Arautos do Evangelho: Dom Fernando, o que o levou a ser um salesiano?
Dom Fernando Legal: Desde criança, sempre quis ser padre. Um dia fui me confessar na Paróquia Santa Teresinha, dos salesianos, no bairro de Santana, em São Paulo, e demonstrei que queira ser padre.
O confessor então me encaminhou para a comunidade salesiana. Fiquei esse ano lá e depois fui para o seminário de Lorena, em 1955.
AE: Qual é propriamente o carisma salesiano?
DFL: O carisma salesiano é, através da educação, a evangelização dos jovens. Dom Bosco queria fazer do jovem um bom cristão e um honesto cidadão.
Esta expressão encerra bem o objetivo de Dom Bosco. A gente pode ter uma ideia distorcida de educação, no sentido de reduzi-la ao mero ensino, ao cultivo de certas dimensões humanas.
Mas a alma de tudo isso é a formação da pessoa humana, do caráter. Não adianta ser um grande cientista e ser corrupto. Por isso a educação não é só ensinar. É melhor ser analfabeto mas honesto, do que ter uma lista de diplomas e ser desonesto.
O núcleo, a essência do carisma é a evangelização dos jovens, acentuadamente os mais carentes e necessitados. Jovens de rua, que estão em situação de perigo.
Por exemplo, hoje temos o mundo da droga, da violência, da prostituição, a desagregação da família; trabalhar para a solução de tudo isso faz parte da missão, do carisma salesiano.
AE: Existe uma didática e um método de ensino próprios das Escolas Salesianas espalhadas pelo mundo todo. Quais são suas características mais marcantes?
DFL: O método preventivo, que foi adotado por Dom Bosco na educação, e é hoje praticamente o método de uma cidadania quase que universal. Antigamente não era bem assim, o que estava em vigor era o método repressivo.
O método preventivo opõe-se ao método repressivo. Este é muito baseado no castigo: existe a lei, a norma; se você não faz, tem o castigo.
E com Dom Bosco, não. Ele não esperava acontecer o erro para castigar, mas prevenia.
O método preventivo exige muita presença do educador; o relacionamento do educador com o educando na base da amizade, da confiança, da abertura, da participação na vida do educando.
Não se trata de uma dicotomia: o educando de um lado e o educador de outro, mas é de certo modo um intercâmbio. O educador deve despertar e transformar em ato o que existe em potência na pessoa humana, em termos de valores e educação.
Então, um acompanhamento valoriza muito a pessoa do educando, sua liberdade e sua presença. Dom Bosco aplicava isso estando no meio dos meninos e assumindo a vida deles. Gostar daquilo de que eles gostam.
Dom Bosco baseava esse método na religião. Ele dizia: “Na educação: ou religião ou bastão”. Se você quer educar, ou você usa a religião, ou o chicote. Ele aplicou esse método, que é mais um espírito de família, onde o jovem se entrosa como numa família.
Há uma palavra italiana, amorevolenza, que é difícil traduzir; ela tem uma conotação de bondade com algo a mais, que dá a nota dessa educação de Dom Bosco.
O grande inspirador dele foi São Francisco de Sales. Ele quis que os salesianos se inspirassem na doçura, na bondade de São Francisco de Sales. Por isso ele nos deu o nome de salesianos.
Justamente o que definiu a vocação de Dom Bosco – e o marcou muito – foi o sonho dele aos nove anos. Ele morava no campo, com Mamãe Margarida, a avó, o irmão José e um meio irmão.
Nesse sonho, ele viu-se diante de um mundo de moleques que blasfemavam, e atirou-se no meio deles, dando socos e pontapés.
Surgiu então um personagem que lhe disse: “Não é com pancada que você vai atrair, mas sim com bondade”. Em seguida, ele viu que aquelas pequenas feras iam se transformar em cordeirinhos.
Depois apareceu a figura de Nossa Senhora, dizendo-lhe que ele iria se tornar forte e robusto para sua missão. No outro dia de manhã, ele contou o sonho e Mamãe Margarida comentou: “Quem sabe se você não vai ser padre?”
Depois, o método preventivo é também fazer do educando um agente da própria formação e educação. Ele é agente também, não só um destinatário passivo. O método preventivo utiliza a razão, a religião e a bondade.
AE: A Família Salesiana ocupa posição de destaque entre as demais congregações religiosas no mundo. A que se deve essa grande expansão?
DFL: Em primeiro lugar, deve-se à graça de Deus, pois, como sabemos, as congregações surgem na Igreja como carisma do Espírito Santo.
É o que diz o Concilio Vaticano II: as congregações são um dom do Espírito para a Igreja, de acordo com as diversas necessidades da Igreja. Portanto, elas não se destinam apenas aos seus membros, mas à Igreja.
E os que estão mais ligados ao carisma – os religiosos – não são os donos do carisma. Por isso nós vemos a expansão e a multiplicação que houve.
Podemos então falar de uma Família Salesiana que compreende aqueles que foram fundados por Dom Bosco: os padres, os irmãos, as Filhas de Maria Auxiliadora e os Cooperadores Salesianos.
Depois de décadas da presença salesiana na Igreja, foram surgindo muitas outras congregações, que nasceram não diretamente do fundador, mas do espírito do carisma dele.
AE: Qual é o papel dos leigos na Família Salesiana? Há um setor de terciários?
DFL: Este era o grande sonho de Dom Bosco. Inclusive quando redigiu as Constituições, ele queria que os leigos fizessem parte como verdadeiros religiosos. Ele queria justamente que não houvesse só o religioso consagrado, mas que houvesse um salesiano no mundo.
Desde o início houve esses Cooperadores Salesianos, que uns chamam de terciários, e que seriam os salesianos atuando no mundo. Temos o salesiano padre, o salesiano leigo consagrado e o salesiano no mundo, trabalhando com o mesmo espírito.
AE: Na espiritualidade salesiana, qual foi o papel de Mamãe Margarida?
DFL: Quando Dom Bosco começou, ele era do clero diocesano de Turim.
Havia um costume de os padres novos não irem logo para as paróquias; eles ficavam em algum convento onde continuavam sua formação de estudos, e um padre mais velho os acompanhava.
Eles eram capelães. Dom Bosco começou assim. Foi capelão da Marquesa Barolo, que mantinha uma obra para meninas.
Mas depois ele se impressionou com a situação dos jovens que chegavam a Turim desempregados, sem família, sem eira nem beira. Os jovens de rua, que ficavam como vítimas fáceis da irreligião.
Então ele começou a recolher esses jovens das ruas. Para atraí-los, promovia jogos, esportes, passeios, mas também havia a celebração da Eucaristia e aulas de catecismo.
O mais interessante era o contato do jovem com o padre, na época em que os padres eram pessoas muito distantes.
Até que em certo momento disseram a ele: “Ou você fica aqui, ou então vai com os seus meninos”. Ele respondeu: “Eu vou com os meninos”. E deixou o cargo que lhe proporcionava meios de viver, renunciou a tudo para ficar com os meninos.
Depois houve a luta dele para arrumar um lugar. Ele conseguiu um em Turim, numa região que não tinha boa fama e, portanto, não ficava bem ele morar ali como sacerdote.
Então ele lembrou-se da Mamãe Margarida que ainda morava no campo. Era uma mulher de fé. Sem ter diploma de pedagoga e de psicóloga, fez do seu filho um grande Santo Educador.
Dom Bosco tinha um caráter forte de piemontês, de decisão, não era de se dobrar facilmente, era de enfrentar. Então, trouxe a Mamãe Margarida para morar com ele.
Quando ela chegou a Turim, disse: “Mas aqui falta tudo!” Dom Bosco mostrou-lhe então o crucifixo pendurado na parede. Era a única coisa que havia. Ela entendeu e ficaram lá.
Os primeiros meninos que Dom Bosco recolheu da rua para cuidar, arranjou-lhes um quarto para dormirem, fugiram de manhã, levando toda a roupa de cama.
Quando ele trouxe o segundo grupo, Mamãe Margarida os reuniu e deu-lhes uma liçãozinha, dizendo que roubar era pecado.
E assim introduziu-se um costume que existe até hoje: a “Boa Noite”. Em qualquer casa salesiana, após a oração da noite o superior expõe um pensamento rápido, e isso se chama “Boa Noite”.
Mamãe Margarida cozinhava, cuidava da roupa, era a dona da casa, era a mamãe desses meninos. Ela é uma figura muito importante, é a figura da mãe, figura da mulher na educação e na evangelização.
Como não há uma família sem mãe, não há uma educação também sem a presença feminina. E Deus deu a Dom Bosco sua própria mãe para ser na sua obra, no seu carisma, essa presença da mãe, essa presença feminina de afetividade com os meninos.
Ela era viúva pobre e houve um momento em que Dom Bosco queria ser franciscano e foi desaconselhado justamente porque ele teria que cuidar de sua mãe.
A Mamãe Margarida disse: “Não pense nisso, siga sua vocação”. Quando Dom Bosco foi ordenado sacerdote, ela advertiu: “Meu filho, nós somos pobres e se um dia você ficar rico, sua mãe nunca mais vai por os pés na sua casa”.
AE: Dom Fernando teria alguma mensagem para os leitores da Revista Arautos?
DFL: Minha mensagem é que os leitores, como membros da Igreja, procurem entrosar-se com um grande projeto da Igreja no Brasil de hoje, que é a evangelização permanente.
Evangelizar é da essência da Igreja, pois ela tem por missão evangelizar. E evangelizar como comunidade, não isoladamente, enquanto indivíduo. Nós não somos francos atiradores da evangelização.
A evangelização é feita, em primeiro lugar, em nome da Igreja como um todo, e não do indivíduo. Quando evangelizamos, nós o fazemos como Igreja, como comunidade.
Nós estamos percebendo agora como é importante defender, guardar e promover a fé do nosso povo.
Numa situação de tanta diversidade, de tanto pluralismo, é preciso que os nossos tenham consciência da sua identidade e que nós católicos tenhamos consciência de nossa missão: evangelizar.
Não me basta ser um bom cristão, não me basta amar, conhecer e servir Jesus Cristo. É preciso que eu faça com que outros também O conheçam, amem e sirvam.
É preciso construir esse Reino, é preciso proclamar, anunciar esse Cristo que é a Boa Nova da salvação. Isso é ser missionário, é ser apóstolo. E não pode acontecer esporadicamente na vida, tem que ser algo permanente.
Tem que ser de rua em rua, de casa em casa. E meu apelo é que, em comunhão com o Santo Padre – o qual propõe a Igreja do terceiro milênio como a casa e a escola da comunhão – todos nos conscientizemos de que evangelizar é missão de todos os batizados.
Todo e qualquer batizado tem essa missão. “Ide e evangelizai; quem crer será salvo”.
Então, eu desejo que os leitores de Arautos do Evangelho sejam esses grandes missionários, esses grandes evangelizadores, de uma evangelização permanente, globalizante, que não exclui nada, não exclui ninguém.
Deve estar presente em todos os ambientes, em todos os lugares. São esses os meus votos para os leitores da Revista.