Como é agradável visitar a cidade de Roma, com seus multisseculares edifícios e obras de arte!

Parar, por exemplo, ao lado do Circo Máximo, numa manhã de céu azul e brisa amena, para contemplar aquele imenso espaço vazio pontilhado com as veneráveis ruínas que restaram do monumental edifício, famoso pelas suas corridas, jogos e batalhas navais.

Fazer um passeio para conhecer um local histórico como esse nada tem de especial em nossos dias. Podemos hoje por lá caminhar tranquilamente, quiçá fazendo o sinal da cruz, ou nos determos junto dele para rezar.

Mas nem sempre foi assim… Se aquelas ruínas pudessem nos narrar tudo quanto assistiram e ouviram, os relatos seriam intermináveis! Quantos irmãos nossos na Fé ali se encontraram numa situação bem diferente da atual!

Acusação resumida numa curta frase: “são cristãos”

Nos primórdios da Igreja, seus filhos eram acossados, presos, levados a juízo e condenados à morte. E das mais atrozes! Inúmeras vezes eram torturados sem a menor piedade. E por quê? Qual o crime que se lhes imputava?

A acusação – embora habitualmente ocultada sob os mais diversos pretextos – podia ser resumida nesta curta frase: “eram cristãos”!

A primeira das perseguições contra os seguidores de Jesus desencadeou-se durante o reinado de Nero. Este os acusou de terem provocado o arrasador incêndio que destruíra parte da cidade de Roma, mandou prendê-los e, cheio de ódio, descarregou sobre eles todo o peso de sua lendária crueldade.

Nesse período da História da Igreja, que abrange quase 300 anos, os verdugos não se limitavam a tirar a vida dos cristãos, mas, movidos por um ódio desumano, desejavam vê-los sofrer o máximo possível antes de falecer.

As torturas eram as mais horrendas. “Tudo o que de pior pode inventar a imaginação de um sádico a quem se concedesse uma liberdade sem limites para praticar o mal, tudo foi posto em prática numa atmosfera de pesadelo”1 – comenta o historiador Daniel-Rops.

Da decapitação ou crucifixão no Circo de Nero passou-se às “caçadas” nos jardins imperiais, durante as quais os seguidores de Jesus eram revestidos com peles de animais para serem perseguidos e dilacerados por ferozes molossos.

Além disso, chegou-se até a untar os cristãos com pez e resina a fim de utilizá-los como tochas para iluminar o caminho por onde Nero passeava comprazido!

Enfrentavam a morte como quem parte para a vitória

Diante do sofrimento, principalmente daquele que leva à consumação da própria vida, o homem tem uma tendência natural de fugir.

Com os mártires, porém, dava-se algo muito diferente: eles aceitavam a dor, não só com resignação, mas com alegria, ufanos de poderem morrer dando testemunho d’Aquele que morrera pela salvação dos homens. E em muitas ocasiões chegavam a desafiar os verdugos.

Os poderosos do tempo valiam-se de todos os argumentos na vã tentativa de fazê-los mudar de atitude. Esses heróis preferiam ser submetidos a qualquer tormento a negar o verdadeiro Deus.

Tomados por uma força desconhecida e incompreensível para os pagãos, enfrentavam a morte como quem parte para a vitória.

Sobretudo a partir do século III, o sangue dos mártires corre às torrentes por toda a vastidão do Império Romano e o acosso contra eles torna-se cada vez mais ferrenho.

As Catacumbas transformam-se em refúgios aos quais são forçados a se acolherem para prestar a Deus um culto clandestino.

Era aprofundando-se nas entranhas da terra, durante a noite, à maneira de conspiradores, que os primeiros cristãos podiam receber o Pão dos Anjos que os fortalecia para lutar e morrer por Cristo.

Catacumba de Domitila, Roma

Terríveis noites de vigília

Reportemo-nos a uma dessas noites em que os cristãos encarcerados nos subterrâneos do Coliseu aguardavam a hora da execução.

Enquanto o povo romano repousava, eles permaneciam despertos em meio às trevas, rezando e encorajando-se mutuamente à espera da morte, enquanto ouviam próximo deles os rugidos das feras.

Durante aquelas doloridas vigílias, provavelmente alguns choravam – com medo de que, no momento decisivo, lhes faltasse coragem para testemunhar o Senhor – e suplicavam-Lhe a graça da perseverança até o último instante.

Na manhã seguinte, à medida que o anfiteatro se enchia de seres humanos embrutecidos e ávidos por assistir ao sangrento espetáculo, os cristãos continuavam perseverantes na oração.

Às tantas, ouviam-se ao longe as aclamações ao César que acabara de chegar. Pouco depois, as portas da prisão eram abertas e os carrascos os conduziam até a arena, já embebida pelo sangue de outros cristãos.

Sobranceria e tranquilidade diante da morte

Eis o momento decisivo. Diante de cada condenado apareciam com clareza dois caminhos: rejeitar a Cristo, queimando um punhado de incenso ao ídolo que ali havia, e ser imediatamente libertado; ou oferecer-se a si mesmo como “incenso de suave odor”, e morrer testemunhando a Nosso Senhor Jesus Cristo!

Vendo-os arrasados pelo cansaço e pelos maus tratos, os pagãos que enchiam as arquibancadas procuravam ridicularizá-los, mas eles se mantinham firmes, com olhar sereno.

Alguns, em candentes palavras pronunciadas de improviso, increpavam aquelas consciências amortecidas pelo gozo da vida; outros erguiam em alta voz suas súplicas ao Deus verdadeiro; outros, por fim, se ajoelhavam e esperavam em tranquilo recolhimento o ataque das feras famintas que se aproximavam.

Instantes depois a arena era embebida de sangue mais uma vez. Enquanto o corpo sofria, a alma subia reluzente para receber do Senhor a coroa de glória do martírio!

Os Céus povoavam-se com novos Santos, que passavam a interceder pela Igreja militante da qual fizeram parte na Terra.

Comentando esses heróis da Fé, o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira afirma com admiração:

Aquela sobranceria e tranquilidade diante da morte não se manifestavam apenas na hora patética em que eram postos na presença das feras e dos verdugos, mas constituía todo um estado de espírito sapiencial.

Esta sabedoria os levava a se conservarem confiantes e plácidos ante os perigos que sentiam, cuja profundidade às vezes lhes fazia vibrar o instinto de conservação. Mas, apesar de tudo, fazia-os também construir, pedra por pedra, o edifício admirável da Igreja.2

Os pagãos ficavam estupefatos

Julgando-se capazes de esmagar definitivamente aquela religião que acabara de surgir, os inimigos de Cristo serviam-se de machados, navalhas, fogo, feras e torturas contra os seus seguidores.

Entretanto, nada disso se revelou suficiente para vencer a resistência daqueles que viviam e morriam para proclamar a divindade do Filho de Deus! Pelo contrário, a cada mártir que tombava derramando o próprio sangue, a Igreja crescia em número e santidade.

O sacrifício daquelas almas não só fortalecia os cristãos que continuavam a luta nesta Terra, mas muitas vezes chegava a comover os pagãos.

De algum modo, os algozes sentiam o vento da graça que soprava no instante do martírio, e com frequência algo os intrigava e os interpelava no fundo de suas consciências.

Com efeito, como podem anciãos, jovens, donzelas e crianças suportar tais tormentos sem em nada ceder? O que pensar deste Cristo do qual tanto falam e pelo qual estão dispostos a entregar a própria vida? Estarão eles certos, e nós, errados?

Com efeito, os que assistiam àquelas execuções ficavam realmente estupefatos. Os mártires não só padeciam os piores suplícios com resignação, mas eram capazes de bradar “Deo Gratias!” ao ouvirem a sentença de condenação.

Não se dobravam nem cediam. “Entre as mãos dos algozes, exasperados e impotentes, deixavam os seus ensanguentados despojos, mas a alma permanecia invicta!” – comenta um autor contemporâneo.3

Aqueles homens sem fé, ansiosos por gozar de uma existência repleta de deleites terrenos, deparavam-se com seres humanos que se entregavam jubilosos aos piores tormentos.

Afirmavam que a verdadeira alegria não reside nos prazeres deste mundo, mas sim no gáudio eterno por Deus concedido àqueles que Lhe são fiéis até na hora das mais terríveis aflições.

Ora, como explicar que homens criados para a vida tomem essa atitude de aceitar a morte com alegria? De onde lhes poderia vir tamanha força para sofrerem tormentos inenarráveis, sem capitular diante dos perseguidores?

Martírio de São Cipriano - Paróquia dos Santos Cornélio e Cipriano, Trivolzio (Itália)
Martírio de Santo Inácio de Antioquia - Basílica de São Clemente, Roma
 Martírio de Santos Solutor, Aventor e Octávio - Casa-Mãe dos Salesianos, Valdocco (Itália)

De onde lhes vinha essa força?

A dor faz parte da existência humana neste vale de lágrimas. Jamais o homem achará uma alegria duradoura no dinheiro ou nos prazeres terrenos, pois a verdadeira felicidade advém apenas da aceitação da Cruz que Deus designa para cada um.

Por isso o padre Royo Marín afirma: “O sofrer passa; mas o haver sofrido bem jamais passará: deixará sua marca na eternidade”.4

Perfeito exemplo de aceitação da dor é o próprio Homem-Deus. Ele tomou sua Cruz, carregou-a até o alto do Calvário e, quando tudo parecia estar perdido, fez brotar do seu sagrado Lado perfurado pela lança a obra mais estupenda da História: a Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

Provinha, pois, do Divino Mestre a força demonstrada por aqueles cristãos; a eles era concedida uma sustentação toda especial, sem a qual lhes seria impossível suportar tamanhos sofrimentos.

O próprio Jesus sublinhou o caráter singular desse auxílio divino, ao afirmar:

Quando fordes presos, não vos preocupeis nem pela maneira com que haveis de falar nem pelo que haveis de dizer: naquele momento ser-vos-á inspirado o que haveis de dizer. Porque não sereis vós que falareis, mas é o Espírito de vosso Pai que falará em vós (Mt 10, 19-20).

O mais alto ato de caridade

Cristo é a testemunha fiel da Verdade, que por seu sangue nos libertou dos nossos pecados (cf. Ap 1, 5) e espera de nós reciprocidade:

Quem der testemunho de Mim diante dos homens, também Eu darei testemunho dele diante de meu Pai que está nos Céus. Aquele, porém, que Me negar diante dos homens, também Eu o negarei diante de meu Pai que está nos Céus (Mt 10, 32-33).

A partir de certo momento, dava-se a quem morria por sua Fé a denominação de “mártir” (μαρτυρ), palavra grega que significa “testemunha”.

Pois o martírio, afirma Ruiz Bueno, é o supremo testemunho “que se confirma com a própria vida e se assina e rubrica com o próprio sangue”.

E acrescenta: “A morte consuma, completa o martírio, quer dizer, apõe o selo de sangue ao testemunho que o cristão dá de sua Fé confessando-a perante um tribunal”.5

A força dos primeiros cristãos para dar esse testemunho não poderia vir, como vimos, da natureza humana, do dinheiro ou das armas, mas sim da caridade.

O amor a Deus lhes proporcionava coragem para enfrentar todos os ódios e suportar os mais cruéis tormentos sem deixar de proclamar o nome de Cristo.

E mesmo que alguém conseguisse reunir forças para praticar tais atos de heroísmo, mas não estivesse movido pela caridade, eles não teriam valor algum. Pois o martírio, conforme explica São Tomás,

é ato da caridade, como a que o impera, e da fortaleza, como a que o realiza. Portanto, o martírio manifesta essas duas virtudes.

É pela caridade que este ato fica sendo meritório, como todo ato de virtude. Por isso, sem a caridade nada valeria.6

Pouco adiante acrescenta o Santo Doutor que o martírio, “entre todos os atos de virtude, é o que manifesta no mais alto grau a perfeição da caridade”.7

Ruína do Império, triunfo da Igreja

“Louva-Vos o luminoso exército dos vossos Santos Mártires” – canta a Igreja no Te Deum. Luminoso exército formado por pessoas de todas as idades, épocas e categorias: Papas, Bispos, sacerdotes, jovens, virgens, viúvas, soldados, filósofos e até crianças.

Todas elas, na hora da provação, mantiveram sua fidelidade até a morte, merecendo o prêmio anunciado pelo Divino Mestre:

Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus! Bem-aventurados sereis quando vos perseguirem e disserem falsamente todo o mal contra vós por causa de Mim. Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos Céus (Mt 5, 10-11).

Para os primeiros cristãos, poderia parecer que aquele imenso e orgulhoso Império manteria sempre sua força e dominação sobre os povos.

Porém, quanto mais fazia este por acabar com o pequeno rebanho dos seguidores de Jesus, mais estes se fortaleciam e cresciam, pois, como tão bem afirmou Tertuliano, “o sangue dos mártires é semente de cristãos”.8

Não tardou a tornar-se patente a realidade dessa afirmação: Roma acabou por capitular diante do Cristianismo, que obteve uma estupenda vitória sem o mínimo emprego da violência. E o sangue bendito derramado pelas legiões de mártires continua a produzir seus frutos ao longo dos séculos.

Mesmo sentindo-se incapazes de enfrentar o poder de Roma, aqueles mártires tinham no fundo de suas almas a certeza de que Cristo, de alguma forma, triunfaria sobre os seus perseguidores.

E triunfou! Hoje, por exemplo, bem ao lado do Circo Máximo, onde tantos cristãos foram martirizados, pode-se admirar a basílica de Sant’Anastasia al Palatino, com as torres e a fachada rematadas por uma cruz.

Sim, a cruz, que na Antiguidade era sinal de irrisão e tormento, está agora ali como símbolo do triunfo de Cristo sobre o Império Romano e todos os impérios da terra. “Stat Crux dum volvitur orbis!” – “Enquanto o mundo gira, a Cruz permanece firme!”.9

Pela fé dos primeiros cristãos, testemunhada de forma suprema pelos mártires, o Império ruiu… E a Cruz triunfou!

Cristo Crucificado - Basílica dos Mártires, Lisboa

1 DANIEL-ROPS, Henri. A Igreja dos Apóstolos e dos Mártires. São Paulo: Quadrante, 1988, p. 154.
2 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Maravilhas do espírito da Igreja. In: Dr. Plinio. São Paulo. Ano VII. N. 76 (jul., 2004); p. 20.
3 PENIDO, Maurílio Teixeira-Leite. Iniciação teológica: O mistério dos Sacramentos. Petrópolis: Vozes, 1954, v. II, p. 198.
4 ROYO MARÍN, OP, Antonio. Teología de la perfección cristiana. Madrid: BAC, 2008, p. 333-334.
5 RUIZ BUENO, Daniel. Actas de los mártires: texto bilingue. Madrid: BAC, 2003, p. 10-17.
6 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. II-II, q. 124, a. 2, ad 2.
7 Idem, a. 3.
8 TERTULIANO. Apologeticus, 50: ML 1, 535.
9 Lema da Ordem dos Cartuxos.