Movida por seu carisma profético, há muito a Igreja discerniu os desígnios divinos quanto à era marial1 em cujos umbrais a humanidade se encontra. E, ao longo dos séculos, vem alimentando em seus filhos a esperança nesses gloriosos dias por meio de súplicas e sacrifícios expiatórios.
Ademais, cônscia de que o vocabulário humano não é capaz de exprimir as excelsas qualidades de Nossa Senhora, ela recorreu às mais diversas formas litúrgicas e artísticas para levar seus filhos a degustarem misticamente as grandezas da Mãe de Deus. E, pari passu, procurou desenvolver uma terminologia teológica que, apesar das limitações do conhecimento penumbrático próprio ao estado de prova, servisse de instrumento para pôr em palavras as “intuições” que o Paráclito soprava nas almas a respeito de sua fidelíssima Esposa.
Súplica arquetípica a Nossa Senhora
Entre as preces marianas assim originadas, a Salve Regina representava para Dr. Plinio a súplica arquetípica a Nossa Senhora, a obra-prima do discernimento profético e do zelo teológico da Igreja a propósito do papel d’Ela na História da salvação. Por meio dessa oração, ele havia penetrado nos mistérios da Soberana Rainha e desejava ainda recitá-la quando sua guerreira e inocente alma estivesse para deixar este vale de lágrimas a fim de contemplar a luz beatífica nos olhos de sua Senhora e Mãe:
“Por cima desses abismos da morte, além dos quais está um Deus que eu adoro, existe uma ponte – que é a luz de minha alma e tudo em minha vida – cujo tamanho e valor eu meço melhor quanto mais me esmero em medir a profundidade do abismo. […] O sorriso por cima das trevas do impasse e a ponte lançada por cima dos abismos é a devoção a Nossa Senhora. Por isso, na hora da morte devemos dizer: Salve Regina, Mater misericordiæ… E nossa alma será recolhida no Céu”.2
A Salve Regina assemelha-se a uma música: há trechos em crescendo e diminuendo, em allegro e adagio, de acordo com o significado de cada frase. É a “composição” que contém todas as melodias das relações entre a Beatíssima Trindade e Nossa Senhora. Poderia até se chamar “música divina”, pois resume os infinitos anelos de Deus a respeito de sua Filha, Mãe e Esposa.
Ao rezá-la com piedade, o fiel associa-se aos desejos do Criador e se introduz nos misteriosos vínculos que O unem a Ela. No Coração de Maria, por sua vez, essa oração ressoa como um louvor e um pedido feito pelo Altíssimo, mesmo quando pronunciada por um mísero pecador. Deus como que empresta sua voz ao suplicante, para que ele conviva com a sua predileta. Eis a força da Salve Regina!
A grandeza divina encerrada em uma criatura
Os títulos mariais contidos nessa prece possuem uma elevação que atinge a Deus. Enquanto Filha do Padre Eterno, Nossa Senhora herda uma participação eminente em todos os seus atributos que A faz tocar a essência divina; como Mãe do Filho, governa sua herança e dela Se beneficia na qualidade de Rainha-Mãe; pela condição de Esposa do Espírito Santo, compartilha de seus bens e sobre eles detém plenos direitos.
Desse modo, Maria vive do tesouro da Trindade e encerra em Si a grandeza divina na proporção de uma criatura, como se Deus houvesse elegido entre os homens uma “miniatura” sua. Em outros termos, não Lhe sendo possível gerar uma nova Pessoa Divina consubstancial à Trindade, o Criador A formou com a finalidade de torná-La um “deus” para Si.
Ora, por vezes a meditação das invocações de Nossa Senhora parte não de sua perspectiva mais universal e transcendente, ou seja, de Deus e seus atributos, mas daquilo que se mostra mais imediato e concreto: o homem e suas necessidades. Embora legítima, essa visualização acaba constituindo um obstáculo para compreender a magnificência do vínculo d’Ela com a Santíssima Trindade, do qual deflui sua ligação com a humanidade.
Sem pretender fazer uma análise exaustiva das invocações dessa inspirada e belíssima oração, o Autor apresentará a seguir suas reflexões sobre algumas delas. Como o leitor poderá comprovar, tais considerações propiciam uma prelibação da glória esplendorosa que Maria Santíssima irradiará por toda a terra nos dias de seu reinado, bem como do convívio transbordante de bondade, perdão e afeto que Ela estabelecerá com os homens.
Segundo São Luís Grignion de Montfort,3 nesse relacionamento íntimo e maternal a Virgem os iluminará com sua luz, alimentará com seu leite, conduzirá com seu espírito, sustentará com seu braço e guardará sob sua proteção. Ela mesma será a seiva vital que impulsionará cada um de seus filhos e escravos de amor rumo à união com o Sagrado Coração de seu Divino Filho.
Rainha dos homens, dos Anjos e da vontade divina
Rainha e Mãe: dois títulos excelsos da Santíssima Virgem! Todos os predicados pelos quais se louva Nossa Senhora na Salve Regina decorrem desta singular união entre a realeza e a maternidade.
“Salve Rainha”! Maria possui em plenitude as insígnias do poder régio: sua majestade supera em muito a de qualquer monarca, é suprema; sua autoridade não depende da aclamação dos homens, é soberana; seu império se exerce sobre os Céus e a terra, as potestades angélicas e os seres humanos, é absoluto. Ela faz tudo quanto quer, quando quer e como quer. Trata-se, portanto, de uma realeza que emana da realeza divina.
Ora, Deus é a matriz e a substância da realeza: Rei de sua vontade, de seus planos, de seus possíveis; em uma palavra, Rei de Si mesmo desde todo o sempre. Sua realeza consiste no governo absoluto do Bem, que é a sua própria essência.
Por uma especialíssima predileção, Nossa Senhora participa dessa realeza de modo sui generis. Deus como que Se entregou inteiramente a Ela e confiou-Lhe o cetro de seu poder, para que governe a criação, a História e – oh, mistério insondável! – a Ele mesmo. A este título, pode-se afirmar que, por um sublime arcano, Maria é Rainha até da vontade divina, gozando de uma audiência onipotente ante o trono do Altíssimo.4 Tudo está sob seus pés, e a Trindade Se compraz em ser regida por sua Filha, Mãe e Esposa.
Isso supõe da parte de Nossa Senhora uma entranhada união com as Três Pessoas Divinas, que A torna incapaz de realizar algo contrário a seus desígnios. Em Deus e em Maria pulsam um mesmo Coração e uma mesma vontade. É como se o Todo-Poderoso lesse no Coração Imaculado esta sentença: “Sem Mim nada podeis fazer” (Jo 15, 5). O Criador Se submeteu de tal maneira à Virgem que, por assim dizer, sem Ela nada pode fazer.5
Tão ousada afirmação deve ser entendida cum grano salis, pois só Deus é o Ser por excelência,6 o Ato Puro,7 do qual procedem todas as coisas e por quem tudo é sustentado na ordem do ser. Feita essa ressalva, parece encontrar-se aqui o âmago inefável da Sagrada Escravidão a Jesus por Maria. Aquilo que o Senhor, em razão de sua justiça, poderia recusar a qualquer pessoa que d’Ele se aproximasse diretamente, sempre será concedido se a súplica partir do Coração de sua Mãe Santíssima.
“Salvai-me, Rainha!”
Tal é o esplendor da realeza e do poder de Nossa Senhora. Não há, portanto, invocação mais bela nem mais eficaz para se recorrer a Ela. Bem o compreendeu Dr. Plinio, ainda menino, ao recitar a Salve Regina num momento de apuro.8 Julgando, devido à pouca idade, que a saudação latina salve tivesse o sentido do verbo salvar, dirigiu à Auxiliadora dos Cristãos um brado cheio de filial confiança: “Salvai-me, Rainha!” E foi atendido!
Também a cada um de nós bastará clamar “Salvai-me, Rainha!”, e logo Ela estenderá o cetro e moverá a vontade do Pai. Esse apelo ressoa a seus ouvidos como se fosse dito: “Oh, Vós, que sois a Rainha das vontades divinas e que governais o Coração de Deus, salvai-me!”
As fibras do maternal Coração de Maria não resistem a quem assim recorre à sua intercessão. Invocar sua realeza significa, pois, invocar sua onipotência suplicante perante o Senhor. Não obstante, é necessário que o pedido seja feito com toda a confiança e com a certeza de que Ela nos salvará.
Personificação máxima da misericórdia divina
A expressão “Mãe de misericórdia”, por sua vez, evoca a missão ímpar da mãe no convívio familiar. Se ao pai cabe representar a bondade forte unida à justiça, à mãe compete reduzir esta justiça a proporções diminutas, a limites ínfimos, a um quase desaparecimento. Ela deve fazer luzir a misericórdia, o perdão e a indulgência num grau inimaginável. A harmonia no ambiente doméstico é fruto propriamente da ternura materna.
Ora, Nossa Senhora Se distingue como a Mãe das mães. Designá-La como “Mãe de misericórdia” parece, até certo ponto, uma redundância. Contudo, esse título se torna compreensível se levarmos em consideração que o sentido ordinário do vocábulo mãe fica muito aquém de sua maternidade, a qual só tem proporção com o próprio Deus. Por assim dizer, em Maria se esgotam os limites da misericórdia: Ela é a personificação máxima deste atributo divino posto numa criatura.
Seu perdão maternal não significa, porém, condescendência com o pecado e o vício, como muitos erroneamente imaginam. Concebida em plenitude de graça e sem qualquer laivo da culpa original, Nossa Senhora possui uma noção claríssima da ofensa que nossas faltas representam contra Deus e contra a ordem por Ele estabelecida no universo. Por conseguinte, Ela tem uma rejeição e um ódio perfeitos ao pecado e a qualquer forma de mal: “Perfecto odio oderant illos” (Sl 138, 22).
Em que consiste, então, sua misericórdia? Exatamente em obter graças maiores e superabundantes a fim de que o pecador arrependido vença suas más inclinações e busque com toda a força de alma a santidade máxima a que está chamado. E nisso se mostra seu perdão, pois Ela abstrai da necessidade prévia de merecimentos para obter tais benefícios, aplicando copiosamente a cada um os méritos infinitos da Redenção de seu Divino Filho, dos quais é a universal Medianeira e dadivosa Dispensadora.
“Vida nossa”: essência do Segredo de Maria
Em seguida, a oração faz referência a três insignes títulos de Nossa Senhora: “vida, doçura e esperança nossa, salve!” Há alguma relação entre estas invocações e as precedentes? Ou, quiçá, constituem elas meros adornos literários? Se examinadas com atenção, percebe-se que se trata de decorrências ou aplicações práticas das anteriores e de frutos da misericórdia.
Afirmar que algo é a “vida” de uma pessoa significa que sua existência não teria sentido se privada do elemento em apreço. Assim, poder-se-ia dizer que a reforma da Ordem Cisterciense empreendida por São Bernardo de Claraval era a sua vida, pois nela encontrava a finalidade para a qual Deus o criara. De modo similar, para um cavaleiro templário a defesa da Igreja e dos Lugares Santos contra a sanha dos infiéis era a sua vida, ou seja, o objeto de suas alegrias e esperanças em meio aos sofrimentos e dissabores da realidade terrena. E caberia aplicar a mesma definição a Santa Isabel da Hungria, que fez do serviço aos enfermos o seu gozo, a sua vida.
Por uma razão análoga, porém mais excelsa, chamar Nossa Senhora de “nossa vida” constitui um dos aspectos mais profundos da devoção a Ela, certamente relacionado com a essência do Segredo de Maria.9 Por quê?
Ao refletirmos sobre o mistério da Encarnação, em especial o período da gestação do Menino Jesus no claustro puríssimo de sua Mãe, um fato extraordinário nos colhe a atenção: o Homem-Deus quis que, durante nove meses, sua vida fosse uma participação da vida de Maria, por Ela sustentada e d’Ela dependente. Algo de sua existência humana estava sujeita à existência de Nossa Senhora.
Por conseguinte, em seu dinamismo especulativo e ávido de conhecer a verdade última sobre os arcanos de Deus, caberá à Teologia futura se interrogar: se Cristo quis depender da vida d’Ela no tempo – a ponto de o Menino Jesus, com toda a propriedade, poder exclamar no ventre virginal de Maria: “Minha Mãe, vida de minha vida!” –, algo de sua vida divina e eterna não dependeria d’Ela também? De que modo e com que matizes, uma vez que a questão não se refere a termos absolutos? Essa dependência não obedeceria a um sublime critério que regeria o relacionamento do Verbo Encarnado com as criaturas? Com efeito, embora haja n’Ele uma dualidade de naturezas, a divina e a humana, a unidade de Pessoa é resguardada pela união hipostática na Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Assim, a Criança cuja vida a Virgem sustentava em seu seio era o próprio Deus.
Mutatis mutandis, um fenômeno similar ao que se passou com Jesus durante sua gestação deverá se dar com aqueles a quem Nossa Senhora introduzir em seu Segredo: Ela os sustentará com sua existência e os alimentará com suas virtudes.10 Por esse vínculo materno, Maria Se tornará a vida de seus filhos no plano salvífico e sobrenatural, os quais não mais poderão pensar, querer ou agir sem Ela. Participar assim da vida da Santíssima Virgem constitui o mais alto grau de união com Deus e o anseio mais profundo das almas que aspiram à perfeição: “Minha Mãe, dai-me a graça de viver em vosso interior, como o Menino Jesus aí viveu durante nove meses. Sede a razão da minha existência e a vida da minha vida. Amém”.
Receptáculo das doçuras do Coração de Jesus
Nossa Senhora é também “nossa doçura”, quando a Ela recorremos humildemente. Essa doçura se manifesta na afabilidade, condescendência e bondade com que Maria nos acolhe, mesmo quando estamos na pior e mais lamentável situação de alma. Com ainda maior solicitude que o pai da parábola do filho pródigo (cf. Lc 15, 11-32), Ela sai ao encontro do filho chagado e maltrapilho que se avizinha, o abraça e o beija, unge-lhe as feridas com bálsamo, reveste-o com a melhor túnica e realiza um grande banquete para celebrar a recuperação daquele fruto de suas entranhas que havia se perdido.
Mãe de Deus e nossa, Ela nos cobre de afeto, suavizando as agruras e os sofrimentos deste vale de lágrimas, e comunica aos nossos corações ânimo renovado para os combates que ainda nos aguardam. Nossa Senhora Se manifesta como “nossa doçura”, quer quando afasta os obstáculos de nossos caminhos e nos conduz pelos jardins paradisíacos das consolações interiores, quer quando permite que passemos por aridezes espirituais, estorvos e até fracassos, à semelhança de seu Divino Filho na Cruz. Em qualquer circunstância Ela nos obtém as graças, virtudes e forças necessárias para sermos os lutadores e heróis de seu glorioso Reino.
Quão amarga se torna a vida daqueles que se embrenham nas vias do pecado e rejeitam as ternuras desta Mãe, cujo Imaculado Coração é o receptáculo das doçuras do Sagrado Coração de Jesus!
Esperança cheia de alegria e confiança
A tríade de louvores a Maria Santíssima encerra-se com a invocação “esperança nossa”. Essa virtude se refere, sobretudo, à glória futura (cf. Rm 5, 2), mas abarca igualmente os interesses espirituais e temporais da vida presente. Como ensina São Tomás,11 é por ela que se evitam os males e se procura o bem, pois não se espera senão o bem que se deseja e se ama. Ademais, a esperança porta consigo um gozo de alma antecipado à posse do bem almejado12 e, por isso, o Apóstolo exorta: “Sede alegres na esperança!” (Rm 12, 12).
A Salve Regina não alude, porém, a uma esperança qualquer, mas à “esperança nossa”: Àquela que, sendo a Onipotência Suplicante e a Mãe misericordiosa do pecador, é incapaz de negar-lhe uma ajuda, pois nunca se ouviu dizer que, tendo alguém recorrido à sua proteção, implorado sua assistência ou reclamado seu socorro, fosse por Ela desamparado.
De que valeria uma vida sem doçura? Por certo, seria um pesadelo. E uma doçura sem esperança? Sem dúvida, não passaria de um gozo efêmero, que não tardaria a se converter em amargura. Ao contrário, a esperança enche a alma de alegria e faz desabrochar a confiança. Esta é a esperança que a Estrela da Manhã transmite a seus filhos e escravos, antecipando-lhes o gozo do Sol de Justiça, Cristo Senhor nosso.
Grandeza que acolhe, eleva e nobilita
Unindo os extremos da esfera espiritual, após discorrer sobre as grandezas de Nossa Senhora a Salve Regina se volta para a pequenez, a insuficiência e a fraqueza dos homens: “A vós bradamos, os degredados filhos de Eva. A vós suspiramos, gemendo e chorando neste vale de lágrimas. Eia, pois, Advogada nossa, esses vossos olhos misericordiosos a nós volvei”.
Haveria atitude de alma mais apropriada do que essa? Ante a sublimidade das graças e dons de Maria, quem poderia julgar-se alguma coisa? A única postura razoável consiste em contemplá-La a partir da miséria e da insignificância de um degredado filho de Eva, ou seja, admirá-La com coração humilde. É o exemplo que Ela mesma nos dá no cântico do Magnificat, ao profetizar que todas as gerações A proclamariam Bem-Aventurada porque Deus tinha olhado “para a humildade de sua Serva” (Lc 1, 48).
Entretanto, antes de se tornar pequeno é preciso apreciar a grandeza da Santíssima Virgem, pois esta perspectiva equilibra a ponderação das misérias e fraquezas. Longe de desdenhar os filhos débeis e desvalidos, Ela os acolhe, eleva e nobilita, não só por desvelo e compaixão, mas também pelo prazer que experimenta ao vê-los necessitados de seu amparo. Ela Se alegra com sua pequenez, porque assim pode ser plenamente Mãe de cada um.
O próprio Deus quis Se fazer Filho de Maria, frágil e pequenino em seus braços, para que Nossa Senhora exercesse inteiramente sua maternalidade sobre Ele. E, depois de adornar sua alma de todas as virtudes e coroá-las com o dom da Maternidade Divina, aprouve-Lhe assumir a humanidade na condição de criança, para que sua filiação a Nossa Senhora fosse perfeita e Ele pudesse, numa posição inferior na ordem da natureza, contemplar as grandezas de sua Mãe. Trata-se de uma situação paradoxal, na qual o Verbo Eterno inverte os papéis, como que dizendo: “Ela é tão bela, tão santa, tão semelhante a Mim que Eu, Deus todo-poderoso, não resisto em Me encarnar, para ser Filho d’Ela e, portanto, de alguma forma inferior a Ela”.
Nesse adorável ato de submissão do Redentor a Nossa Senhora estão inseridos todos os homens pois, ao Se abandonar aos cuidados d’Ela, Jesus Lhe entregou cada um como filho seu. E, sendo o Homem-Deus causa exemplar do agir humano, o modo de Ele Se relacionar com sua Mãe tornou-se o paradigma para os filhos e escravos d’Ela.
Essa passagem da Salve Regina parece sugerir ao fiel duas graças insignes a serem suplicadas: de um lado, a possibilidade de penetrar, compreender e amar o Segredo de Maria; de outro, a capacidade de aniquilar-se e fazer-se pequeno, a fim de mais intimamente dele participar. Os fracassos, misérias e faltas não devem constituir um fator de abatimento e desânimo espiritual. Pelo contrário, a Providência os utiliza como instrumentos para “esvaziar” a alma de si mesma e “enchê-la” da Virgem Santíssima, como explica São Luís Grignion de Montfort.13
Não encontrando um termo mais apropriado para exprimir o pendor maternal de Nossa Senhora pelos filhos faltosos em face do Supremo Juiz, a Igreja A intitulou “Advogada nossa”. Essa Advogada, porém, não Se contenta em defender os vermezinhos e miseráveis pecadores,14 mas assume como próprias as suas causas. Assim, ao se apresentarem no tribunal eterno, Deus já não vê suas fraquezas: no lugar delas, contempla apenas Maria!
À semelhança da Rainha Ester ante o Rei Assuero (cf. Est 5, 1-8), basta Nossa Senhora comparecer junto ao trono divino para que o Altíssimo Lhe conceda absolutamente tudo. Sua simples existência é garantia de vitória nas causas mais impossíveis. Recorramos, pois, cheios de confiança e com o coração contrito, à nossa invencível Advogada!
“Caro Christi, caro Mariæ”: o ápice da Sagrada Escravidão
Entre as sublimidades mariais que a Salve Regina manifesta está a aclamação “E depois deste desterro, mostrai-nos Jesus, bendito fruto de vosso ventre”. A mútua escravidão de amor existente entre Jesus e Maria era tão entranhada que ambos possuíam não apenas o mesmo espírito e o mesmo Coração, mas até a mesma carne: “Caro Christi, caro Mariæ”.15
Em virtude dessa união, Nossa Senhora experimentou no seu Coração as indizíveis dores sofridas por Jesus Cristo em seu Corpo sagrado durante a Paixão. Trata-se de um regime de Sagrada Escravidão16 levado a um tal auge de perfeição, que não há palavras adequadas para exprimi-lo; mais elevado e grandioso, somente a eterna pericórese das Três Pessoas Divinas.
Ora, precisamente em decorrência dessa escravidão amorosa Nossa Senhora Se tornou a Corredentora do gênero humano. Por desígnio do Padre Eterno, Ela devia consentir em cada sofrimento de seu Divino Filho, ciente de que antes o Salvador já havia consentido nos sofrimentos d’Ela. Surge, assim, uma pergunta inevitável, a qual só pode ser entendida pelo prisma da Sagrada Escravidão… Quem sofreu mais: Maria vendo a Paixão de seu Filho, ou Jesus contemplando as dores de sua Mãe?
A própria graça da troca de corações, de que tratam muitos Santos e Doutores, parece ficar aquém desse sublime mistério da Sagrada Escravidão revelado pela Salve Regina ao se referir a Jesus como o bendito fruto do ventre virginal de Maria. Com efeito, além de Filha, Mãe, Esposa e Escrava de Deus, Ela é sua Senhora pois, a partir do momento em que o Verbo A escolheu como Mãe, Ele Se fez também seu Escravo. Neste ato se manifesta o cerne da vocação redentora: ser escravo. Poder-se-ia mesmo afirmar que, sem a escravidão da Segunda Pessoa da Santíssima Trindade ao Pai e a Maria, a Redenção não seria possível.
De outra parte, pelo vínculo de escravidão com seu Divino Filho, Nossa Senhora Se tornou o canal pelo qual a essência da vida trinitária, mútua escravidão de amor, é comunicada aos homens. Desse modo fica patente que os auges de grandeza se revelam por auges de escravidão!
“O clemens, o pia, o dulcis Virgo Maria!”
Tanta sublimidade encerra a última tríade de aclamações da Salve Regina que se diria ter sido o fiel devoto arrebatado à contemplação dos píncaros de santidade de Nossa Senhora. Se Deus então lhe dissesse “Eis o meu Paraíso!”, daquele coração enlevado brotaria a frase perfeita: “Ó clemente, ó piedosa, ó doce sempre Virgem Maria!”
Que maravilhas terá vislumbrado São Bernardo quando, num êxtase, completou com essa breve sentença nossa oração? Certamente o que nem o grande Moisés, nem o ígneo Elias jamais viram: o esplendor da alma de Maria Santíssima, na qual reconheceu a face do próprio Deus! Fascinado por sua luz, ele não encontrou senão esta tríplice exclamação para exprimir a imensa graça recebida: “O clemens, o pia, o dulcis Virgo Maria!”
Estava tudo dito. E, no abrasado e aguerrido coração do Doutor Melífluo, já fora fundado o Reino de Maria.