A largueza de alma e generosa bondade de Dona Lucilia não se restringiam aos limites do lar, levando-a a tratar como filhos também as outras crianças, em especial aquelas que tivessem a idade de Rosée e Plinio.
A paciência em tratar um sobrinho surdo-mudo
Assim, era objeto de carinho e paciência verdadeiramente maternais da parte de Dona Lucilia um sobrinho, de nome Agostinho –Tito para os mais íntimos – que se mostrava de trato difícil com os parentes.
Surdo-mudo de nascença, aprendera a falar em Viena, mas se exprimia de modo rouco e meio desagradável, por nunca ter ouvido o verdadeiro timbre da voz humana.
Era inevitável que a maior parte das pessoas procurasse subtrair-se ao convívio dele, o que o deixava muito nervoso. Costumava ir ao palacete Ribeiro dos Santos, e às vezes se desentendia até com Dona Gabriela.
Esta, apesar de tudo, tinha pena dele e não lhe dizia “vá embora!”, mesmo porque, para ela, era ponto pacífico que uma avó devia aturar o neto.
Dona Lucilia, de seu lado, a fim de tornar a vida de sua mãe o mais leve possível, chamava sobre si os problemas que apareciam.
Assim, ficava observando a discussão com Tito. Ao atingir esta certo paroxismo, voltava-se para o sobrinho e lhe dizia, silabando as palavras, movendo devagar os lábios para bem se fazer compreender:
— Tito, acompanhe-me, vamos conversar um pouco.
Ele, que não queria outra coisa – estava mesmo à espera de ser chamado por Dona Lucilia – tranquilizava- se e ia com ela para uma saleta. Conversavam uma hora, às vezes hora e meia.
Ele não conseguia graduar de forma conveniente o volume de voz, de maneira que falava alto demais. Às vezes gritava, sem perceber, chegando mesmo os parentes a ouvir trechos da conversa. Eram queixas amargas, mal-entendidos, que ela precisava lhe explicar pacientemente.
Ao cabo daquela hora e tanto, saía Tito tranquilizado, beijava a tia, dizia “até logo”, e ia-se embora. Dona Lucilia voltava para a sala onde estavam os outros, às vezes um tanto cansada, mas sem nada comentar.
Nunca a viram se queixar, nem procurar chamar a atenção para a paciência de que dava provas.
Além de Tito, também outros sobrinhos se beneficiaram dessa envolvente benquerença, como veremos a seguir.
Carinho e bondade incomparáveis, salvaguardados os princípios
Yelmo, primogênito de Antônio – irmão de Dona Lucilia – saudoso declarava: “De tia Lucilia? Lembro-me perfeitamente, era uma pessoa extraordinária. Jamais encontrei em minha vida afeto que superasse o dela”.
Já em idade de ser avô, quase bisavô, Dr. Yelmo se recordava de um fato de infância, como se tivesse acontecido no dia anterior.
Certa feita, seus pais foram ao Rio de Janeiro com a filha, Dalmacita, deixando-o com seu irmão mais moço, Marcelo, na casa de Dona Gabriela.
Cada um havia recebido de presente uma bicicleta, e estavam desejosos de experimentar todos os deleites que um menino costuma fruir com tão fascinante brinquedo.
O principal deles talvez fosse a sensação de independência que Yelmo, em seus “provectos” 12 anos de idade, anelava desfrutar. Os estreitos espaços do jardim da casa de sua avó eram limitados, não se prestando a isso.
Propôs a seu irmão mais jovem lançarem-se à aventura pelas amplas e tranquilas ruas do então aristocrático Bairro dos Campos Elíseos, e irem tomar lanche em casa de seus pais.
Seus infantis anseios de liberdade, porém, não levaram em consideração o feitio grave e autoritário da avó – uma senhora ao estilo antigo, em todo o sentido da palavra – habituada a mandar pelo olhar, sem haver quem se atrevesse a contestá-la.
Demorando eles muito a retornar, Dona Gabriela ficou receosa de que algo lhes tivesse acontecido.
Quando voltaram, já tarde, e foram cumprimentar a avó, a justa repreensão não se fez esperar, dirigindo-se ela principalmente ao mais velho, Yelmo, por isso mesmo o mais culpado:
— Onde vocês estiveram?
— Saímos um pouquinho, só para tomar um lanche em casa…
— Mas chegam a esta hora, sem me ter avisado? Vocês não sabem em que casa estão? Não mediram a preocupação que me podiam causar? E escolhem logo essa hora tardia para chegar?! Saibam respeitar sua avó, saibam respeitar todas as pessoas que estão aqui, evitando afligi-las sem necessidade!
Diante da imponência e severidade com que ela se expressava, Yelmo, como tanto meninote de 12 anos, pôs-se a chorar. Dona Gabriela, senhora de muita energia, não podia tolerar as lágrimas de fraqueza de seu neto e chamou-o aos brios:
— Homem não chora! Pare de chorar!
Como era natural, ele chorou ainda mais, pois a tragédia estava se tornando maior…
Dona Lucilia, que ali perto presenciava a cena, compadeceu-se de seu sobrinho e, fazendo-lhe um discreto sinal, chamou-o à parte, dizendo-lhe com voz amena:
— Yelmo, meu filho, venha aqui.
Ele, soluçando, foi até junto de sua tia e, jogando-se em seus braços, desatou num mais copioso pranto, dando largas à sua dor.
Para o consolar, Dona Lucilia lhe disse:
— Meu filho, você precisa compreender… Sua avó é assim mesmo. É uma senhora dos antigos tempos, e não permite nada que não esteja inteiramente correto. É claro que ela podia ter um pouco de pena de você.
No entanto, apesar de suas carinhosas palavras, em nenhum momento deixou Dona Lucilia de dar razão a sua própria mãe, por ser sagrado o princípio de autoridade que esta representava naquela casa. E continuou:
— Mas sua avó tem razão, vocês não devem chegar tarde sem avisar. Não chore mais. Sua tia está aqui com pena de você, está lhe agradando. Sossegue um pouquinho, isso passa.
O menino notou que defluía de Dona Lucilia tanta bondade e compaixão pelo que ele estava sofrendo, tanto desejo de lhe fazer bem, que logo parou de chorar, sentindo-se consolado.
“Tia Lucilia ficou marcada para mim a vida inteira como uma Santa… – lembrava ele saudoso – Porque uma tão grande bondade ficou como que impregnada em mim, e até hoje ainda sinto o calor dessa bondade”.