“Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens por Ele amados” (Lc 2, 14).

Essa saudação do anjo aos pastores na noite do nascimento de Jesus em Belém revela uma inseparável conexão entre as relações dos homens com Deus e as suas relações mútuas.

Sem a reconciliação com Deus, sem a harmonia entre o Céu e a terra, não se pode obter a paz na terra.

Essa correlação do tema “Deus” com o tema “paz” foi o aspecto fundamental das quatro viagens apostólicas deste ano. Quero recordá-las neste momento.

Viagem à Polônia: dever de gratidão

Em primeiro lugar, a Visita Pastoral à Polônia, país natal do nosso amado Papa João Paulo II.

A viagem à sua pátria era para mim um íntimo dever de gratidão por tudo quanto ele, durante o quarto de século de seu pontificado, deu-me a mim pessoalmente e, sobretudo, à Igreja e ao mundo.

Seu maior dom para todos nós foi sua fé inquebrantável e o radicalismo de sua entrega. “Totus tuus” era o seu lema: nele se refletia todo o seu ser.

Sim, ele deu-se sem reservas a Deus, a Cristo, à Mãe de Cristo, à Igreja, ao serviço do Redentor e à redenção do homem. Nada reservou para si, deixou-se consumir todo pela chama da fé.

Mostrou-nos, assim, como, sendo homens de nosso tempo, podemos crer em Deus, no Deus vivo que em Cristo Se fez nosso próximo.

Mostrou-nos que é possível uma entrega definitiva e radical de toda a vida e que, precisamente no ato de dar-se, a vida se torna grande e fecunda.

Uma festa de catolicidade

Na Polônia, em todos os lugares por onde andei, encontrei a alegria da fé. “A alegria do Senhor será a vossa força” (Ne 8, 10). Ali se podia sentir a realidade destas palavras que o escriba Esdras, em meio à miséria do novo início, dirigiu ao povo de Israel recém-chegado do exílio.

Impressionou-me profundamente a grande cordialidade com a qual fui acolhido em toda parte. O povo via em mim o Sucessor de Pedro a quem está confiado o ministério pastoral para toda a Igreja.

Via aquele ao qual, não obstante toda a debilidade humana, dirige-se hoje, como outrora, a palavra do Senhor ressuscitado: “Apascenta as minhas ovelhas” (cf. Jo 21, 15-19).

Via o sucessor daquele a quem Jesus disse perto de Cesareia de Filipe: “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja” (Mt 16, 18).

Pedro, por si mesmo, não era uma rocha, mas um homem débil e inconstante. Contudo, precisamente a ele quis o Senhor transformar em pedra, demonstrando que, através de um homem débil, é Ele próprio quem com firmeza sustenta sua Igreja e a mantém na unidade.

Assim, a visita à Polônia foi para mim, no mais profundo sentido, uma festa da catolicidade. Cristo é nossa paz, que reúne os separados: por cima de todas as diferenças das épocas históricas e das culturas, Ele é a reconciliação.

Mediante o ministério petrino, experimentamos essa força unificadora da fé que, partindo de numerosos povos, constrói sem cessar o único povo de Deus. […]

Esplanada de Błonia, Cracóvia - Polônia

Uma Europa que parece querer despedir-se da História

A viagem à Espanha, a Valência, esteve toda voltada para o tema do matrimônio e da família.

Foi belo escutar, ante a assembleia de pessoas de todos os continentes, o testemunho de casais que – abençoados por grande número de filhos – apresentaram-se diante de nós e falaram de seus respectivos caminhos no sacramento do matrimônio e no interior de suas numerosas famílias. (…)

Ante essas famílias com seus filhos, ante essas famílias nas quais as gerações se apertam as mãos e o futuro se torna presente, penetrou-me a alma o problema da Europa que aparentemente quase já não quer ter filhos.

Para um estrangeiro, essa Europa parece estar exausta; mais ainda, parece querer despedir-se da História. Por que estão assim as coisas? Esta é a grande pergunta. As respostas são seguramente muito complexas. […]

Plaza de la Virgen, Valência - Espanha

Crise de alma do homem moderno

O problema, porém, é ainda mais profundo. O homem de hoje sente-se inseguro a respeito do futuro. É admissível encaminhar alguém nesse futuro incerto? Definitivamente, ser homem é uma coisa boa?

Essa profunda insegurança a respeito do próprio homem – junto com a vontade de ter toda a vida reservada para si mesmo – talvez seja a razão mais profunda pela qual o risco de ter filhos se apresenta a muitos como algo já quase insustentável.

De fato, só podemos transmitir a vida de modo responsável se estamos em condições de transmitir algo mais do que a simples vida biológica, ou seja, um sentido capaz de sustentar também nas crises da História vindoura e uma certeza na esperança mais forte do que as nuvens que obscurecem o futuro.

Se não aprendermos novamente os fundamentos da vida – se não redescobrirmos a certeza da fé –, ser-nos-á cada vez menos possível comunicar aos outros o dom da vida e a tarefa de um futuro desconhecido.

Por fim, está em conexão com isso o problema das decisões definitivas: pode o homem vincular-se para sempre? Pode dizer um “sim” para toda a vida? Sim, pode.

Para isso ele foi criado. Precisamente assim se realiza a liberdade do homem e assim se cria também o ambiente sagrado do matrimônio que se alarga ao constituir família e constrói o futuro.

Olvido de Deus, o grande problema do Ocidente

Prosseguimos mentalmente pela Baviera: Munique, Altötting, Regensburg, Freising. Pude ali viver belos e inolvidáveis dias de encontro com a fé e os fiéis de minha pátria. O grande tema de minha viagem à Alemanha foi “Deus”.

A Igreja deve falar de muitas coisas: de todas as questões relacionadas com o ser do homem, sua estrutura e sua ordenação, e assim por diante. Mas seu verdadeiro tema – sob vários aspectos, único – é “Deus”.

E o grande problema do Ocidente é o olvido de Deus. É um esquecimento que se difunde. Todos os problemas particulares podem, em última instância, ser atribuídos a essa questão. Disso estou convencido. (…)

O sacerdote é o homem de Deus

São Paulo chama Timóteo – e nele o bispo e, em geral, o sacerdote – de “homem de Deus” (1Tm 6, 11). É essa a principal tarefa do sacerdote: levar Deus aos homens. Sem dúvida, só pode fazer isso se ele próprio vem de Deus, se vive com e de Deus. (…)

O sacerdote deve verdadeiramente conhecer Deus em seu interior e, assim, levá-Lo aos homens: é esse o serviço prioritário do qual a humanidade de hoje está precisando.

Se numa vida sacerdotal se perde essa centralidade de Deus, esvazia-se pouco a pouco também o zelo da atividade.

No excesso das coisas externas falta o núcleo que dá sentido a tudo e o reconduz à unidade. Falta ali o fundamento da vida, a “terra” sobre a qual tudo isso pode estar e prosperar.

Verdadeiro fundamento do celibato

O celibato, vigente para os bispos em toda a Igreja oriental e ocidental e – segundo uma tradição que remonta a uma época vizinha à dos Apóstolos – para os sacerdotes em geral, só pode ser compreendido e vivido sobre a base dessa impostação de fundo.

Não bastam as razões apenas pragmáticas, a referência à maior disponibilidade: essa maior disponibilidade de tempo poderia facilmente tornar-se também uma forma de egoísmo que poupa os sacrifícios e os incômodos necessários para aceitar-se e suportar-se mutuamente no matrimônio.

E poderia assim levar a um empobrecimento espiritual ou a uma dureza de coração.

O verdadeiro fundamento do celibato só pode estar contido na frase “Dominus pars [hereditatis meae]” – “Tu és o lote de minha herança”. Só pode ser teocêntrico.

Não pode ter o sentido de ficar privado de amor, mas deve ter o de deixar-se arrastar pela paixão por Deus e aprender em seguida, graças a uma mais íntima relação com Ele, a servir também aos homens.

O celibato deve ser um testemunho da fé: a fé em Deus se concretiza naquela forma de vida que só tem sentido a partir de Deus.

Fundar n’Ele a vida, renunciando ao matrimônio e à família, significa acolher e experimentar Deus como realidade e assim poder levá-Lo aos homens.

Nosso mundo – que se tornou totalmente positivista, no qual Deus encontra lugar apenas como hipótese, mas não como realidade concreta – precisa apoiar-se em Deus do modo mais concreto e radical possível.

Ele tem necessidade do testemunho de Deus, que reside na decisão de acolher Deus como terra na qual se funda nossa existência.

Por isso o celibato é tão importante precisamente hoje, em nosso mundo atual, embora sua prática nesta época esteja a todo momento ameaçada e questionada.

Faz falta uma esmerada preparação durante o percurso rumo a esse objetivo; um acompanhamento persistente por parte do bispo, de amigos sacerdotes e de leigos que sustenham em conjunto esse testemunho sacerdotal.

Faz falta a oração que sem cessar invoque a Deus como o Deus vivo e n’Ele se apoie tanto nas horas de confusão como nas de alegria.

Desse modo, contrariamente à tendência cultural que procura nos convencer de que não somos capazes de tomar tais decisões, esse testemunho pode ser vivido e pode, assim, reintroduzir Deus como realidade em nosso mundo. […]

Diálogo com o Islã

A visita à Turquia proporcionou-me ocasião de manifestar também publicamente meu respeito pela religião islâmica; um respeito, ademais, que o Concílio Vaticano II nos indicou como atitude necessária.1

Quero neste momento expressar uma vez mais minha gratidão às autoridades da Turquia e ao povo turco, o qual me acolheu com uma tão grande hospitalidade e me ofereceu inesquecíveis dias de encontro.

Num diálogo com o islã, a ser intensificado, devemos ter presente o fato de que o mundo muçulmano encontra-se hoje com grande urgência ante uma tarefa muito semelhante àquela que foi imposta aos cristãos a partir dos tempos do iluminismo e que o Concílio Vaticano II, como fruto de uma longa e árdua procura, levou a soluções concretas para a Igreja Católica. […]

Igreja Patriarcal de São Jorge, Istambul - Turquia

Cristo a verdadeira paz

“Et erit iste pax” [“Ele será a paz”], diz o profeta Miqueias (5, 4), referindo-se ao futuro dominador de Israel, do qual anuncia o nascimento em Belém.

Aos pastores que apascentavam seus rebanhos nos campos em torno de Belém, disseram os anjos: chegou o esperado.

“Paz na terra aos homens” (Lc 2, 14). O próprio Cristo, o Senhor, disse a seus discípulos: “Deixo-vos a paz, dou-vos minha paz” (Jo 14, 27). Destas palavras se formou a saudação litúrgica: “A paz esteja convosco”.

Esta paz que se comunica na Liturgia é o próprio Cristo. Ele se dá a nós como a paz, como a reconciliação acima de todas as fronteiras. Onde Ele é acolhido surgem ilhas de paz.

Nós, homens, gostaríamos que Cristo banisse de uma vez para sempre todas as guerras, destruísse as armas e estabelecesse a paz universal.

Devemos, porém, aprender que a paz não pode ser alcançada apenas externamente, com estruturas, e que o intento de estabelecê-la através da violência só conduz a uma violência sempre nova.

Devemos aprender que a paz – como dizia o anjo de Belém – está em conexão com a eudokia, com o abrir-se de nossos corações para Deus.

Devemos aprender que só poderá existir paz se o ódio e o egoísmo forem superados em nosso interior.

O homem deve ser renovado a partir do seu interior, deve tornar-se novo, diferente. Assim a paz neste mundo permanece sempre débil e frágil. Isso nos faz sofrer.

Precisamente por isso somos muito mais chamados a nos deixar penetrar pela paz de Deus e a levar ao mundo sua força.

Em nossa vida deve realizar-se aquilo que no Batismo aconteceu sacramentalmente em nós: a morte do homem velho e o nascimento do novo.

E continuaremos pedindo ao Senhor com grande insistência: “Comovei os corações! Fazei-nos homens novos! Ajudai a razão da paz a vencer a irracionalidade da violência! Fazei-nos portadores de vossa paz!”

Que a Virgem Maria, à qual encomendo vossas pessoas e vosso trabalho, vos obtenha essa graça.

 

Excertos do Discurso à Cúria Romana em 22/12/2006 – Tradução: Arautos do Evangelho.

1 Cf. Nostra aetate, 3.