Se Me ouvis, comereis excelentes manjares, uma suculenta comida fará vossas delícias. Prestai-Me atenção, e vinde a Mim (Is 55, 2-3).
“Que nada perturbe os vossos corações”
Ademais, a paz que decorre da caridade e da alegria exige “a ausência de agitação”,[13] pois não podemos desfrutar adequadamente de um bem se perturbações de origem interna ou externa nos incomodam.
A vida do homem sobre a terra, todos sabemos, é uma luta constante, cujo embate principal se dá em nosso interior. As paixões nos fazem guerra e, com frequência, não praticamos o bem que desejamos, mas o mal para o qual nos sentimos arrastados.
Por outro lado, no nosso sacrário interior, Deus Se faz presente pela graça e nos adverte pela voz da consciência. As leis do espírito e da carne se digladiam neste campo de batalha que somos nós.
A esse combate se somam as doenças, as adversidades, os desentendimentos e os perigos de toda ordem. Em consequência, com facilidade surgem em nosso interior aqueles sentimentos tão comuns aos homens quando não reagem convenientemente aos infortúnios: cansaço, fastio, desânimo, tédio, depressão e inquietação…
Entretanto, outras são as disposições da alma inteiramente entregue à ação do Espírito Santo. Quem ama exclusivamente a Deus não é perturbado por nada pois, como São Paulo, tudo considera lixo, diante do bem supremo de ganhar a Cristo e ser achado n’Ele (cf. Fl 3, 8-9)
E, no mesmo sentido, canta o salmista: “Grande paz têm aqueles que amam vossa Lei, não há para eles nada que os perturbe” (118, 165). Nada pode perturbar a segurança de quem sabe que está com o Todo-Poderoso: “Se Deus é por nós, quem será contra nós?” (Rm 8, 31).
Objetivo impossível sem a graça divina
Introduzido na ordem sobrenatural, elevado à participação na natureza divina e feito templo da Santíssima Trindade, o batizado deve viver segundo o que esta condição lhe pede. Ora, isso é impossível sem a graça de Deus.
A ordenação interna do batizado está em levar uma vida reta e íntegra, mediante a frequência aos Sacramentos, a oração e as boas obras.
Quando o homem peca e perde a graça santificante, ele estabelece para si um fim ruim, diverso daquele para o qual Deus o destinou. É óbvio que nesse caminho ele não encontrará paz, mas frustração e remorso.
Donde conclui o Doutor Angélico que, “sem a graça santificante, não pode haver verdadeira paz, mas somente uma paz aparente”,[14] pois a graça traz a amizade com Deus.
O coração do ímpio e a paz do justo
A Escritura ilustra bem essa verdade, demonstrando não haver paz para os que estão fora da graça de Deus e violam os seus Mandamentos.
O profeta Isaías descreve com eloquência a perturbação dos que desprezam o Senhor: “Os ímpios são como um mar encapelado, que não pode acalmar-se, cujas ondas revolvem lodo e lama” (57, 20).
O ímpio, porque se faz inimigo do Criador, não pode desfrutar de verdadeira paz. Seus pensamentos são como “um mar encapelado”, onde a traição, o erro e a infâmia são maquinados. E em seu coração, sujo pela maldade de seus crimes, se “revolvem lodo e lama”.
O próprio Senhor dos Exércitos é categórico ao afirmar que “não há paz para os maus” (Is 48, 22).
Por sua vez, o justo desfruta de verdadeira paz mesmo em meio aos tormentos e dificuldades. Isto é causa de desgosto e inveja para seus inimigos, pois não compreendem como pode gozar de tamanha tranquilidade.
As almas dos justos estão na mão de Deus, e nenhum tormento os tocará. Aparentemente estão mortos aos olhos dos insensatos: seu desenlace é julgado como uma desgraça.
E sua morte é julgada como uma destruição, quando na verdade estão na paz! (Sb 3, 1-3).
Cristo, Autor da paz
“Quão belos são sobre os montes os pés do mensageiro que anuncia a paz” (Is 52, 7), exclamava estupefato Isaías séculos antes de o Verbo encarnar-Se.
E São Jerônimo, comentando esse trecho, explica: “Nossa paz é Ele mesmo, que mediante o Sangue de sua Cruz pacificou tudo no Céu e na terra”.[15]
Nosso Senhor é o verdadeiro Autor da paz pois, como afirma o Catecismo
pelo Sangue de sua Cruz, Ele “matou a inimizade na própria carne”, reconciliou os homens com Deus e fez de sua Igreja o sacramento da unidade do gênero humano e de sua união com Deus.[16]
Enfim, Ele nos alcançou a paz com Deus, pagando a dívida que contra nós pesava, conforme exclama São Paulo:
Justificados, pois, pela fé temos a paz com Deus, por meio de Nosso Senhor Jesus Cristo. Por Ele é que tivemos acesso a essa graça, na qual estamos firmes, e nos gloriamos na esperança de possuir um dia a glória de Deus (Rm 5, 1-2).
Se queres paz, prepara-te para a guerra!
Fato curioso, mas inevitável, ao nos propormos a tratar da paz acabamos recorrendo à ideia da guerra. Dois adversários lutam pela hegemonia no coração do homem: de um lado, Nosso Senhor Jesus Cristo propõe a única e verdadeira paz; de outro, o mundo, com suas mentiras e ilusões, busca perdê-lo apresentando-lhe uma caricatura dela.
Contudo, ambos os contendores diferem não só no dom que oferecem, mas também nos meios que empregam para conseguir seu intento. Que caminho sugere o demônio para se obter a paz mundial? E Cristo, quais vias nos proporciona? São questões que responderemos em um próximo artigo.