Encontrava-se um cartuxo, certa vez, cavando no exterior do seu convento quando, inesperadamente, deparou-se com um vulto.

Era o corpo de um monge ali enterrado fazia muito tempo, mas que se conservava incorrupto, como se estivesse vivo, a ponto de haver jorrado sangue fresco dele quando o irmão bateu-lhe com sua pá.

Cheio de emoção, o religioso correu para comunicar o milagre ao padre superior, o qual, sem perder a serenidade, lhe disse: “Voltai a fechar a cova”.1

Tal episódio, que chegou até nós conservando o anonimato de seus protagonistas, bem poderia ter-se dado na Cartuxa onde faleceu seu Santo Fundador – o Êremo de Santa Maria da Torre, na Calábria –, pois faz parte da regra serem enterrados sem mais caixão do que seu próprio hábito e sem mais epitáfio do que uma cruz.

Esta ordem religiosa, fundada por São Bruno em 15 de agosto de 1084, atravessou os séculos sem sofrer mudança nos seus estatutos: “numquam reformata quia numquam deformata – nunca foi reformada, porque nunca foi deformada”.2

Até hoje, seus conventos brilham por uma mesma forma de vida contemplativa, na qual a austeridade da penitência, o silêncio, o trabalho manual e a oração comunitária se fundem, transformando a vida dos seus integrantes num holocausto de agradável perfume que se evola até Deus.

O local onde São Bruno viveu seus últimos anos encontra-se numa região montanhosa, regada por rios e pequenos lagos.

Em certas estações do ano, a neblina e o frio realçam e enaltecem o envolvente mistério do lugar. Dificilmente se encontram no mundo paragens como esta, onde a vontade de voltar o espírito a Deus em oração desponte de maneira tão intensa e profunda.

Nos seus jardins há, sem dúvida, uma discreta ação do Espírito Santo, convidando-nos a elevar a mente rumo às montanhas eternas.

Entretanto, longe de destacar-se do resto da Igreja militante, a Cartuxa da Serra de São Bruno, embebida sobremaneira do carisma de seu fundador, rege a vida da cidadezinha que a circunda, visto que, embora radical no seu afastamento do mundo, a ordem impregna com sua sacralidade os que por ela se deixam influenciar.

É a primeira vez que estais vindo? – perguntou-nos um montanhês da regiãoPois voltareis, porque São Bruno atrai, ele vos puxa!

E assim foi. Apenas alguns minutos de passeio pelos bosques que circundam o mosteiro bastaram para descobrir quanto pode falar o silêncio sem precisar de palavras e quanto a solidão leva a conviver com o próprio Deus.

Neste ambiente pervadido de graças, até o rigor do trabalho e da penitência se dulcifica no contato com o mundo sobrenatural, incomparavelmente superior àquele que apalpamos.

Depois de haver conhecido esta Cartuxa, pudemos compreender melhor as palavras proferidas pelo Divino Mestre: “Maria escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada” (Lc 10, 42)…

As almas que se deixam arrebatar pela contemplação “são a mola oculta, o motor que dá impulso, nesta Terra, a tudo quanto diz respeito à glória de Deus, ao Reino de seu Filho e ao cumprimento perfeito da vontade divina”.3

Uma lápide do museu da Certosa di Santo Stefano, pertencente ao mesmo complexo religioso, resume tudo o que ali se experimenta, numa belíssima frase de São Bruno: “Aqui, pela fadiga do combate, Deus dá aos seus atletas a desejada recompensa, isto é, a paz que o mundo ignora e a alegria no Espírito Santo”.

 


1 BAUMANN, Émile. Comment vivent les Chartreux. Paris: Flammarion, 1936, p. 5.
2 AA.VV. Enciclopedia Universal Ilustrada. Europeo-Americana. Madrid: Espasa-Calpe, 1930, t. XI, p. 1494. Por decreto do Concílio Vaticano II, o Capítulo Geral da Ordem aprovou seus Estatutos Renovados, em 1971, conservando como algo muito sagrado, porém, o retiro do mundo e os exercícios próprios da vida contemplativa (cf. ESTATUTOS DA ORDEM CARTUSIANA. C. I, n. 3. In: www.chartreux.org).
3 GUÉRANGER, OSB, Prosper. Le XXIV Novembre. Saint Jean de la Croix, confesseur. In: L’Année Liturgique. Le Temps après la Pentecote. 5. ed. Paris: H. Oudin, 1902, t. VI, p. 444.