Outro ano está para acabar. Como primeiro evento a ressaltar desse período, transcorrido de modo tão veloz, gostaria de mencionar a viagem ao Brasil.
Seu objetivo era o encontro com a V Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe e, consequentemente, de modo mais geral, o encontro com a Igreja do vasto continente latino-americano.
Antes de discorrer sobre a Conferência de Aparecida, queria falar de alguns momentos culminantes daquela viagem.
Lembranças da viagem apostólica ao Brasil
Antes de tudo, permanece em minha memória a solene vigília com os jovens no estádio de São Paulo.
Ali, não obstante as temperaturas rígidas, nos encontramos todos unidos por uma grande alegria interior, por uma experiência viva de comunhão e pela clara vontade de ser, no Espírito de Jesus Cristo, servos da reconciliação, amigos dos pobres e dos que sofrem, e mensageiros daquele bem cujo esplendor encontramos no Evangelho.
Há manifestações de massa que têm apenas o efeito de uma auto-afirmação; nestas, a pessoa se deixa levar pela ebriedade do ritmo e dos sons, terminando por trazer alegria somente para si mesma.
Ali, pelo contrário, dilatou-se nosso ânimo; a profunda comunhão que naquela tarde se instaurou espontaneamente entre nós, no estar uns com os outros, trouxe consigo um ser uns para os outros.
Não foi uma fuga da vida quotidiana, mas se transformou na força de aceitar a vida de um modo novo.
Quero, pois, agradecer de coração aos jovens que animaram aquela vigília pelo seu estar com, pelo seu cantar, falar, rezar, que interiormente nos purificou, melhorou – nos melhorou também para os demais.
Permanece inesquecível também o dia no qual, junto a um grande número de bispos, sacerdotes, religiosos, religiosas e fiéis leigos, pude canonizar Frei Galvão, um filho do Brasil, proclamando-o santo para a Igreja universal.
Por todas as partes nos saudavam as suas imagens, das quais se desprendia o fulgor da bondade de coração que ele tinha achado no encontro com Cristo e no relacionamento com a sua comunidade religiosa. […]
Recordo com particular vivacidade o dia na Fazenda da Esperança, na qual pessoas caídas na escravidão da droga reencontram liberdade e esperança.
Chegando ali, como primeira coisa, percebi de modo novo a força reabilitadora da criação de Deus. Verdes montanhas circundam o amplo vale, encaminham o olhar para o alto e, ao mesmo tempo, causam uma sensação de proteção.
Do tabernáculo da igrejinha das carmelitas brota uma fonte de água límpida que lembra a profecia de Ezequiel acerca da água que, surgindo do Templo, desintoxica a terra salgada e faz crescer árvores que procuram a vida.
Devemos defender a criação tendo em vista não apenas nossas utilidades, mas por si mesma – como mensagem do Criador, como dom de beleza, que é promessa e esperança. Sim, o homem precisa da transcendência.
Só Deus basta, disse Santa Teresa D’Ávila. Se Ele vem a faltar, o homem deve, nesse caso, tentar superar por si mesmo os confins do mundo, abrir diante de si o espaço ilimitado para o qual foi criado.
Então a droga torna-se para ele quase uma necessidade. Mas logo ele descobre que essa é uma imensidade ilusória – uma zombaria, poder-se-ia dizer, que o demônio faz ao homem.
Ali, na Fazenda da Esperança, os confins do mundo são verdadeiramente superados, abre-se o olhar rumo a Deus, rumo à amplitude de nossa vida, e assim há uma reabilitação.
A todos os que ali trabalham, dirijo meu sincero agradecimento, e a todos os que ali buscam a cura, o meu cordial desejo de bênção. […]
A Conferência de Aparecida
Por fim, Aparecida. Tocou-me, de modo muito particular, a pequena imagem de Nossa Senhora. Alguns pobres pescadores, que tinham repetidamente lançado as redes em vão, tiraram da água do rio a estatuazinha, e depois disso fizeram uma pesca abundante.
É a Mãe dos pobres, que para eles tornou-Se pobre e pequena.
Assim, exatamente por meio da fé e do amor aos pobres, formou-se em torno dessa imagem o grande Santuário que, sempre recordando a pobreza de Deus, a humildade da Mãe, constitui dia-a-dia uma casa e um refúgio para as pessoas que rezam e esperam.
Boa coisa era que ali nos reuníssemos e ali elaborássemos o documento sobre o tema Discípulos e missionários de Jesus Cristo, para que n’Ele tenham a vida.
Certamente, alguém poderia logo perguntar: mas era esse o tema certo neste momento da História que estamos vivendo?
Não era talvez uma mudança excessiva rumo à interioridade, num momento em que os grandes desafios da História, as questões urgentes relativas à justiça, à paz e à liberdade pedem o pleno compromisso de todos os homens de boa vontade, de modo particular da Cristandade e da Igreja?
Não se deveria ter enfrentado esses problemas, em lugar de retrair-se no mundo interior da fé?
O que significa ser discípulo de Cristo
Deixemos de lado, por agora, essa objeção. Realmente, antes de respondê-la, é necessário compreender bem o próprio tema em seu verdadeiro significado; uma vez feito isso, a resposta à objeção se delineia por si.
A palavra-chave do tema é: encontrar a vida – a verdadeira vida. Com isso o tema supõe que esse objetivo, sobre o qual todos estão mais ou menos de acordo, é alcançado no discipulado de Jesus Cristo, como também no compromisso por sua palavra e sua presença.
Os cristãos na América Latina, e com eles os de todo o mundo, são, portanto, convidados, antes de tudo, a se tornar de novo e sobretudo “discípulos de Jesus Cristo” – coisa que, no fundo, já somos em virtude do Batismo, sem que isso nos tire o dever de sê-lo sempre novamente, na viva apropriação do dom daquele sacramento.
Ser discípulos de Cristo, o que significa?
Em primeiro lugar, significa: chegar a conhecê-Lo. Como acontece isso?
É um convite a escutá-Lo assim como Ele nos fala no texto da Sagrada Escritura, como Se dirige a nós e vem ao nosso encontro na oração comunitária da Igreja, nos Sacramentos e no testemunho dos santos.
Nunca se poderá conhecer Cristo apenas teoricamente. Com grandes estudos, pode-se saber tudo acerca das Sagradas Escrituras sem jamais tê-Lo encontrado.
Faz parte integrante do conhecê-Lo o caminhar com Ele, entrar em seus sentimentos, como diz a carta aos Filipenses (2, 5).
Paulo descreve resumidamente esse sentimento: ter o mesmo amor, formar juntos uma só alma (sýmpsychoi), estar de acordo, nada fazer por rivalidade e vanglória, não procurando cada qual apenas seu próprio interesse, mas também o dos demais (2, 2-4).
A catequese nunca pode ser apenas um ensinamento intelectual, sempre deve se tornar também uma prática da comunhão de vida com Cristo, um exercitar-se na humildade, na justiça e no amor.
Somente assim caminhamos com Jesus Cristo em sua estrada, somente assim se abre o olho de nosso coração; somente assim aprendemos a compreender a Escritura e O encontramos.
O encontro com Jesus Cristo pede escuta, pede resposta na oração e no praticar aquilo que Ele nos diz.
Conhecendo Cristo, conheceremos Deus, e só a partir de Deus compreendemos o homem e o mundo, um mundo que de outro modo permanece uma interrogação sem sentido.
Tornarmo-nos discípulos de Cristo é, portanto, um caminho de educação rumo ao nosso verdadeiro ser, rumo ao justo ser homens.
No Antigo Testamento, a atitude de fundo do homem que vivia da Palavra de Deus vinha resumida no termo tzadic – o justo: quem vive segundo a palavra de Deus se torna justo; ele pratica e vive a justiça.
No cristianismo, a atitude dos discípulos de Jesus Cristo era expressa com outra palavra: o fiel.
A fé compreende tudo; essa palavra agora indica, o ser com Cristo e o ser com a sua Justiça, juntos. Recebemos na fé a justiça de Cristo, vivemo-la em primeira pessoa e a transmitimos. […]
A História precisa do Evangelho para chegar a sua plenitude
O discípulo de Jesus Cristo deve ser também “missionário”, mensageiro do Evangelho, nos diz aquele documento. Também aqui se levanta uma objeção: é lícito ainda hoje “evangelizar”?
Não deveriam, ao invés, todas as religiões e correntes de pensamento do mundo conviver pacificamente e procurar fazer juntas o melhor para a humanidade, cada qual a seu modo?
Bem, é indiscutível que devemos todos conviver e cooperar na tolerância e no respeito recíprocos.
A Igreja nisso se empenha com grande energia e, com os dois encontros de Assis, deixou também indicações evidentes nesse sentido, indicações que retomamos no encontro de Nápoles, neste ano [2007]. […]
Mas acaso essa vontade de diálogo e de colaboração significa também que já não podemos mais transmitir a mensagem de Jesus Cristo, não mais propor aos homens e ao mundo esse chamado e a esperança que d’Ele derivam?
Quem reconheceu uma grande verdade, quem encontrou uma grande alegria, deve transmiti-la, não pode absolutamente guardá-la para si. Dons tão grandes nunca são destinados a uma pessoa apenas.
Em Jesus Cristo surgiu para nós uma grande luz, a grande Luz: não podemos colocá-la sob o alqueire, mas devemos elevá-la sobre o candeeiro, para iluminar todos os que estão na casa (cf. Mt 5, 15).
São Paulo esteve incansavelmente no caminho, levando consigo o Evangelho. Sentia-se efetivamente como que “constrangido” a anunciar o Evangelho (cf. 1 Cor 9, 16).
Estava preocupado não tanto pela salvação de um indivíduo não-batizado, ainda não alcançado pelo Evangelho, mas por estar ciente de que a História em seu conjunto jamais podia chegar à sua plenitude sem que a totalidade (pléroma) dos povos tivesse sido alcançada pelo Evangelho (cf. Rm 11, 25).
Para chegar à sua plenitude, a História precisa do anúncio da Boa Nova a todos os povos, a todos os homens (cf. Mc 13, 10).
E de fato: quanto é importante que confluam na humanidade forças de reconciliação, forças de paz, forças de amor e de justiça – quanto é importante que no “balanço” da humanidade, perante os sentimentos e as realidades de violência e de injustiça que a ameaçam, sejam suscitadas e fortalecidas forças antagonistas!
É exatamente isso que acontece na missão cristã.
Mediante o encontro com Jesus Cristo e com os seus santos, através do encontro com Deus, o balanço da humanidade é reforçado por aquelas forças do bem sem as quais todos os nossos programas de ordem social não se tornam realidade.
Mas – diante das pressões excessivamente poderosas de outros interesses contrários à paz e à justiça – permanecem apenas teorias abstratas.
Aparecida decidiu de modo justo
Voltamos, assim, às questões levantadas no início: Aparecida fez bem, na busca de vida para o mundo, dando prioridade ao discipulado de Jesus Cristo e à evangelização? Foi porventura um equivocado fechar-se na interioridade? Não!
Aparecida decidiu de modo justo, porque é exatamente mediante o novo encontro com Jesus Cristo e o seu Evangelho – e só assim – que são suscitadas as forças que nos fazem capazes de dar a correta resposta aos desafios do tempo. […]
É certo que não podemos nos iludir: não são pequenos os problemas levantados pelo secularismo do nosso tempo e a pressão das presunções ideológicas para as quais tende a consciência secularizante com a sua pretensão exclusiva à racionalidade definitiva.
Nós o sabemos, e conhecemos a fadiga da luta que nesse tempo nos é imposta. Mas sabemos também que o Senhor mantém sua promessa: “Eu estarei convosco todos os dias, até o fim do mundo” (Mt 28, 20).
Nessa feliz certeza, acolhendo o incentivo das reflexões de Aparecida a renovar também nós o nosso ser com Cristo, vamos confiantes ao encontro do novo ano.
Caminhemos sob o olhar materno da Senhora Aparecida, d’Aquela que Se qualificou como “a serva do Senhor”. A sua proteção nos faz seguros e cheios de esperança.
Com esses sentimentos, concedo de coração a todos aqui presentes, e a quantos fazem parte da grande família da Cúria Romana, a Bênção Apostólica.