Tarde de festa no anfiteatro de Esmirna, por volta do ano 155 da Era Cristã. Enchia-o uma multidão sequiosa de sangue, na expectativa de assistir a um cruel espetáculo: o martírio de 12 cristãos.
No momento aprazado, adentra o Santo Bispo Policarpo, ancião de quase 90 anos, sobranceiro ao populacho.
Conduzido ao procônsul que presidia o evento, este lhe propôs um meio seguro de livrar-se dos suplícios e da morte: amaldiçoar o nome de Jesus.
“Eu O sirvo há oitenta e seis anos, e Ele não me fez nenhum mal. Como poderia blasfemar o meu Rei que me salvou?”1 – replicou Policarpo.
Vendo fracassadas as tentativas de levar à apostasia o santo varão, o magistrado vociferou:2
— Eu te farei queimar na fogueira, se não mudares de ideia.
— Tu me ameaças com um fogo que queima por um momento, e pouco depois se apaga, porque ignoras o fogo do julgamento futuro e do suplício eterno, reservado aos ímpios. Mas por que demoras? Faze já o que queres – respondeu o Bispo.
Em pouco tempo preparou-se a pira e ateou-se o fogo. Deu-se então um fato prodigioso: as labaredas formaram uma espécie de abóbada, como uma vela de navio inflada pelo vento, envolvendo o corpo do mártir.
Lá estava ele, não como carne que queima, mas como um pão no forno, como ouro ou prata brilhando na fornalha. E difundiu-se pelo ar um perfume de incenso.
Então, por ordem do magistrado, o carrasco matou Policarpo a golpes de punhal.
Para evitar que os cristãos levassem depois aquele corpo, digno de veneração, o centurião romano mandou queimá-lo.
Mais tarde, entretanto, conseguiram os fiéis recolher seus ossos, “mais preciosos do que pedras preciosas e mais valiosos do que o ouro”,3 e os depositaram em lugar apropriado.
Uma forma de devoção que remonta ao primeiro século
O martírio de São Policarpo chegou até nós narrado numa carta escrita pouco depois de sua morte pela Igreja de Esmirna à de Filomélio.
Ela é o mais antigo documento conhecido que testemunha o costume de venerar as relíquias de Santos na Igreja primitiva. Mas o costume, em si, é mais antigo, e não falta quem opine ter-se ele iniciado com Santo Estêvão.
Assim, por exemplo, meio século antes de São Policarpo, Santo Inácio de Antioquia recebia também a glória de ser condenado a morrer, desta vez, estraçalhado pelas feras.
Ambos os Bispos eram discípulos de São João Evangelista, e neles resplandecia de tal modo a santidade que, ainda em vida, despertavam incontidas manifestações de veneração dos fiéis.
A entrada de Inácio na arena do Coliseu de Roma foi acolhida com urros por uma multidão sedenta de sangue humano.
Abriram-se as portas das jaulas e os famintos leões se lançaram no curto espaço que os separava do homem de Deus, realizando seu desejo de ser triturado como o trigo pelas feras.4
Mas, quando o manto da noite cobriu o colossal anfiteatro e alguns cristãos entraram na arena, esperançosos de recolher ao menos um punhado de areia enriquecida por algumas gotas de sangue, encontraram intactos – oh alegria! – um fêmur e o coração do Santo Bispo!
Comemorando o “dies natalis”
Os mártires são imitadores de Cristo que seguem as pegadas do Divino Mestre enfrentando por Ele o sofrimento e a morte.
“Nós os amamos justamente como discípulos e imitadores do Senhor, por causa da incomparável devoção que tinham para com seu Rei e Mestre”5 – afirmam os fiéis de Esmirna ao pedirem ao procônsul o corpo de São Policarpo.
A admiração suscitada por estes heróis da Fé nas comunidades cristãs fazia com que os corações de muitos outros fiéis ardessem no desejo de morrer por Cristo.
E o testemunho dos que já haviam sido martirizados inspirava-lhes um intenso desejo de amar a Deus até o holocausto de suas próprias vidas.
Não é portanto de estranhar que a assembleia comemorasse seu dies natalis lendo com amor e veneração as narrações de seu martírio.
Mais uma vez, são os fiéis de Esmirna que nos dão testemunho desse desejo:
Quando possível, é aí que o Senhor nos permitirá reunir-nos, na alegria e contentamento, para celebrar o aniversário de seu martírio, em memória daqueles que combateram antes de nós, e para exercitar e preparar aqueles que deverão combater no futuro.6
Encerrado o período das perseguições, a atenção dos cristãos voltou-se paulatinamente para os Santos não mártires.
E a Santa Igreja promulgou leis ao longo dos séculos para organizar e disciplinar os atos exteriores desse culto, tal como o conhecemos em nossos dias.
Martinho, Valladolid (Espanha)
A vantagem proporcionada por essas festas
Admiremos esse exemplo, e aprendamos com aqueles que nos precederam na Fé a amar os que foram capazes de derramar todo o seu sangue por amor a Cristo crucificado, e a imitar o seu testemunho.
E para isso, nada melhor do que terminarmos estas linhas com um belo e esclarecedor trecho de Santo Agostinho:
De nada aproveita aos mártires as solenes homenagens que lhes prestamos.
Eles não têm necessidade alguma de nossas celebrações, pois gozam da alegria dos Anjos no Céu; e se participam de nossos piedosos regozijos, não é por se sentirem honrados, mas sim por se verem imitados por nós.
Entretanto, se nossas homenagens não lhes aproveita, elas nos são úteis. Mas se os honramos sem imitá-los, fazemos simplesmente uma adulação mentirosa.
Por que, então, foram instituídas na Igreja de Cristo essas festas em louvor a eles? Para recordar aos membros reunidos de Cristo a necessidade de tomar por modelo esses mártires.
É esta, sem dúvida, a vantagem proporcionada por essas festas. Não há outra.7